Em julho, o
estelionatário Sérgio Augusto Coimbra Vial foi preso mais uma vez pela polícia
carioca.
Não aproveitou a
oportunidade que lhe dera o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal
Federal (STF), que há cinco anos, em habeas corpus do qual se orgulha, anulou
sentença que condenara Vial a dez anos de prisão por clonar cartões de
crédito.
O ministro sustentou
que as provas foram obtidas ilegalmente porque os agentes entraram à força no
apartamento onde Vial se hospedava, na Zona Sul do Rio, para colher uma máquina
de clonagem, chamada de chupa-cabra, sem autorização judicial.
Para chegar à
conclusão de que a prova era ilícita por violação de domicílio, protegido pelo
artigo 5º da Constituição, Mello se inspirou no conturbado ano de 1968, quando
era estudante e morava na Pensão do Abelardo, na Rua Condessa São Joaquim, no
Bexiga (SP).
Até hoje, o ministro
se lembra da tensão que sofria quando a república era invadida por agentes do
Dops atrás de agitadores do movimento estudantil. Se Mello não teve o quarto
invadido, embora tenha sido obrigado a permanecer de pé, tenso, até o fim da
batida, um vizinho não teve a mesma sorte. José Dirceu, outro hospede de
Abelardo, já fazia parte da lista negra da repressão.
O destino voltaria a
confrontá-lo com a trajetória de Zé Dirceu. Passados 44 anos, Mello é um dos dez
juízes com o poder de levar para a prisão o ex-vizinho, acusado de corrupção
ativa e formação de quadrilha. Ele foi um dos responsáveis para que esse
julgamento acontecesse, ao votar em 2007 pelo acolhimento da
denúncia.
Quatro meses mais
velho do que Dirceu, Mello chegou à pensão em 1964 após uma temporada de estudos
nos Estados Unidos. De uma família de Tatuí (a 131 quilômetros da capital),
mudou-se para São Paulo aos 18 anos e se inscreveu no cursinho Toloza, na Rua
São Bento, porque queria entrar para a Faculdade de Direito da USP.
Seu projeto não
diferia dos sonhos de Dirceu, que chegara pouco antes, também do interior (a
mineira Passa-Quatro), queria estudar Direito e também se abrigara no
Abelardo.
Mello, que passaria
cinco anos na pensão, descreve o quatro, dividido com outro hóspede, como "um
cubículo com dois catres". Dirceu e Mello viviam em alas diferentes e se
conheceram nas salas do cursinho Toloza.
O futuro presidente
do PT trabalhava como office-boy.
- Naquele mesmo dia,
nos encontramos na pensão e conversamos - recorda-se Mello.
As vidas deles
seguiriam rumos distintos em 1965, quando Mello ingressou na USP e Dirceu, na
PUC-SP.
O futuro ministro
priorizava os estudos, e o vizinho de pensão, a carreira de líder estudantil. O
calor das ruas logo bateria à porte do Abelardo.
No livro "O que
fizemos de nós", que complementa a obra "1968: o ano que não terminou", de
Zuenir Ventura, Mello descreveu o trauma causado pelas visitas noturnas dos
agentes do Dops.
Mesmo tendo passado
ao largo das agitações, ele contou que extraiu uma "dura lição": "Uma
Constituição sob uma ordem autocrática não vale absolutamente nada. A polícia e
os organismos militares detinham poderes totais sobre os
indivíduos".
Em 1969, enquanto
Mello diplomava-se, Dirceu ia para o exílio no México, em troca da libertação do
embaixador norte-americano Charles Elbrick.
Para Mello, o regime
militar representou muito mais do que o conceito abstrato, meramente teórico,
estudado nos livros de História e de ciência política:
"Enfrentamos uma
época realmente dura, em que pessoas eram arbitrariamente privadas de seus
direitos", relatou a Zuenir.
Tal experiência
alavancou a vocação de Mello pela preservação dos princípios constitucionais,
como o direito a um julgamento justo, valor agora em jogo no julgamento do
ex-vizinho dos temos duros do Abelardo.
O Globo
( Chico Otavio
)
10 de outubro de 2012
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