Artigos - Ciência
Se hoje é dada uma autoridade absurda e injustificável à cientistas, Eliane, seguindo a linha de Sagan e Dawkins, é co-responsável por esta situação.
Em época de guerra cultural, vale tudo, até mentir sobre como funciona a opinião pública para capitalizar politicamente, e é isso que podemos ver no texto 'O terremoto que abalou a Ciência', escrito pela humanista Eliane Brum para a revista Época em 29 de outubro.
Ela fala do caso do tribunal italiano que condenou sete especialistas (quatro cientistas, dois engenheiros e um funcionário público) a seis anos de prisão por homicídio culposo. Agora, como não poderia deixar de ser, em uma era em que muitos tentam transformar a ciência em religião (e cientistas em novos papas, ou seja, pessoas que não podem ser questionadas), surgem protestos contra a prisão destes especialistas.
O truque, praticado inclusive por Eliane, é bastante simples. Ela confunde o método científico (em que nada é considerado como verdade absoluta) com os cientistas em si, e é aí que ela mete o pé na jaca. Se o método científico de fato não defende verdades absolutas, seres humanos (incluindo cientistas) podem tomar partido em questões e realizar afirmações.
No caso, o governo usou estas sete pessoas para afirmar textualmente para a população “Não há motivos para alarme nenhum”. Neste caso, assumiram a responsabilidade por sua declaração. Mais ainda: o governo usou esta declaração para que as pessoas não evacuassem a região.
Assim, se “não há formas de se prever ou não um terremoto” (como alega a defesa), então qualquer mensagem tranqüilizadora é um ato gravíssimo, que deve ser punido. A lógica é clara: “Se não temos como dizer se X ou Y vai ocorrer, afirmarmos (quando em uma posição de autoridade) que ninguém deve se preocupar com X, é assumir as conseqüências de X ocorrer”.
Eliane tenta jogar com o emocional do leitor ao dizer que o crime dos cientistas acusados foi “não ter previsto o terremoto que destruiu a cidade de L’Aquila” – sendo que surge a argumentação de defesa: “a Ciência, hoje, não tem meios para prever um terremoto. Logo, os cientistas não podem ser responsabilizados por algo que está além da sua capacidade”.
Mas isso é uma completa manipulação dos fatos, pois ninguém acusou os cientistas de não terem feito aquilo que não era possível fazer, mas sim de terem lançado uma mensagem tranqüilizadora, usando-se para isso ao mesmo tempo a credencial científica como o suporte do governo (ou seja, dois apelos à autoridade), para dizer: “não há motivos para se preocuparem”. Sendo verdade que é impossível prever um terremoto, a única posição aceitável seria a de não lançarem mensagem de tranquilização alguma.
Como se nota, a punição aos sete foi completamente justificada, a não ser na cabeça daqueles que entendem o cientista como alguém que não pode ser punido ou julgado pelos seus atos, por causa da seguinte lógica: “Se o método científico não aceita verdades absolutas, então cientistas não podem ser responsabilizados por quaisquer erros de julgamento”, em uma dissonância cognitiva entre o método científico e o ser humano em si. Este último, ao contrário do método, pode influenciar decisões em momentos críticos, e assumir uma postura de autoridade para fazer sua palavra ser ouvida. Se esta situação envolve vidas e constitui extremo risco, a incerteza que sustenta o seu parecer não deveria ser um atenuante, mas um agravante.
Claro que o draminha não poderia faltar, incluindo o tradicional apelo à conseqüência, “Se punirmos os cientistas, traremos conseqüências à ciência”, o que é tanto patético quanto mentiroso.
O fato é que a ciência não deixa de evoluir ou não com aquilo que fazemos do conhecimento científico (chegaram a usar o conhecimento de Einstein para produzir a bomba atômica e isto não diminuiu a busca pela energia nuclear, muito pelo contrário).
Se sete pessoas optaram por dar uma mensagem indevida de tranquilização quando não tinham condições de fazê-lo, isso não fará nada no sentido de interromper as pesquisas sobre terremotos.
Eliane tenta uma jogada interessante, ao citar uma carta de Alan Leshner, CEO da American Association for the Advancement of Science, com os principais argumentos para a não-criminalização dos cientistas. Segundo ela Leshner apresentou “colocações pertinentes e sensatas”. Será? Vamos testar com o guia de falácias em mãos?
Eis os 3 argumentos de Leshner, com as devidas refutações:
- Alegação: “As acusações são injustas e ingênuas, na medida em que não há método científico capaz de prever terremotos com precisão”.
Refutação: se não há método científico capaz de prever terremotos com precisão, então a única posição possível seria um “agnosticismo” em relação ao terremoto, e não um parecer de tranquilização, principalmente por causa dos eventos que haviam ocorrido pouco antes.
- Alegação: “Não é razoável esperar mais do que os cientistas podem fazer com o conhecimento atualmente disponível”.
Refutação: Sendo assim, mais um motivo para tomarem cuidado com suas declarações.
- Alegação: “Condenar cientistas por supostamente falharem em previsões hoje impossíveis terá efeitos perigosos para o conjunto da Ciência, na medida em que inibirá a livre troca de ideias e a circulação de conhecimento, fundamentais para o avanço de pesquisas científicas de grande interesse público.”
Refutação: Falácia do apelo à consequência, e completamente injustificada, pois o que estava sob o julgamento eram cientistas que usaram um conhecimento específico, e não o conhecimento específico em si. Logo, um julgamento de pessoas irresponsáveis, e não o julgamento de um conhecimento robusto e poderoso.
Eis então que Eliane vira a questão do avesso e, ao invés de culpar os responsáveis pela tragédia, culpa a população, em uma tentativa de transferência de culpa.
Segundo ela, os culpados estão na população de L’Aquila, que ficaram na cidade mesmo após o primeiro tremor mais forte, por que deveriam assumir os conselhos dos cientistas não como um fato, mas como uma “incerteza, como diz o método científico”. Ora, bolas, mas se o governo fez uso dessas opiniões de especialistas para dizer aos habitantes “fiquem em suas casas”, então qual o sentido do uso governamental dos cientistas para o endosso à essas decisões?
Ou seja, Eliane não resolve a questão com sua prece humanista, que ela tenta abaixo:
A ciência e o método científico são o oposto do dogma. Esta é justamente a sua beleza. Ao contrário da religião, onde a premissa do fiel é a fé, na ciência é preciso duvidar. O processo científico não é impulsionado por certezas, mas por dúvidas. E é por causa delas que usufruímos das descobertas impressionantes que se fazem presentes em todas as áreas do nosso cotidiano. Enquanto na religião é imperativo crer, na ciência é obrigatório duvidar, testar, provar. A incerteza é, portanto, matéria primordial da ciência. É sua força – e não sua fraqueza.
No momento de um debate público, em que se questiona a confiabilidade da tomada de decisão de alguns cientistas, que foram irresponsáveis, ela pára a argumentação para fazer um ato solo (no formato de prece cientificista) na qual tenta “desligar” o cérebro do leitor com um parágrafo inteiro de falsas dicotomias, que não tem nenhuma outra utilidade senão fazer uma injustificável idolatria aos cientistas, como “seres repletos de dúvidas, portanto mais confiáveis”, quando o que estamos investigando é exatamente o oposto. Este não é um julgamento sobre a religião, e nem sobre a ciência, mas sim sobre um conjunto de cientistas em alinhamento com o governo italiano.
Quando ela pára a argumentação para o seu ato solo (que só faria sentido em livros de estratagemas como os de Sagan e Dawkins), ela sabe que o seu argumento para a não-punição dos cientistas não existe, como mostrei nas refutações a Leshner. Pelo contrário, ao apontar a ciência como um lugar onde é “imperativo duvidar, testar, provar”, e esta “é sua força”, ela nos dá mais motivos para questionarmos a irresponsabilidade destes cientistas.
O que ela sugere, então, é que, no momento em que tomavam a decisão, os habitantes ficassem declamando Sagan e Dawkins como se fosse uma oração? Era um momento de crise em que a questão era “deve-se tranqüilizar” ou “entrar em alarme” e não um momento para capitalização política humanista. Neste momento, ao fazer seu ato solo, Eliane abandonou o centro de sua argumentação, e nos deu mais motivos ainda para exigir a condenação dos cientistas, agora sim, diante das palavras dela, mais irresponsáveis ainda.
Quando ela diz, depois de seu ato solo, que “a ciência foi interpretada a partir das premissas da religião” pelos habitantes, ela impõe a culpa aos habitantes, não aos cientistas. Ela mente ao leitor, pois quando se fala em ciência, que todas as idéias “devem ser questionadas”, isso significa que todas as idéias devem ser questionadas por pessoas que se especializaram na área. O que ela sugere é que automaticamente todos os habitantes da cidade virassem especialistas em sismologia, para apresentarem papers científicos questionando os métodos existentes, ao invés de tomarem uma decisão simples como “vamos ouvir o governo, e ficar” ou “vamos ignorar o que o governo disse, e sair”?
Eliane está jogando com hipnose, não argumentação. Ela pega um contexto do dia-a-dia dos cientistas em qualquer área de especialização, e joga a responsabilidade de se executar o mesmo jogo para o cidadão comum. Exatamente este que paga seus impostos para que o governo faça o seu trabalho.
Mas, segundo ela, ficar na cidade foi um “ato de má fé” da população, não dos cientistas. Sabe por que? Resposta que cairia melhor em uma psicopata: “A Ciência demanda razão – e eles escutaram a palavra dos cientistas como crentes”. Mas esperem um pouquinho. Quando um grupo de “cientistas” (que Eliane apóia, pois senão não faria seu ato solo copiado exatamente do discurso cientificista) diz que consegue até “provar a inexistência de Deus”, como é que não consegue “provar a ocorrência ou não de um terremoto”? Como não sou discípulo de Dawkins (ao passo que Eliane é), eu sei que cientistas não podem dizer se Deus existe ou não, e também que existem incertezas a respeito da possibilidade de se prever um terremoto. Sei disso, e que isso não conspira contra a ciência. Mas é gente como Eliane que faz o oposto, ao usar pessoas que simulem representação de ciência para falar de todas as questões.
Portanto, quando ela acusa a população de “ver a ciência como se veria a religião”, ela sabe que está transferindo uma culpa, de forma injustificável e covarde. Quem sempre tentou colocar a ciência no lugar da religião, de forma irresponsável, são os mesmos autores que ela idolatra. Quando ela fez seu ato solo, executou o mesmo truque cientificista que tenta fazer a patuléia se rebaixar a cientistas como se fossem os novos clérigos. Se hoje o cidadão comum vê em cientistas os substitutos dos padres, isso é um equívoco,
mas ela é co-responsável pela difusão desse equívoco.
Em busca de capitalização política incessante, à todo momento que um humanista e/ou cientificista (embora todo humanista seja um cientificista) começa a discursar, entra com um ato solo no qual tenta “desligar” o cérebro da patuléia com falsas dicotomias entre ciência e religião. Logo, se hoje é dada uma autoridade absurda e injustificável à cientistas, Eliane, seguindo a linha de Sagan e Dawkins, é co-responsável por esta situação.
Se a ciência, “seus limites e seus enormes desafios são mal interpretados pela população”, é por que faltam mais refutadores que fazem um trabalho similar ao deste blog, denunciando fraudadores da ciência, que tentam impor a ciência como uma nova forma de religião. Ao colocar uma prece cientificista no meio do texto, Eliane colocou-se do lado destes que tem usado a ciência não como ela deveria ser utilizada, mas como meio de obtenção de autoridade moral.
Mas, quando esta autoridade moral é exercida (e a população comum confia em cientistas), basta usar distinções de emergência (como mentir dizendo que a discussão de papers científicos é obrigação dos populares, não dos especialistas) para inocentar cientistas responsáveis pelo uso indevido de sua autoridade.
Em resumo, ela tentou inocentar de forma injustificada um grupo de cientistas, e meteu o pé na m@#$# de vez. Em alguns parágrafos, ela nos mostrou por que ela é uma das causas do problema, e isso ficou ainda mais evidente quando ela colocou uma prece a la Carl Sagan no meio do texto.
Tudo ficou mais complicado para ela quando tentou usar uma vergonhosa distinção de emergência para enrolar o leitor, fingindo que as discussões científicas (estas sim, que não deveriam envolver certezas absolutas) deveriam ocorrer entre a população comum, e não entre os especialistas – aliás, uma pergunta, se for para o frentista do posto de gasolina ficar apresentando papers sobre sismologia para que precisamos de cientistas?
Quando ela diz que a ciência é “mal compreendida, abrindo espaço para novas tragédias humanas”, ela tem parte de culpa nisso. O que aquele conjunto bizarro de falsas dicotomias no ato solo dela tinha por função senão sub-comunicar para a patuléia “olhem, antes você tinha a religião, e agora eu lhe trago a ciência”, junto com um raciocínio de pêndulo executado em ritmo bate-estaca?
Esta fábula, a de que a ciência deve nos dar todas as respostas, é alimentada pelos autores que deram a prece que Eliane faz todo os dias. Ao tentar culpar os habitantes da cidade pelo seu destino, ela deveria olhar para si própria. Mas a previsão é que um humanista jamais olhe para suas próprias culpas.
Escrito por Luciano Ayan
05 Novembro 2012
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