À minha frente, na fila do banco, o cidadão de terno gira o pescoço para cá,
para lá, periscópio a espreitar perigo - e, num movimento atlético, juvenil, se
curva para apanhar no chão alguma coisa que, num relance, pude ver.
Um clips.
Sim, aquilo que o dicionário chama de clipe. Foi isso que o engravatado cavalheiro se deu ao trabalho de catar, antes de reassumir um ar empertigado de pessoa jurídica. (Já reparou? Tem gente que, mesmo sem CNPJ, tem cara de pessoa jurídica. Quando morre, a família poderia anunciar: fulano foi "descontinuado".) Um clips, e nem dos graúdos, nem colorido. Daqueles, vai ver, de metal vagabundo, que enferrujam os papéis.
Mais um marmanjo - pensei eu, fitando a nuca que já grisalhava -, mais um marmanjo incapaz de resistir à tentação de embolsar qualquer coisa que se ofereça de graça, ainda que se trate, como no caso, de insignificância.
Minutos depois de pinçar com mão de pivete semelhante tesouro, chegou a sua vez de ser atendido; pediu notas de cem, as quais, no bolso do seu paletó de grife, foram fazer companhia ao clips. De lá extraiu um iPhone de última geração, e nele desandou a dizer coisas graves, empresariais (quase posso jurar que ouvi "debêntures").
Toda essa conversa para chegar a esta crucial pergunta: você se abaixaria para recolher um clips, mesmo não tendo duas folhas de papel para juntar? A borrachinha em cima do balcão, quando a atendente sai para imprimir a guia dos exames? O lápis, a canetinha ordinária que encontrou na mesa de reunião?
Tudo bem, compreendo que não queira responder. Também eu, devo confessar, eventualmente correria o risco de agravar meu problema de coluna para cometer o que em linguajar jurídico se chama apropriação de coisa achada. Me lembro de ter feito algo assim, muitos anos atrás - mas não só a coluna estava em ordem como o móvel do venial delito vinha a ser mais que um clips ou uma borrachinha: 280 francos, a antiga moeda francesa, que vi na areia à minha frente ao sair da praia em Montecarlo.
Não era uma fortuna - ou era, pois correspondia a quase 40% do valor da bolsa que o governo da França me pagava. (O que fiz com a grana superveniente? Torrei toda, e mais um pouco, num caça-níqueis do cassino, ensandecido que estava pelo som dessa caixa de música dos pobres que é o retinir das moedas despencando na cuia metálica das máquinas ao lado. Posso ouvir você dizendo: Deus, ou alguém por Ele, castiga...).
Fernando Sabino falou da mania que dele por um tempo se apossou, de catar moedas na rua. Não para engordar seu porquinho, que disso não carecia, mas pelo gosto menineiro da brincadeira. Bem mais inocente que aquela dama endinheirada de minhas relações, a qual nas suas incursões por lojas de roupas finas sempre dá um jeito de arrancar o botão reserva de blusas e camisas - para deles, admite envergonhada, fazer coisa alguma. Diferente de outros gatunos: dos meus tempos da Playboy, me lembro de uma peladona que assaltou a maquininha de guloseimas num hotel londrino, e, apanhada, teve que bancar cada bombom devorado.
Tem gente que não faz o check-out no hotel sem antes enfiar na mala o conteúdo do kit à disposição do hóspede, não necessariamente cleptomaníaco, no banheiro do apartamento. Sei de um que nunca deixa de empalmar xampu, condicionador e touca de banho - embora já não lhe reste no coco um solitário fio de cabelo. Nunca se sabe, justifica esse sebastianista do imaginário capilar.
"Do hotel, carrego tudo a que tenho direito", vangloria-se outro viajante contumaz, que para otimizar a diária seria capaz de não pregar o olho. Sai do café da manhã com uma provisão de geleia, mel e requeijão nos bolsos e um par de bananas na mão.
No apartamento, não deixa para trás os sacos da lavanderia, os envelopes e os papéis de carta e, mesmo não tendo prendas domésticas, o estojinho com agulha, linhas e botões.
"Só não levo aquela Bíblia da gaveta do criado-mudo, que essa ninguém leva mesmo", desdenha nosso aspirador de mixarias, entre as quais, revela, há uma boa quantidade de clips, coletados, informa, em circunstâncias que você não pode imaginar.
Humberto Werneck
25 de junho de 2012
Um clips.
Sim, aquilo que o dicionário chama de clipe. Foi isso que o engravatado cavalheiro se deu ao trabalho de catar, antes de reassumir um ar empertigado de pessoa jurídica. (Já reparou? Tem gente que, mesmo sem CNPJ, tem cara de pessoa jurídica. Quando morre, a família poderia anunciar: fulano foi "descontinuado".) Um clips, e nem dos graúdos, nem colorido. Daqueles, vai ver, de metal vagabundo, que enferrujam os papéis.
Mais um marmanjo - pensei eu, fitando a nuca que já grisalhava -, mais um marmanjo incapaz de resistir à tentação de embolsar qualquer coisa que se ofereça de graça, ainda que se trate, como no caso, de insignificância.
Minutos depois de pinçar com mão de pivete semelhante tesouro, chegou a sua vez de ser atendido; pediu notas de cem, as quais, no bolso do seu paletó de grife, foram fazer companhia ao clips. De lá extraiu um iPhone de última geração, e nele desandou a dizer coisas graves, empresariais (quase posso jurar que ouvi "debêntures").
Toda essa conversa para chegar a esta crucial pergunta: você se abaixaria para recolher um clips, mesmo não tendo duas folhas de papel para juntar? A borrachinha em cima do balcão, quando a atendente sai para imprimir a guia dos exames? O lápis, a canetinha ordinária que encontrou na mesa de reunião?
Tudo bem, compreendo que não queira responder. Também eu, devo confessar, eventualmente correria o risco de agravar meu problema de coluna para cometer o que em linguajar jurídico se chama apropriação de coisa achada. Me lembro de ter feito algo assim, muitos anos atrás - mas não só a coluna estava em ordem como o móvel do venial delito vinha a ser mais que um clips ou uma borrachinha: 280 francos, a antiga moeda francesa, que vi na areia à minha frente ao sair da praia em Montecarlo.
Não era uma fortuna - ou era, pois correspondia a quase 40% do valor da bolsa que o governo da França me pagava. (O que fiz com a grana superveniente? Torrei toda, e mais um pouco, num caça-níqueis do cassino, ensandecido que estava pelo som dessa caixa de música dos pobres que é o retinir das moedas despencando na cuia metálica das máquinas ao lado. Posso ouvir você dizendo: Deus, ou alguém por Ele, castiga...).
Fernando Sabino falou da mania que dele por um tempo se apossou, de catar moedas na rua. Não para engordar seu porquinho, que disso não carecia, mas pelo gosto menineiro da brincadeira. Bem mais inocente que aquela dama endinheirada de minhas relações, a qual nas suas incursões por lojas de roupas finas sempre dá um jeito de arrancar o botão reserva de blusas e camisas - para deles, admite envergonhada, fazer coisa alguma. Diferente de outros gatunos: dos meus tempos da Playboy, me lembro de uma peladona que assaltou a maquininha de guloseimas num hotel londrino, e, apanhada, teve que bancar cada bombom devorado.
Tem gente que não faz o check-out no hotel sem antes enfiar na mala o conteúdo do kit à disposição do hóspede, não necessariamente cleptomaníaco, no banheiro do apartamento. Sei de um que nunca deixa de empalmar xampu, condicionador e touca de banho - embora já não lhe reste no coco um solitário fio de cabelo. Nunca se sabe, justifica esse sebastianista do imaginário capilar.
"Do hotel, carrego tudo a que tenho direito", vangloria-se outro viajante contumaz, que para otimizar a diária seria capaz de não pregar o olho. Sai do café da manhã com uma provisão de geleia, mel e requeijão nos bolsos e um par de bananas na mão.
No apartamento, não deixa para trás os sacos da lavanderia, os envelopes e os papéis de carta e, mesmo não tendo prendas domésticas, o estojinho com agulha, linhas e botões.
"Só não levo aquela Bíblia da gaveta do criado-mudo, que essa ninguém leva mesmo", desdenha nosso aspirador de mixarias, entre as quais, revela, há uma boa quantidade de clips, coletados, informa, em circunstâncias que você não pode imaginar.
Humberto Werneck
25 de junho de 2012
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