Artigos - Cultura
Não se deixem enganar pela ausência completa de sentido lógico, embasamento e racionalidade dos excertos acima transcritos. Eles não foram escritos para informar, convencer racionalmente através de ideias concatenadas e argumentos desenvolvidos numa linha de pensamento identificável e conferível: foram feitos para funcionar exatamente como o “Abre-te, sésamo!” da história árabe e, assim, depositar magicamente na mente de quem quer que se exponha a eles os tesouros mais caros da nata da
Contra magicae methodiMeu texto acima tratou de como a linguagem irracional, tão carregada de lacunas e contradições, típica dos “intelectuais”, é forjada não para convencer, mas para enfeitiçar. Pegue um livro de algum bruxo-intelectual famoso, venerado, alçado aos mais áureos pedestais da nossa zelosa elite pensante – Paulo Freire, por exemplo – e você poderá se deparar com joias deste quilate:
17 de junho de 2012
Felipe Melo
A linguagem irracional, tão carregada de lacunas e contradições, típica dos “intelectuais”, é forjada não para convencer, mas para enfeitiçar.
Há quem diga que não existam fórmulas mágicas, aquelas frases aparentemente incoerentes, que nada significam, mas que são urdidas de modo meticulosamente pensado para gerar determinados efeitos ilógicos, extraordinários, quase sobrenaturais.
Apesar de se crer que hoje não passem de elementos de contos de fadas e histórias fictícias – como o líder do bando dos quarenta ladrões em “O Livro das Mil e Uma Noites”, que abria o rochedo da caverna onde escondia as riquezas que roubava com um retumbante “Abre-te, sésamo!” –, existem algumas palavras que, quando concatenadas de modo a formar um raciocínio que simplesmente não faz sentido lógico algum, provocam uma reação incrível nas pessoas que as escutam, abrindo suas mentes e suas almas para serem depositários do que se julgam serem riquezas inestimáveis, raríssimas.
Temos grandes exemplos, antigos e hodiernos, de pessoas que possuem essa capacidade singular. São magos intelectuais estupendos: misturando torpes convicções pessoais com uma ímpar incapacidade de análise e grandes porções de indigência mental, tudo bem temperado com boas doses de desonestidade pura, esses Ali Babás da cultura formam uma espécie de panteão feérico: são os intelectuais de vulto venerados nas decadentes academias pós-1968 – que há muito deixaram de ser arenas de debate e investigação do saber para se tornarem altares da idolatria esquerdóide.
Um desses bruxos da intelligentsia participou ontem (sexta, 15) do Colóquio Interconselhos promovido pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS): Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Um desses bruxos da intelligentsia participou ontem (sexta, 15) do Colóquio Interconselhos promovido pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS): Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
A matéria publicada no portal da Universidade de Brasília acerca da participação do feiticeiro é abundante em loas comovidas a “um dos estudiosos da democracia mais respeitados do planeta”, cujo grimório de conhecimentos foi “apresentado com naturalidade e lucidez” à plateia arrebanhada pelo evento. Quais foram os pontos centrais desse intricado ritual? Ei-los:
“A especulação financeira fez com que o Estado se desorganizasse. O Estado não pode intervir muito na saúde, na educação, porque está preso a uma lógica de mercado. As reformas estruturais estão a ser adiadas. O Estado está tão reacionário, tão oligárquico quanto antes. O capitalismo só quer a democracia se ela lhe der lucros. A democracia tem de ser distributiva.”
“A democracia está nas funções, mas não cumpre suas funções. O abismo entre representantes e representados nunca foi tão grande. Hoje na política, tudo se compra, tudo se vende, por isso a corrupção é uma chaga tão grande.”
“Nunca se trabalhou tanto e nunca se fizeram tantos muros para impedir a passagem de imigrantes. A desvalorização do trabalho é tão grande que começa a ser difícil distinguir trabalho pago de não pago. Não há distinção entre tempo livre e tempo do trabalho. A forma mais cruel do trabalho não pago é o tempo perdido procurando trabalho.”
“Aqui bem perto, na Bolívia e no Equador, vemos a ação do capitalismo. É a mineralização [sic] a céu aberto, é a destruição dos territórios indígenas, é a destruição dos ecossistemas, é a explosão de montanhas para explorar minérios, com grande contaminação da água, essa é a outra face da chamada acumulação primitiva, e que, longe de ser uma forma de capitalismo, é uma constante de capitalismo. Muito do conhecimento técnico está relacionado com interesses de grandes empresas e serve a essa exploração.
“A democracia está nas funções, mas não cumpre suas funções. O abismo entre representantes e representados nunca foi tão grande. Hoje na política, tudo se compra, tudo se vende, por isso a corrupção é uma chaga tão grande.”
“Nunca se trabalhou tanto e nunca se fizeram tantos muros para impedir a passagem de imigrantes. A desvalorização do trabalho é tão grande que começa a ser difícil distinguir trabalho pago de não pago. Não há distinção entre tempo livre e tempo do trabalho. A forma mais cruel do trabalho não pago é o tempo perdido procurando trabalho.”
“Aqui bem perto, na Bolívia e no Equador, vemos a ação do capitalismo. É a mineralização [sic] a céu aberto, é a destruição dos territórios indígenas, é a destruição dos ecossistemas, é a explosão de montanhas para explorar minérios, com grande contaminação da água, essa é a outra face da chamada acumulação primitiva, e que, longe de ser uma forma de capitalismo, é uma constante de capitalismo. Muito do conhecimento técnico está relacionado com interesses de grandes empresas e serve a essa exploração.
Tudo é representado de maneira técnica e fria. O valor do conhecimento é o valor do mercado do conhecimento.”
Diante das colocações de Boaventura Santos, só há duas possibilidades plausíveis: ou o eminente mago do saber lusitano vive em uma realidade alternativa, ou somos nós as criaturas extraplanares.
Desde que a democracia passou a ser adotada como a alegada forma de governo da maior parte dos Estados ocidentais, nunca se viu tamanha intervenção do Estado nos mais diversos campos da vida humana – não apenas na saúde ou na educação, mas na economia e no âmbito social. O Estado-Deus deixou de ser apenas a ambição tresloucada dos philosophes e se tornou a realidade concreta no Ocidente.
Mas o grimório de feitiços intelectuais do mago lusitano não se esgota apenas nas crenças expostas nos pontos supracitados. Analisemos, por exemplo, alguns excertos da série de artigos “Carta às Esquerdas”, publicada por Boaventura Santos em alguns veículos de informação aqui e alhures:
As esquerdas dominaram o século XX (apesar do nazismo, do fascismo e do colonialismo) e o mundo tornou-se mais livre e mais igual graças a elas.
O capitalismo concebe a democracia como um instrumento de acumulação; se for preciso, redu-la [sic] à irrelevância e, se encontrar outro instrumento mais eficiente, dispensa-a (o caso da China). A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas.
Os neoliberais pretendem desorganizar o Estado democrático através da inculcação na opinião pública da suposta necessidade de várias transições. Primeira: da responsabilidade coletiva para a responsabilidade individual. Para os neoliberais, as expectativas da vida dos cidadãos derivam do que eles fazem por si e não do que a sociedade pode fazer por eles.
A direita tem à sua disposição todos os intelectuais orgânicos do capital financeiro, das associações empresariais, das instituições multilaterais, dos think tanks, dos lobistas, os quais lhe fornecem diariamente dados e interpretações que não são sempre faltos de rigor e sempre interpretam a realidade de modo a levar a água ao seu moinho.
A democracia liberal agoniza sob o peso dos poderes fáticos (máfias, maçonaria, Opus Dei, transnacionais, FMI, Banco Mundial) e da impunidade da corrupção, do abuso do poder e do tráfico de influências.
Nos últimos 50 anos as esquerdas (todas elas) deram um contributo fundamental para que a democracia liberal tivesse alguma credibilidade junto das classes populares e os conflitos sociais pudessem ser resolvidos em paz. Sendo certo que a direita só se interessa pela democracia na medida em que esta serve os seus interesses, as esquerdas são hoje a única garantia do resgate da democracia.
A reflexão deve começar por aí: o neoliberalismo é, antes de tudo, uma cultura de medo, de sofrimento e de morte para as grandes maiorias, se não se combater com eficácia, se não se lhe opuser uma cultura de esperança, de felicidade e de vida. A dificuldade que as esquerdas têm em assumirem-se como portadoras desta outra cultura decorre de terem caído durante demasiado tempo na armadilha com que as direitas sempre se mantiveram no poder: reduzir a realidade ao que existe, por mais injusta e cruel que seja, para que a esperança das maiorias pareça irreal. O medo na espera mata a esperança na felicidade. Contra esta armadilha é preciso partir da ideia de que a realidade é a soma do que existe e de tudo o que nela é emergente como possibilidade e como luta pela sua concretização.
Não se deixem enganar pela ausência completa de sentido lógico, embasamento e racionalidade dos excertos acima transcritos. Eles não foram escritos para informar, convencer racionalmente através de ideias concatenadas e argumentos desenvolvidos numa linha de pensamento identificável e conferível: foram feitos para funcionar exatamente como o “Abre-te, sésamo!” da história árabe e, assim, depositar magicamente na mente de quem quer que se exponha a eles os tesouros mais caros da nata da
intelligentsia mundial.
Como para o bruxo intelectual Boaventura Santos é um equívoco “reduzir a realidade ao que existe”, tudo fica bastante bem entendido: aquelas ideologias que convencionou-se chamar de esquerdas (socialismo,
comunismo, e, ao contrário do que ele advoga, nazismo e fascismo) não foram responsáveis pelas maiores atrocidades da história humana; não urdiram a “cultura de medo, de sofrimento e de morte para as grandes maiorias”; não foram responsáveis pelos programas de todas as grandes organizações multilaterais, como a Organização das Nações Unidas; não possuem todo um exército de intelectuais orgânicos – nas universidades, nos governos, nas organizações não-governamentais, nas organizações internacionais e nos partidos políticos, todos a serviço da elite globalista; não concebem a democracia como um instrumento de ocasião que se deve utilizar para promover a revolução desde dentro, segundo o melhor do receituário gramsciano; não são responsáveis pela grotesca hipertrofia estatal que, sob a alegação de “proteger os fracos e os oprimidos”, é justamente a principal causa das distorções bizarras que solapam a democracia – como a corrupção, o abuso de poder e o tráfico de influência. Nenhum desses dados da realidade, perfeitamente verificáveis e disponíveis a quem quer que tenha a mínima disposição para procurá-los, perfazem, de fato, a realidade.
A despeito do fato de que a defesa irredutível de tais ideias seria, em uma sociedade madura e sadia, uma indicação indubitável de senilidade, quiçá de um seriíssimo transtorno mental de fundo psicótico, o mago lusitano do saber é apenas um dentre inúmeros representantes daquela casta chamada intelectualidade. São os pareceres, as obras e o trabalho de pessoas como ele que são ruminados no mundo acadêmico, adotados pelos governos nacionais e transformados em linhas-mestras de planejamento e ação das organizações supranacionais. Não é preciso ser um gênio, um acadêmico, muito menos um conservador – que, de acordo com essa sapiente elite, é a raça mais tacanha e ignorante já surgida na face da terra –, para se dar conta disso: basta ler o jornal.
Contra magicae methodiMeu texto acima tratou de como a linguagem irracional, tão carregada de lacunas e contradições, típica dos “intelectuais”, é forjada não para convencer, mas para enfeitiçar. Pegue um livro de algum bruxo-intelectual famoso, venerado, alçado aos mais áureos pedestais da nossa zelosa elite pensante – Paulo Freire, por exemplo – e você poderá se deparar com joias deste quilate:
A intencionalidade transcendental da consciência permite-lhe recuar indefinidamente seus horizontes e, dentro deles, ultrapassar os momentos e as situações, que tentam retê-la e enclausurá-la. Liberta pela força de seu impulso transcendentalizante pode volver reflexivamente sobre tais situações e momentos, para julgá-los e julgar-se. Por isto é capaz de crítica. A reflexividade é a raiz da objetivação.
Se a consciência se distancia do mundo e o objetiva, é porque sua intencionalidade transcendental a faz reflexiva. Desde o primeiro momento de sua constituição, ao objetivar seu mundo originário, já é virtualmente reflexiva. É presença e distância do mundo: a distância é a condição da presença. Ao distanciar-se do mundo, constituindo-se na objetividade, surpreende-se, ela, em sua subjetividade. Nessa linha de entendimento, reflexão e mundo, subjetividade e objetividade não se separam: opõem-se, implicando-se dialeticamente.
(Paulo Freire, “Pedagogia do Oprimido”)
Hoje, descobri que um dos melhores professores da Universidade de Brasília – e, talvez por isso mesmo, um dos menos (re)conhecidos da instituição –, Luís Augusto Sarmento Cavalcanti de Gusmão, doutor em Sociologia do Conhecimento pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Departamento de Sociologia da UnB, acabou de lançar um livro que trata de assunto análogo ao que abordei em meu texto anterior. Seu livro chama-se “O fetichismo do conceito: limites do conhecimento teórico na investigação social” e foi lançado pela editora Topbooks. De acordo com o site da editora, este livro, fruto de mais de uma década de observações sobre o mundo dos chamados cientistas sociais, reafirma que a moderna investigação sociológica não precisa romper com o universo conceitual e linguístico do leigo experiente e bem informado. E mais: suas conclusões podem ser formuladas na linguagem corrente, dispensando jargões pedantes e esotéricos.
O professor Luís de Gusmão critica em seu livro a exaustiva utilização de “uma terminologia técnica esotérica” que visa a “fornecer definições e esclarecimentos conceituais completamente inúteis para qualquer pessoa fluente na linguagem natural empregada nas rotinas da vida cotidiana, matriz de todo jargão sociológico aproveitável, dotado de algum conteúdo empírico, numa tola e despropositada afetação de rigor e exatidão científicos. Essa verdadeira compulsão por definições supérfluas não raro acaba funcionando como um autêntico álibi para substituir as interpretações empíricas inteligentes da vida social, algo difícil de realizar, mas sempre valioso, por exegeses de textos de teóricos, algo bem mais fácil e, quase sempre, de utilidade duvidosa”.
Um trabalho desse calibre, produzido por um sociólogo (cujas grandes referências são pensadores da estatura de Isaiah Berlin, Alexis de Tocqueville e Joaquim Nabuco) que leciona em uma universidade que é bastião e menina-dos-olhos da esquerda no Brasil, é praticamente um milagre, um desses eventos que nos renova a esperança de que a academia volte a ser local de produção legítima de conhecimento, não de incessante ruminação e masturbação intelectualóide. Aliás, é de bom alvitre notar que a Secretaria de Comunicação da Universidade de Brasília não escreveu uma única linha a respeito do lançamento do livro do professor Luís de Gusmão. Bom, talvez não seja à toa, no fim das contas.
17 de junho de 2012
Felipe Melo
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