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Artigos - Cultura
É do meu direito esperar que as pessoas interessadas em apontar erros nos meus escritos façam algum esforço de conhecer a minha filosofia para não cair na esparrela de roê-la pelas beiradas sem nada dizer de substantivo contra aquele que desejam desmoralizar.
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O sr. Moreira, a esta altura, está ansioso por saber como vou me safar de ataques que ele imagina irrespondíveis. Com certeza aposta que, emudecido ante a sua monumental erudição histórica, estou apenas enrolando, desconversando, fugindo ao confronto. Ele que pense o que quiser. Não estou com pressa de lhe oferecer respostas que, no fim das contas, só me valerão a acusação de bater em crianças, como acontece ao término de cada discussão em que me meto.
Por enquanto, devo apresentar ainda algumas considerações preliminares, no mínimo com a intenção de aproveitar um desafio pueril como ocasião para elucidar alguns pontos de interesse geral, infinitamente mais relevantes que a pessoa do desafiante. Aliás, se eu não procedesse assim, se ao contrário eu tomasse o sr. Moreira como assunto e não como mero pretexto para falar de outras coisas, este escrito perderia todo interesse para o público geral e se tornaria desesperadoramente tedioso até para os amigos do sr. Moreira.
Vamos, pois, às novas considerações preliminares.
Desde logo, o sr. Moreira, como a totalidade dos meus detratores até agora, não parece ter a menor idéia de como se combate uma filosofia, muito menos de como se reduz a pó uma reputação de filósofo. No intuito de ajudá-los nesse empreendimento, que para muitos, entre os quais o próprio sr. Moreira, parece constituir o objetivo máximo de suas vidas, forneço-lhes aqui algumas regras práticas, consagradas universalmente ao longo de séculos de crítica filosófica.
Em primeiro lugar, uma filosofia, por definição, é um esforço de reduzir um vasto campo de conhecimentos – idealmente, o essencial da cultura de uma época – a umas quantas chaves ou princípios gerais que, se não explicam tudo, ao menos colocam o filósofo e seu público numa posição vantajosa para a compreensão do conjunto.
Esses princípios dizem respeito à estrutura geral da experiência humana, tal como se apresenta, por um lado, no objeto do conhecimento, o ser, ou mundo, ou universo, ou como se queira chamá-lo, e, por outro lado, no modus operandi do próprio processo da cognição. Uma filosofia é essencialmente isto: uma concepção do ser articulada com uma concepção do conhecimento. É desses dois marcos que o filósofo parte para a investigação da moral, da política, da religião e de quantos mais assuntos lhe interessem. Idealmente, tudo o que ele diz e escreve remete aos princípios gerais e não pode ser compreendido fora da ordem integral que eles fundamentam.
Onde não se encontra um sério empenho de elucidar esses dois pontos e fundamentar neles tudo o mais, não há filosofia nenhuma: há apenas opiniões gerais, mais organizadas ou menos, mais razoáveis ou menos, mais geniais ou menos, sobre tópicos de moral, de política, de religião, de arte ou do que quer que seja. Por isso é que não é muito certo chamar de filósofos autores como Nicolau Maquiavel, Michel de Montaigne ou Albert Camus, por mais valiosas que sejam as suas idéias. O que eles nos oferecem são percepções, são insights sobre vários aspectos da experiência humana, sem nenhum intuito de buscar os fundamentos por trás de tudo.
Há decerto filosofias mais sistemáticas e menos sistemáticas, mais organizadas e menos organizadas, mais coesas e menos coesas. Há também filósofos que tentam expor suas idéias em série didática, de modo que a ordem dos seus escritos corresponda mais ou menos à hierarquia das suas concepções; outros espalham suas idéias aqui e ali, conforme os estímulos de ocasião, dando a impressão de desordem e ocultando a unidade do conjunto.
O modelo dos primeiros é Kant; dos segundos, Leibniz. É com grande surpresa que os estudiosos, reconstituindo a ordem das idéias por trás da desordem dos papéis, acabam descobrindo que a filosofia de Leibniz é, no fundo, até mais integrada que a de Kant.
Qualquer que seja o caso, compreender uma filosofia é, sempre e invariavelmente, buscar a sua unidade profunda por trás da ordem ou desordem dos escritos que a veiculam.
Em última instância, até mesmo opiniões esporádicas que o filósofo tenha emitido sobre assuntos muito distantes do núcleo central das suas preocupações estão ligadas de algum modo a esse núcleo, que lhes dá seu peso específico e lugar no conjunto.
Quando são opiniões flagrantemente erradas, elas podem ser sintomas de erros mais profundos arraigados no coração mesmo do sistema ou podem ser lapsos ocasionais que não afetam a validade da filosofia como um todo. Um exemplo clássico é o de Hegel quando afirmou, na sua Filosofia da História, que na África negra não tinha existido nenhuma civilização de grande porte.
O erro foi mais tarde impugnado in loco pelo antropólogo Leo Frobenius, mas qual o sentido dele no conjunto da filosofia de Hegel? Seria inocente carência de informações? Seria um preconceito racista? Nem uma coisa, nem a outra.
Hoje entende-se que os princípios mesmos da filosofia da História de Hegel impunham à sua visão dos dados históricos uma seletividade deformante: o erro de detalhe revela uma falha do conjunto. Mas a falha não configura uma mentira proposital, pois Hegel não dispunha mesmo das informações depois coletadas por Frobenius.
Outro exemplo: Karl Marx, em O Capital, diz que na sua época a condição econômica dos operários na Inglaterra estava piorando. Hoje sabe-se, pelas estatísticas, que ela estava era melhorando muito.
Aqui também os princípios mesmos da filosofia de Marx impunham a convicção de que o capitalismo causava empobrecimento crescente, de modo que Marx, em vez de seguir os fatos, os deformou à imagem de uma idéia preconcebida. Mas neste caso houve mentira proposital, pois hoje se sabe que Marx conhecia perfeitamente bem aquelas estatísticas, que havia estudado por anos a fio nos relatórios do parlamento inglês.
Em outros casos, erros aparentes, quando examinados à luz do sistema, revelam não ser propriamente erros, mas expressões parciais ou deficientes de verdades sutis. David Hume diz que provavelmente não temos nenhum ego consciente. Tomada assim em sentido genérico, a afirmativa é um erro, mas no contexto da filosofia integral de Hume ela é uma crítica ao cogito de Descartes e, nesse sentido específico, permanece válida.
São três exemplos de que mesmo erros não podem ser bem compreendidos sem um conhecimento suficiente da estrutura profunda da filosofia de onde emergem.
Tudo o que estou dizendo é, para os estudiosos, o arroz-com-feijão do aprendizado filosófico.
Sendo assim, é do meu direito esperar que as pessoas interessadas em apontar erros nos meus escritos façam algum esforço de conhecer a minha filosofia para não cair na esparrela de roê-la pelas beiradas sem nada dizer de substantivo contra aquele que desejam desmoralizar.
Para isso, no entanto, teriam de ler uma boa quantidade das minhas apostilas de aulas e provavelmente acompanhar o meu Seminário de Filosofia. Mas a maioria deles não pode fazer isso, pois teme contaminar-se com as minhas idéias ou lhes sente uma repugnância instintiva sem para isso precisar conhecê-las.
Só lhes resta, então, apegar-se a uma ou outra afirmativa solta, tentando descobrir nela erros lógicos ou factuais que, mesmo se fossem genuínos e comprovados, em nada deporiam contra o conjunto do meu pensamento.
Malgrado essa abstinência ascética de conhecimentos sobre aquilo que criticam, muitas dessas pessoas não hesitam em tirar, daquelas miúdas amostras, a conclusão de que sou um péssimo filósofo ou mesmo de que não sou filósofo de maneira alguma.
Essa atitude, que por si já revela total despreparo para lidar com qualquer filosofia que seja, é endêmica entre meus detratores, especialmente os cinco mil ativistas da “Olavo de Carvalho nos Odeia”.
O sr. Moreira é o exemplo mais nítido.
À sua volúpia de falar contra mim não corresponde, na mente dele, nenhum interesse equivalente por ler aquilo que escrevo. A totalidade das fontes textuais em que ele apóia seu extenso e detalhado julgamento da minha obra e da minha pessoa não ultrapassa umas trinta linhas, espalhadas em artigos e comentários radiofônicos.
Talvez em compensação, inclui algumas frases extraídas de outros autores, como Julio Severo, Graça Salgueiro e o deputado Bolsonaro, que aparentemente ele imagina serem a minha própria pessoa multiplicada em clones, dublês, pseudônimos, duplos etéricos ou coisa assim.
Mais ainda, a enxurrada de palavras que ele despeja sobre a minha cabeça não versa sobre nada da minha filosofia, nem da minha obra educacional, nem da variedade de estudos que realizei sobre tópicos de literatura, religião e história cultural.
Enfoca exclusivamente algumas opiniões esporádicas que emiti sobre a escravidão islâmica, o golpe de 1964, o governo Obama e outros assuntos bem distantes das minhas preocupações centrais.
Mesmo supondo-se que aquelas trinta linhas estivessem repletas de asneiras, preconceitos e erros escabrosos, catalogar ideologicamente o autor de doze livros publicados e não menos de trinta mil páginas de apostilas transcritas de cursos e conferências, condená-lo in totum e negar-lhe até mesmo a condição de filósofo com base tão-somente naquela amostragem microscópica já seria um feito divinatório notável, capaz de reduzir Mãe Dinah a um humilhante segundo lugar.
A escorregadela africana de Hegel é um dos vexames historiográficos mais patentes de todos os tempos, mas nem os críticos mais ferozes do filósoso de Jena jamais pensaram poder condená-lo com base naquelas páginas apenas, sem ter lido as outras.
Já o sr. Moreira, com aquela valentia fácil de quem não sabe onde está se metendo, não recua diante de desafio similar. Ele vai ler uns quantos artigos, ouvir uns programas de rádio e, com base nisso, adivinhar todo o restante da minha obra e condená-la em bloco.
Decerto um dos motivos pelos quais ele não hesita em arriscar assim tão temerariamente sua reputação acadêmica é o fato de que não tem nenhuma. Não encontro na internet qualquer menção a livros de sua autoria, e uma breve consulta ao site do Lattes fornece o currículo de vários Gustavos Moreiras que não são ele. A existência acadêmica e até física do sr. Moreira era inteiramente confidencial até a breve menção que fiz a ele no meu programa de rádio, a qual resultou para ele na maior glória bloguística que ele já alcançou nesta vida.
Meu currículo, ao contrário, é um documento público, onde constam realizações, prêmios, louvores da crítica e reconhecimentos acadêmicos, que o sr. Moreira não poderá igualar mesmo que viva muitas vidas. E todos eles, para grande indignação desse meu crítico, foram obtidos “sem diploma”. O sr. Moreira, que possui lá o seu sem que ninguém no mundo acadêmico internacional, nacional, estadual, municipal ou distrital ligue a mínima para isso, tem razão de se queixar. Ó mundo injusto!
Talvez consciente de uma penúria curricular que pode levar o leitor às lágrimas, o sr. Moreira não se fia muito nos seus próprios argumentos e prefere apoiá-los em extensas citações de autoridades na matéria, que ele escaneia diretamente das páginas de livros e reproduz no seu blog.
Essa medida seria prudentíssima e louvável, se não fosse pelos seguintes inconvenientes:
Primeiro. Numa discussão que versa sobre escravidão islâmica, quantos estudos especializados sobre esse assunto aparecem na bibliografia citada? Nenhum. Ou são livros sobre o tráfico atlântico, que só mencionam o concorrente islâmico de passagem, ou são obras históricas genéricas sobre a escravidão africana, que não concedem ao caso islâmico a atenção detalhada que se requer para uma discussão atualizada do tema (é o caso de A Manilha e o Libambo, de Alberto da Costa e Silva, obra aliás notável sob outros aspectos, que aborda o tráfico islâmico numas poucas páginas no meio de um total de oitocentas).
Deve parecer estranho, ao menos aos leitores habituados ao debate acadêmico (ou mesmo jornalístico) de Primeiro Mundo, que um sujeito autodesignado como profissional da historiografia entre numa discussão sem nenhum anteparo bibliográfico especializado, armado tão-somente de obras gerais que ele toma ingenuamente como a última palavra no assunto. Mas, no ambiente universitário brasileiro, a conduta dele não é nem um pouco atípica nem desonrosa. Ele confessa que só lê em português, o que já o torna superior a 38 por cento dos seus colegas, que não fazem nem isso.
Segundo. Das obras estrangeiras, a mais recente que ele cita é de 1999 – a de Paul Lovejoy, publicada em tradução brasileira em 2002, alheia portanto a tudo o que se descobriu da escravidão islâmica nos últimos treze anos. Para piorar as coisas, Lovejoy, por sua vez, baseia-se em estatísticas dos anos 70: o hiato entre suas opiniões e as pesquisas recentes amplia-se, portanto, de treze anos para quatro décadas.
Terceiro.
O homem confessa que mal passou na seleção de mestrado arranhando um pouco de espanhol e de francês e aceita, até com certo orgulho, o rótulo de “erudito monoglota”, sem notar que é um oxímoro proposital. Nessas condições, não tem mesmo acesso à bibliografia especializada mais recente, que não chegou ao Brasil. Claramente ele ignora todas as obras que citei no programa True Outspeak de 25 de julho, e ainda cai na esparrela de alegar contra elas, de novo, os dados que havia encontrado em obras anteriores, os quais justamente elas contestam e impugnam sem que ele o saiba.
Quarto. Os procedimentos bibliográficos do cidadão são um tanto exóticos. Nada sabendo do antropólogo franco-senegalês Tidiane N’Diaye, que citei naquele programa, e não tendo condições de lê-lo na edição original, o elemento vasculhou rapidamente a internet e ficou todo feliz de encontrar um vago homônimo, Pap Ndiaye, brandindo-o vitoriosamente contra mim, sem nem sequer notar que este Ndiaye tem em comum com o primeiro ainda menos que a semelhança do nome: jamais publicou qualquer estudo sobre a escravidão islâmica, sendo toda a sua obra de erudito voltada à condição dos negros nos Estados Unidos e na França. Aliás, nesse mesmo ponto o anseio histérico de autojustificação leva o rapaz a fazer de si próprio o objeto de uma piada involuntária, ao dizer que estava impedido de ler o verdadeiro N’Diaye por encontrar-se convalescente de uma operação na bacia. Não entendo como a recuperação do seu órgão sentante poderá ajudá-lo a entender melhor uma língua da qual ele acaba de confessar que sabe nada, ou quase nada -- mas, afinal, cada um lê por onde pode, não é mesmo?
Quinto. Para provar que estou redondamente enganado ao dizer que um debate mais fundamentado sobre a escravidão islâmica é coisa muito recente, datando dos últimos quinze anos, o sr. Moreira me esfrega na cara, com os ares triunfais de sempre, o fato de que estudiosos anteriores a esse período, como Lovejoy e Costa e Silva, já haviam tratado do assunto. Nem lhe passa pela cabeça que tratar do assunto nos anos 70, 80 ou 90 é uma coisa, estar atualizado com os dados mais recentes é outra totalmente diversa. Uma terceira ainda é saber que estes dados contradizem muitas opiniões correntes entre os que haviam “tratado do assunto” anteriormente, nos quais o sr. Moreira continua a confiar como se tivessem dito a última palavra a respeito. Uma quarta coisa, por fim, é levantar um debate acadêmico contra a distorção ideológica terceiromundista da história da escravidão, debate do qual o sr. Moreira mostra não ter tido jamais a menor notícia. Ante a minha afirmação de que esse debate existe, o sr. Moreira não levanta senão o argumentum ad ignorantiam, tomando sua ignorância dos desenvolvimentos recentes na área da sua própria especialidade como prova de que eles jamais aconteceram.
Na verdade, todos os principais estudiosos que lidaram com essa matéria nos últimos anos se queixam, como Herbert S. Klein, de que “mesmo hoje, malgrado um quarto de século de pesquisas internacionais sofisticadas, o fosso entre a opinião comum e o conhecimento erudito permanece tão profundo quanto no momento em que o tráfico de escravos foi colocado em questão nos círculos cultos da Europa, no século XVIII.
Aí não houve somente o fracasso do diálogo entre os universitários e o público letrado, mas houve também uma surpreendente ignorância no seio mesmo do mundo acadêmico”. Já em 2004 Olivier Pétré-Grenouilleau observava: “Enquanto o ‘cidadão comum’ e o não-especialista acreditam, com freqüência, tudo saber a respeito [do tráfico de escravos], mitos e lendas persistem, ao passo que espessas brumas continuam a obscurecer aspectos essenciais.” (1)
Nunca pretendi ser nada mais que um mero “cidadão comum” alheio aos estudos especializados, mas a ninguém esse rótulo cabe mais apropriadamente do que ao monoglota cujas fontes de informação estão limitadas ao mercado editorial popular de um país notoriamente deficiente nessa área, aonde as obras chegam, quando chegam, com trinta ou quarenta anos de atraso. Este sim está reduzido a papaguear “mitos e lendas”, sem ter a menor idéia de que ninguém mais, nos meios científicos, lhes dá o menor crédito.
A própria candura real ou fingida com que ele cita estudos mais antigos para fazer de conta que assim compensa seu desconhecimento dos dados recentes mostra que sua visão do assunto não é de maneira alguma a de um estudioso acadêmico sério, mas apenas o de um discutidor barato empenhado em validar, por todos os meios lícitos e ilícitos, a ideologia terceiromundista que faz do tráfico transatlântico o flagelo supremo e atenua, capciosamente, os crimes bem maiores cometidos pelos muçulmanos contra a população africana.
[Continua.]
02 de agosto de 2012
Olavo de Carvalho
Nota:
(1) Olivier Pétré-Grenouilleau, Traites Negrières. Essai d’Histoire Globale, Paris, Gallimard, 2004. Não sou sádico o suficiente para fazer as citações na língua original, forçando o meu eruditíssimo detrator a pedir socorro.
(1) Olivier Pétré-Grenouilleau, Traites Negrières. Essai d’Histoire Globale, Paris, Gallimard, 2004. Não sou sádico o suficiente para fazer as citações na língua original, forçando o meu eruditíssimo detrator a pedir socorro.
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