A morte do 'barítono do século XX' interessa aos leitores do Estadão, mas não aos do Globo
O Globo não considerou em sua versão impressa que a morte de Dietrich Fischer-Dieskau interessasse aos leitores ou merecesse registro: nem uma linha. O Estado de S. Paulo fez como os jornais europeus e norte-americanos: um registro extenso sobre a vida e a carreira, acompanhado de uma apreciação de sua arte. A Folha de S. Paulo limitou-se a uma nota de meia-dúzia de linhas.
Que pensar?
Não faz mais parte do etos de certo jornalismo brasileiro a preocupação da referência, do registro de referência. Pois se todo mundo fica sabendo da morte de um luminar como DFD imediatamente, pelos meios eletrônicos… É o que basta. O impacto! Por que O Globo sairia dos seus hábitos só para mostrar a um público reduzido, no universo a que se dirige, que a arte do canto culto tem alguma relevância por aqui?
Não tem.
Médiuns e intelectuais
Nunca fui especialmente fã de Fischer-Dieskau. Para mim a sedução do canto passa pela beleza do timbre, do grão da voz, da matéria sonora. Ela é intensificada pela arte, indispensável, sobretudo quando inimitável; no seu caso, artes plurais: multifacetadas, infindáveis, às vezes dando a alguns a impressão de se voltarem muito sobre si mesmas.A natureza dotou DFD de material vocal rico e generoso – na coloração de bronze, nas possibilidades múltiplas da projeção e dos registros. Mas havia (nas gravações: nunca pude ouvi-lo ao vivo) uma espécie de pátina nasalizante, um véu que eu compararia (grosseiramente: a voz humana é inapreensível) ao pedal abafador do piano – configurando também, por outro lado, uma virtude sempre apreciada: a maciez aveludada.
Na emissão e empostação, a voz parecia originar-se ou reverberar sobretudo numa região entre o palato e as cavidades nasais, menos presente ou sustentada na frente, nas regiões de articulação, na máscara. Condições e circunstâncias que, para os meus ouvidos, fazem eco à guturalidade de outro imenso artista cujo “material” vocal tampouco me seduz: Plácido Domingo (e seu clone mais recente, Rolando Vilazón…)
A expressão “grão da voz” remete, claro, às reservas de um famoso artigo de Roland Barthes (“O grão da voz”, de 1971, incluído na coletânea O óbvio e o obtuso, Nova Fronteira). Barthes reclamava do tipo de expressividade de DFD, do investimento carregado na intenção anímica, em detrimento segundo ele da naturalidade sensorial do “grão”: “a materialidade do corpo falando sua língua materna”.
Barthes trabalhava com uma dualidade que hoje, em época mais dada a sínteses, não nos convence muito. De um lado, o que ele não aprecia tanto: “tudo aquilo que, na execução, está a serviço da comunicação, da representação, da expressão”; do outro, sua preferência: o “volume da voz que canta e que diz, o espaço onde as significações germinam ‘do interior da língua e em sua própria materialidade’”, num “jogo significante alheio à comunicação, à representação (dos sentimentos), à expressão”.
Barthes comparava Fischer-Dieskau ao barítono suíço Charles Panzéra, cuja arte “estava nas letras, não no sopro (simples traço técnico: não o ouvíamos respirar, mas apenas recortar a frase)”.
Desagradava-lhe que DFD não privilegiasse “essa extremidade (ou esse fundo) da produção em que a melodia trabalha realmente a língua – não a língua que diz, mas a volúpia de seus sons-significantes, de suas letras”: a “dicção da língua”; reclamava de ouvir em seu canto o pulmão (“órgão tolo”, com a “maciez dos gatos”, que “se incha, mas é incapaz de ereção”) e não “a língua, a glote, os dentes, o septo, o nariz” – já que é “na garganta, espaço em que o metal fônico adquire consistência e se recorta, é na máscara que explode o significante, fazendo brotar, não a alma, mas o gozo”.
Peço desculpas por essa incursão – para mim apaixonante – em escaninhos recônditos da arte do canto, filtrados na visão cerebrina mas fascinante de um intelectual. Um embate entre a “alma” germânica e o “eros” latino – de que só o lado francês participava, pois Dietrich Fischer-Dieskau nunca quis provar nada, apenas deixar passar o gênio pelo instrumento e a sensibilidade que Deus lhe deu.
A reserva de Barthes converge em certa medida com a minha: nasalidade pulmonar! Ele queria mais materialidade palatal na produção sonora do grande cantor, eu teria gostado que o som fosse mais aberto e frontal…
Mas um outro observador privilegiado, o crítico André Tubeuf, responde à objeção do suposto artificialismo e excesso de intenção expressiva na arte de DFD falando, justamente, da sua espontânea entrega, da visceralidade do que lhe saía pelas fibras e o alento da voz, passando por um intelecto privilegiado, mas antes banhado, impregnado, de cultura do que estudado.
Em homenagem a Dietrich Fischer-Dieskau, que tanto nos deu e legou, e para os leitores que não sejam francófonos, traduzo em seguida trechos de um luminoso artigo de Tubeuf publicado em meados da década de 80, quando DFD começava a se retirar (primeiro dos palcos de ópera, depois dos recitais, que mais que tudo fizeram a sua glória).
Tubeuf tem uma capacidade que eu diria mediúnica de apreender e transmitir o essencial de uma manifestação musical, seja do compositor ou do intérprete. Os trechos a seguir constam do artigo “Incansável viagem”, recolhido na coletânea L’Offrande musicale (Robert Laffont, 2007).
* * *
“A arte soberana de todo cantor está no legato e no portamento, uma arte (italiana) de ligar os sons, de fazer com que não sejam uma sucessão, mas uma integração. Essa sustentação, ao mesmo tempo uma moral, uma elegância e um prazer, Fischer-Dieskau não se cansou de praticá-la. Alemão que é, e cheio de consoantes, é certamente em nosso meio-século, na arte de ligar os sons e a partir deles criar uma frase, o mais puro belcantista.
“Basta ouvi-lo em Feldeinsamkeit, de Brahms, o primeiro lied que preparou, ainda menino, e que gravou pelo menos três vezes, duas delas com Barenboim. Mais tardiamente, o andamento é um pouco acelerado (porém mantendo a mesma tensão imóvel), mas as respirações (de uma economia rigorosa), o fraseado longo e mágico, a mezza voce, controle flexível da dinâmica que dá ao ouvinte a sensação de que a voz é abaixada (sem alterar o timbre) para que ele entre melhor na visão, continuaram incomparáveis. (…)
“Esse vidente sonoro, esse evocador, para nos tocar e nos preencher, não precisa do álibi do personagem. A palavra lhe basta, e essa paisagem da alma ou do humor que é um lied. (…)
“E com a voz do bom Deus, um instrumento de encantamento e docilidade, obedecendo ao musicista à menor sugestão verbal, com o gênio do ritmo (…): gênio de desengastar a palavra, a frase, da moldura aparente fixada pela barra de compasso, para transpor essa exatidão para a requintada e magistral liberdade das cores e respirações.
“Fischer-Dieskau não se sentiu responsável apenas (…) pelas obras-primas que sem ele ficariam mudas, ou mortas. Ele se sente responsável também por nossa cultura, a de seus contemporâneos. Não deixava passar uma só oportunidade de estabelecer a comunicação entre ouvidos que esperam a música e textos que esperam uma voz.”
21 de maio de 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário