"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 5 de junho de 2012

O CURIOSO JORNALISMO DE ROMEU LANGLOIS

Um jornalista pode interrogar um civil ante homens armados ameaçadores? Não. A deontologia do jornalismo condena o emprego de métodos desleais para obter uma informação.

France 24
me convidou ontem à noite para participar de um debate direto com três especialistas sobre o tema das FARC e a Colômbia [1]. Romeu Langlois, o jornalista seqüestrado há 32 dias pelas FARC e libertado ontem (30.05) no Caquetá, foi o fio condutor da discussão. Langlois era o correspondente na Colômbia de France 24, um canal público de televisão, o equivalente francês de CNN.

Agradou-me ver que, desta vez, entre os que fomos convidados, não houve um só defensor das FARC. Todos reconheceram o caráter terrorista e narcotraficante dessa organização, suas origens comunistas, suas derrotas políticas e militares recentes, e o apoio permanente que recebem da ditadura venezuelana. Houve até elogios, por parte de alguns deles, ao governo do ex-presidente Álvaro Uribe, que combateu as FARC com decisão e êxito até abandoná-las nas selvas e em zonas de fronteira.

Durante o debate, Vanessa Burggraf, a jornalista apresentadora, intercalou uma breve entrevista direto de Bogotá com Romeu Langlois e passou depois o extrato de uma reportagem dele e Chris Moore, de outubro de 2010, intitulada “A marcha sem fim dos guerrilheiros das FARC”.

Essa reportagem, que eu via pela primeira vez, mostrou bastante bem o tipo de trabalho jornalístico que o senhor Langlois fazia na Colômbia. As imagens duraram menos de dois minutos. Entretanto, isso bastou para que os quatro nos déssemos uma idéia dos métodos empregados por Langlois.

A câmera mostra uma coluna das FARC caminhando por uma montanha do Cauca. O grupo entra num povoado indígena. Os guerrilheiros se instalam e controlam o lugar. Em off, Langlois faz esta descrição:

“Em que pese a modernização do Exército, nas montanhas do Cauca a guerrilha ainda está em sua casa. Há décadas que os rebeldes percorrem estas terras miseráveis. Para os indígenas que vivem na região eles fazem parte da paisagem. Com freqüência, as FARC se instalam ao redor das casas por mais comodidade. Os camponeses não podem escolher. Mas é a ocasião para ganhar uma comida gratuita”.


Langlois mostra uma guerrilheira dando um prato de comida a um camponês. Langlois prossegue: “Certamente, os abusos das FARC são freqüentes porém aqui é o Exército quem é visto como uma verdadeira força de ocupação”.

Para corroborar o que diz, Langlois passa o microfone a um homem vestido de civil. Não sabe-se quem é, nem se é um habitante do lugar ou um miliciano.
Este declama:

 “Neste governo de Uribe o Exército agrediu verdadeiramente a nós, os indígenas. Eles enviam soldados drogados que roubam as casas. Se uma moça passa por ali a violentam. Há umas senhoritas por aí que nos dizem que os guerrilheiros são maus mas para mim isso não é verdade. O que é certo é que se não obedecem às guerrilhas eles nos castigam. Aqui eles são a lei. Então, há que se sujeitar assim (sic)”.

Em seguida, Langlois, de novo em off, remata com esta frase não menos surpreendente:
“A maioria dos guerrilheiros são indígenas que ainda falam sua língua. Ingressar nas FARC, aqui, é uma maneira de melhorar sua vida cotidiana”.

Após isso a câmera dá a palavra a Marcela, uma jovem guerrilheira de uniforme. Como recitando um roteiro preparado ela lança: “Em casa não temos todas as vantagens que temos aqui; aqui nos dão saúde, educação, é como um colégio, a pessoa aprende muitas coisas”.
Langlois encerra com esta proposição: “Apesar dos riscos, os jovens, sem futuro, continuam ingressando nas FARC. Estes garotos de 14 anos dentro de um ano se converterão em guerrilheiros. No momento só estão em período de prova”.
Um jornalista pode interrogar um civil ante homens armados ameaçadores? Não. A deontologia do jornalismo condena o emprego de métodos desleais para obter uma informação [2].
O respeito à verdade vê-se comprometido quando uma fonte, um civil, neste caso, é interrogado na presença de guerrilheiros. Pois o civil - ou até um guerrilheiro - não pode dizer senão o que os chefes guerrilheiros querem ouvir. Em caso contrário, o civil, ou o guerrilheiro, sofrerá as conseqüências de sua “indisciplina”.
A reportagem de Langlois/Moore resulta assim em peça de propaganda das FARC. O que se pode esperar de uma “entrevista” realizada nessas condições? Nada diferente do que disse o civil, que provavelmente teria dito o contrário se tivesse estado rodeado de militares. Esse civil não pode ser considerado como uma fonte confiável ou fidedigna.
A mensagem subliminar que se depreende dessa combinação de imagens e frases calibradas é esta: o Exército colombiano é uma força de ocupação em seu próprio país; a guerrilha FARC, ao contrário, recebe o apoio dos camponeses, pois ela alimenta o povo, lhe dá educação e saúde e oferece aos jovens sem futuro um futuro. Os jovens guerrilheiros são voluntários, não foram recrutados à força e devem passar por um “período de provas” de um ano antes de ser admitidos definitivamente. Os jovens guerrilheiros vivem melhor no seio das FARC do que em liberdade.
Para o governo da Colômbia, para o governo dos Estados Unidos e para a União Européia, as FARC são uma força terrorista e depredadora. Durante 50 anos as FARC cometeram centenas de milhares de atrocidades contra os colombianos, de todas as condições, idades e classes sociais. As FARC não melhoram, senão que deterioram a vida dos camponeses. Fora Langlois, quem duvida a esse respeito?
Langlois trata de fazer passar na Europa uma visão idílica e obsoleta das FARC, um movimento armado subversivo que, além disso, durante mais de 40 anos tratou de subjugar as comunidades indígenas do Cauca mediante ameaças, assassinatos, seqüestros, incêndios e torturas, como denunciam os líderes indígenas colombianos. Essas comunidades são para as FARC um filão para reforçar suas fileiras [3].
Após ser libertado, Langlois disse que o “conflito colombiano” não está sendo coberto pela imprensa. Isso não é certo. Sua frase denigre injustamente os jornalistas colombianos que, durante 50 anos, com abnegação, audácia e não poucos sacrifícios em vidas humanas têm feito bem seu trabalho. Langlois aponta talvez para outra coisa. Seu enfado é contra a probidade dos jornalistas. Ele espera provavelmente que essa “cobertura” se faça desde o ângulo que ele expõe em sua reportagem e com esses métodos. Nesse caso, onde ficarão as regras de “liberdade, verdade, imparcialidade e pluralismo”?
Não acredito, francamente, que os jornalistas que trabalham na Colômbia vejam em Langlois o exemplo a seguir.

Eduardo Mackenzie
05 de junho de 2012


Notas:

[1] Eles são Michel Gandilhon, investigador do Obervatório Francês da Drogas e da Toxicomania; Jean-Jacques Kourliandsky, investigador do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, e Jean-Pierre Ferro, membro da Inter Lira Risk Consultancy. Eduardo Mackenzie é jornalista e escritor. É autor de Las FARS fracaso de un terrorismo (Random House-Mondadori, Bogotá, 2007).

[2] Ver a Carta de Deveres Profissionais dos Jornalistas Franceses de 1918, do Sindicato Nacional de Jornalistas, completada em 1938. Ver também a Declaração dos deveres e direitos dos jornalistas. aprovada em Munique em novembro de 1917 e adotada pela Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), pela Organização Internacional de Jornalistas (OIJ) e pela maior parte de sindicatos de jornalistas da Europa.

[3] Veja o debate em France 24 em:


Parte 1:
http://www.france24.com/fr/20120601-debat-partie-1

Parte 2: http://www.france24.com/fr/20120601-debat-partie-2

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