Enão se diga que todos combinaram entre si, pois aqui e ali há insinuações de uns contra os outros, cada um querendo salvar a sua pele. Mas, ontem, houve um advogado que se portou de maneira diferente, provavelmente porque conhece bem aquele tribunal.
Inocêncio Mártires Coelho, procurador-geral da República no governo Figueiredo, representando o ex-deputado José Borba, propôs-se simplesmente a pôr uma dúvida na cabeça dos ministros do STF:
“Se conseguirmos abalar a convicção desses julgadores, certamente estaremos servindo à causa da justiça e do Estado de direito, não há lugar para soberanos e nem para tiranos, assim como no amplo discurso do debate de nada valem os argumentos de autoridade.”
Mas ele não apresentou qualquer dado novo para abalar convicções, apenas tratou de ressaltar a impossibilidade de um juiz ser imparcial:
“(...) Parece mais cauteloso, até para reduzir os efeitos perversos, aceitar que todo julgador é parcial. Parcial porque só vê as coisas das perspectivas em que ele se encontrar, no pedaço de realidade que ele recorta. Porque tem ampla liberdade para escolher as normas aplicáveis ao caso e mais liberdade ainda para valorar os fatos da causa.”
E mesmo os fatos, segundo Nietzsche, lembrou ele, não existem, mas, sim, a interpretação dos fatos. Segundo ele, “por mais que se esforce para ser objetivo, o juiz estará sempre condicionado pelas circunstâncias em que atua”.
Mártires Coelho foi mais longe na tentativa de retirar do inquérito todo resquício de consistência: “Por mais cuidadoso que seja, (qualquer inquérito) é sempre uma peça de ficção e como tal deve ser tratado. Não é a realidade mesma, é apenas uma narrativa, em que há muitas outras possíveis, mas igualmente falíveis, sobre fatos que ocorreram fora dos autos, mas que não equivalem à realidade.”
Ele lembrou dito muito usado no mundo jurídico, “o que não está nos autos não está na vida”, para contradizê-lo: nem sempre a vida está nos autos, o que seria um limitador para a decisão dos juízes. E, citando “o intuitivo Lucio Bittencourt”, disse que “a interpretação deveria ser considerada a última fase do processo legislativo”.
O julgamento, uma grande oportunidade de estabelecer marcos de valores, morais, éticos, políticos, para a vida nacional, como diz a corregedora do Conselho Nacional de Justiça, terá que ser decidido por interpretações dos juízes diante de um borbotão de fatos que, conectados, resumem o estado indigente de nossa vida política.
Os advogados tratam o caixa dois de campanhas eleitorais como “conduta corriqueira, socialmente consentida”, lamenta Eliana Calmon, para quem o escândalo “soa como corrupção”.
A tese do “domínio final do fato”, que levou o procurador-geral a acusar o ex-ministro José Dirceu de “chefe da quadrilha”, serviu também para que o advogado de Roberto Jefferson, Luiz Francisco Barbosa, acusasse o ex-presidente Lula como o verdadeiro mandante dos crimes cometidos.
“Não só sabia como ordenou o desencadeamento de tudo isso que essa ação penal escrutina. Aqueles ministros eram apenas executivos dele.”
Para provar sua tese, Barbosa fez relato ligando fatos e consequências, apelando para o bom-senso dos juízes, pois não tem “atos de ofício” que provem sua acusação. E acusou Gurgel de prevaricação por ter “sentado em cima” de um pedido formal para incluir Lula entre os réus do mensalão.
A sequência, segundo Barbosa, foi esta: dirigentes do BMG pediram audiência com Lula, que dias depois emitiu medida provisória permitindo a bancos em geral entrar no mercado de crédito consignado.
Um advogado interpretou, todavia, que só podiam oferecer crédito consignado os bancos que já operavam nessa área. Os dirigentes foram novamente a Lula, que emitiu decreto reiterando a permissão pela qual o BMG entrou nesse mercado.
E em seguida o PT obteve empréstimos do BMG e do Banco Rural. “É evidente o entrelaçamento entre esses fatos”, disse ele.
14 de agosto de 2012Merval Pereira, O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário