"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 17 de junho de 2012

SONHO AINDA ESTÁ LONGE DE ACABAR


Me escreve Alex:Olá Janer. Bom dia.

Muito pior do que você em Berlim junto às bicicletas, na minha meninice, em Bonn, eu andava de bicicleta nos locais para pedestres. E os alemães não eram nada silenciosos nos seus xingamentos. Acredite, demorei muito tempo para descobrir o porquê deles. Gostaria de relatar uma experiência pessoal, que considero curiosa, em relação às bicicletas. O fato ocorreu há cinco anos.

À época, trabalhava em uma fábrica de uma grande multinacional européia, na Grande São Paulo. Tal fábrica era bastante grande (uma via pública a dividia pela metade) e de topografia absolutamente plana. Era natural então que houvesse muitas bicicletas dentro da empresa, fosse para utilização dos seguranças, dos "office boys" internos, ou dos operários cujas atividades demandassem deslocamentos entre um setor e outro.

Eu tinha um cargo de relativa importância e meu setor tinha a "propriedade" de 3 bicicletas, o que era mais do que suficiente para nossas necessidades. Assim sendo, durante anos a fio, quando precisava me deslocar internamente, eu acabava usando uma delas. Era o mais óbvio a fazer (na minha curta visão). A bicicleta estava disponível, cansava-me muito menos e, talvez o mais importante, era muito mais rápido.

O que minha imaturidade na época não me permitiu enxergar foi que eu era o único "não-operário" que fazia uso das bicicletas dentro da empresa.

Quando procurei por outros empregos, descobri que um dos defeitos que meu antigo empregador apontava era que eu deveria ser "louco" porque eu usava bicicletas dentro da empresa. Acrescenta-se que a empresa gabava-se de, apesar de européia, era mais brasileira que muitas nacionais.

Abraços.
Alex
Pois, Alex, em mundo que um homem vale pelo carro que tem, só pode ser maluco quem insiste em andar de bicicleta. O Brasil, aos poucos, está chegando à conclusão que o uso da bicicleta é inteligente. Isso boas décadas após a Europa. Como escrevi em crônica anterior, fui visto como louco quando, em Porto Alegre, nos anos 70, defendia a bicicleta como meio preferencial de transporte. Mesmo hoje, apesar da incipiente consciência da utilidade das magrelas, ainda é difícil desvincular o brasileiro da idéia de carro. Vivemos em um país onde até mesmo ecologistas e malucos outros cultores de Gaia têm carro. Seu raciocínio é simples: todos os carros do mundo constituem ameaça ao meio ambiente. Menos o meu.

Sou totalmente analfabeto em matéria de carros. Só consigo identificar o Fusca e a Kombi. Os demais, para mim, são todos iguais. Ou melhor, há um outro que reconheço, os Mercedes. Pelo logotipo. Em função disso, cheguei a criar atritos com companheiros de universidade.

Porto Alegre, anos 60. Um colega deu-me carona em seu carro. Conversando com a Baixinha, disse-lhe que, se um dia optasse por um carro, queria um daqueles, como o de meu colega. Era amplo e confortável. Só que não sabia que carro. Fui então perguntar ao cara. Ofendeu-se.

- Como que não sabes qual é meu carro? Te dei carona ontem.

E daí? Não sabia. Com certo desprezo, disse-me que era um Simca Chambord. Ou algo por el estilo, já não lembro mais. E nunca mais falou comigo. Aqui em São Paulo, participei esporadicamente da mesa de um português de posses. Morava a três quadras de nosso bar e vinha sempre em seu útero metálico. Certa vez, deu-me carona. Eu morava a quatro quadras, mas aceitei para não bancar o indelicado.

Sei lá que carro era. Só sei que o painel parecia o de um Boeing, cheio de luzes, ponteiros e botões. Para não ofender, nem perguntei pela marca. Fingi ser óbvio que reconhecia seu status.

O luso, aposentado e cheio de grana, só fazia o percurso de sua casa ao boteco, eventualmente ao shopping Higienópolis, que também ficava ao lado de sua casa. Esperava na fila do parking mais tempo do que se fosse a pé. Conversa daqui, conversa dali, convenci o homem a viajar. Por que não conhecer Paris antes de morrer? Podia ainda aproveitar e revisitar a terrinha. O bom luso aderiu à idéia.

De Paris voltou arrasado. Já no aeroporto recebeu um primeiro choque. O carro do taxista era o mesmo seu. Seu status quebrou-se em cacos, sentiu-se o mais miserável dos homens. Eu o imagino chegando em uma cidade na Alemanha, onde quase todos os táxis são Mercedes.

Sou oriundo de uma geografia onde ser alfabetizado era como ter um olho em terra de cegos. Desde muito cedo intui que conhecer é mais desejável que ter. Uma boa biblioteca, para mim, vale mais do que um iate ou casa na praia. Considero mais inteligente viajar do que ter carro. Nunca tive carro, não sei sequer dirigir, mas conheço bastante bem o planetinha. Com carro não se vai longe. Melhor dois pés na Europa que quatro rodas no Brasil. Melhor conhecer cinco ou seis línguas do que ter dez ou vinte imóveis e ser monoglota.

Nenhum de meus ancestrais – absolutamente nenhum – teve carro e não pretendo fugir à tradição. Depois do cavalo, o único meio de transporte individual que usei foi a bicicleta. Não por conveniências urbanas, mas por necessidade. Era meu recurso para ir de meus pagos até Dom Pedrito. Meus primos todos – e não eram poucos – só tinham um sonho na vida, o automóvel. Todos o conquistaram, em detrimento até mesmo da educação. O que importava eram as quatro rodas. Nunca foram muito longe do próprio terrunho. A pé, fiz a Europa várias vezes e mais um pouco do mundo. A cada vez que pensava em carro, tinha a percepção de que, com o preço de um, poderia zanzar, a dois, pela Europa. Por estas e por outras, jamais me ocorreu comprar essas carroças metálicas.

Não falta quem me pergunte: como viver em São Paulo sem carro. Ora, se há milhões de paulistanos que têm carros, também há milhões que não os têm. Vivo como estes últimos. Bem entendido, jamais pensei em bicicleta. Não sou suicida. Em uma cidade inteligente, eu talvez optasse por uma. Mas nem disso precisei. Nas cidades em que vivi, o transporte coletivo era eficaz e confortável.

Convivo com várias pessoas que jamais pensaram em carro. Mas isto é inconcebível para os homenzinhos de todos os dias. Certa vez, fiz uma cirurgia de menisco. Cirurgia ambulatorial e muito divertida. Recebi anestesia peridural e vi o médico raspando algumas protuberâncias de meu joelho numa tela de televisão. Contamos piadas durante a cirurgia e em dado momento, para consolar-me, ele me avisou:

- Dentro de três dias estás dirigindo.
- Muito bem, Doutor. O Brasil precisa de santos. Vou recomendá-lo junto ao Vaticano.
Ele não entendeu.
- É que nunca dirigi. O senhor terá operado um milagre. Mais um outro e estará habilitado à canonização.

Melhor ainda foi o reencontro com uma antiga namorada, que não via há mais de trinta anos. Ela parecia ter algumas contas a ajustar e lá pelas tantas acusou-me de assediá-la.

- Lembras daquele dia em que ias me levando em teu carro para um motel?

Logo eu que jamais entrei em motel. Quanto a “meu” carro, dispenso comentários. A moça deve ter-se enredado nas lembranças de amores passados e me atribuiu carro e motel.

A situação mudou um pouco nos últimos anos. Se bem que um grupo de fanáticos está fazendo da bicicleta uma religião e passando a acusar os motorizados de inimigos da humanidade. Ora, não é bem assim. Para começar, nossas cidades ainda não estão preparadas para a bicicleta. Continuando, uma coisa é passear aos domingos com um byke de grife, outra é ir até o trabalho a 30 ou 50 quilômetros de distância, faça chuva faça sol. Os moleques que estão fazendo uma defesa histérica da bibicleta estão defendendo seu direito ao lazer, sem ver o lado de quem tem de trabalhar.

O fato é que o brasileiro é burro na hora de construir cidades. Brasília, por exemplo. Cidade plana, deveria ter sido concebida para bicicletas. Niemeyer, o stalinista atroz, planejou-a para o sonho americano, o automóvel. Meio século depois de construída, enfrenta engarrafamentos colossais. Comunistas vêm curto.

Ainda ontem, em entrevista ao site Spresso SP, Horácio Augusto Figueira, engenheiro de tráfego, vice-presidente da Associação Brasileira de Pedestres e defensor do uso intensivo de ônibus em corredores como parte da solução para o trânsito urbano, comenta a questão do transporte público versus o particular -- e decretava: "O sonho do automóvel acabou em São Paulo".

Santa ingenuidade. Acabou coisa nenhuma. Estão entrando mais de 700 carros em circulação, por dia, em São Paulo. O sonho só vai acabar quando o brasileiro tiver consciência de que vale mais do que uma lataria. E isso não é para já.


17 de junho de 2012
janer cristaldo

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