"Como fazer a história de uma atitude negativa?" - pergunta-se George Minois, em Histoire de l’athéisme-. "A história dos que se opõem à... é seguidamente empunhada pelo campo adverso, e tratada com todos os preconceitos de hábito. (...) A dificuldade não é menor na época contemporânea: exceção feita dos movimentos ateus militantes, muito minoritários, como retraçar a história de uma atitude que não parece ter conteúdo positivo? Sonharia alguém, por exemplo, retraçar a história dos que não acreditam nos Ovnis?" Mesmo assim, Minois desenvolve por quase 700 páginas a história dos que se opõem à...
Ateísmo existe desde quando existem deus ou deuses. Verdade que a literatura atéia não é tão abundante quanto a teísta. Mesmo assim é considerável. Assim sendo, me causa espécie uma frase de Luis Fernando Verissimo, em entrevista à Época. O cronista, que eu tinha por pessoa lida, ao ser interrogado se prefere pregadores tradicionais, religiosos, ou a turma dos ateus, profere esta solene bobagem:
– Não havia literatura ateísta antes do Richard Dawkins e do Christopher Hitchens. Acho uma boa novidade. Tudo o que se disser sobre os males do monoteísmo é bem-vindo.
Ora, lucidez existe desde muito antes de Cristo. Minois começa citando os pré-socráticos (é de supor-se que Verissimo ouviu falar deles), desde Anaximandro de Mileto e seu apeiron, até Xenófanes de Colofon, que afirma que que o ser absoluto é o mundo. Bem mais conhecido – e particularmente pelos marxistas antigos, aqueles que liam – é Heráclito, para quem “o mundo não foi feito por um dos deuses, nem por um dos homens; ele sempre foi, é e será; é o fogo sempre vivo, que se acende regularmente e que se apaga regularmente”.
Já no século V a.C., o siciliano Empédocles de Agrigento reafirma a eternidade do mundo incriado, no qual nada se perde, nada se cria, e tudo se transforma:
- Quero te dizer uma coisa: não existe criação, não existe gênese para nada do que é perecível, não mais que o desaparecimento na funesta morte, mas somente uma mistura e uma modificação do que foi misturado existe; mas criação, gênese a respeito disto, não é senão uma denominação forjada pelos homens. (...) Loucos – porque eles não têm pensamento extensivo – aqueles que imaginam que o que não existia antes vem à existência, ou que qualquer coisa pode perecer e ser inteiramente destruída. Pois não pode ser que nada possa nascer do que não existe de nenhuma forma, e é impossível e inusitado que o que é deva perecer, pois ele será sempre, em qualquer lugar que o coloquemos.
Se não ouviu falar dos pré-socráticos, o cronista certamente terá ouvido falar de Sócrates, do qual nos chegou farta literatura. Considerado como um dos pais do pensamento europeu, foi condenado à morte por ateísmo. Em sua sentença, lemos: “Sócrates é culpado de não crer nos deuses reconhecidos pelo Estado e de introduzir novas divindades; é por outro lado culpado de corromper os jovens. Pena: a morte”.
Já tive discussões com teístas que me juraram que, em algum momento, Sócrates teria dito: “Deus disse que...” Sem conhecer grego e sem ter lido o ateniense no original, neguei que tivesse feito tal afirmação. Pois Sócrates, que vivia em um mundo politeísta, jamais poderia falar em um só deus. O que ele afirmou foi: “o deus disse”, e no caso o artigo é fundamental. Referia-se a seu daimon. O que para mim não passa de malandragem. Sócrates sabia muito bem que suas próprias palavras seriam mais levadas em conta se atribuídas ao seu deus particular.
Para Aristófanes, Sócrates é um ateu em tempo integral, como ele mostra em As Nuvens, onde ele o faz dizer: “Os deuses? É por eles que tu vais jurar? Primeiramente, os deuses, essa moeda não tem curso entre nós. (...) Quem, Zeus? Besteira, nem Zeus existe. (...) Queres então reconhecer algum outro deus que não os nossos? O Vazio que aí está, e as Nuvens, e a Língua, e só estes três?” Na mesma comédia, Sócrates dá um curso de ateísmo a Strepsiade para provar-lhe que os deuses não existem.
Verissimo é homem que lê. Impossível que não tenha passado os olhos pelos gregos. De qualquer forma, da antiga Grécia para cá, muita água rolou pela História. Os ateus foram legião. Transcrevo alguns momentos de três dos mais eminentes, o Abbé Meslier, Nietzsche e Ingersoll. Dos quais, suponho, o filho do Erico terá ouvido falar.
JEAN MESLIER (1664-1729)
Em 1729, morreu em Étrépigny, França, o abade Jean Meslier, com a idade de 65 anos. Ao morrer, após mais de quarenta anos à frente de sua paróquia, resolveu dizer o que pensava do cristianismo em um gordo livro, singelamente intitulado Mémoire dés pensées et dés sentiments de Jean Meslier, prêtre, curé d'Étrépigny et de Balaives, sur une partie des erreurs et des abus de la conduite et du gouvernement des hommes où l'on voit des démonstrations claires et évidentes de la vanité et de la fausseté de toutes les divinités et de toutes les religions du monde pour être adressé à ses paroissiens aprés sa mort, et pour leur servir de témoignage de vérité à eux, et à tous leurs semblables.
Meslier, que vivera uma pacata vida de cura de aldeia, uma vez morto se sente livre para expressar o que sempre pensara. E solta o verbo:
- De onde tiramos que um Deus que seria essencialmente imutável e imóvel por sua natureza poderia no entanto mover algum corpo? De onde tiramos que um ser que não teria nenhuma extensão nem parte alguma seria no entanto imenso, e mesmo infinitamente esparso por toda a parte? De onde tiramos que um ser que não teria cabeça nem cérebro seria no entanto infinitamente sábio e esclarecido? De onde tiramos que um ser que não teria nenhuma qualidade nem nenhuma perfeição sensíveis seria no entanto infinitamente bom, infinitamente amável e infinitamente perfeito? De onde tiramos que um ser que não teria nem braços nem pernas e que sequer seria capaz de mover-se seria no entanto todo-poderoso e faria verdadeiramente todas as coisas? Quem teve a experiência disto?
- Depois disso, que pensem, que julguem, que digam e que façam tudo o que quiserem no mundo, pouco estou me preocupando; que os homens se ajeitem e governem como eles quiserem, que sejam sensatos ou sejam loucos, que sejam bons ou que sejam maus, que digam ou que mesmo façam o que quiserem depois de minha morte; não me preocupo; eu já quase não faço parte do que se faz no mundo; os mortos com os quais estou prestes a juntar-me não se incomodam mais com nada, não se intrometem mais em nada, e não se preocupam mais com nada. Terminarei então isto pelo nada, também sou pouco mais que nada, e em breve não serei nada.
ROBERT INGERSOLL (1833-1899)
Sobre a Bíblia:
Algumas famílias de viajantes - pobres, esfarrapados, sem educação, arte ou poder; descendentes daqueles que foram escravizados por centenas de anos; ignorantes como os habitantes da África Central e recém-fugidos dos seus senhores no deserto de Sinai. Seu comandante era Moisés, um homem que havia sido educado pela família do faraó e havia aprendido a mitologia e as leis do Egito.
Com o propósito de controlar seus seguidores ele fingiu que fora instruído e assistido por Jeová, o deus dos fugitivos. Tudo o que acontecia era atribuído à interferência do seu Deus. Moisés dizia que encontrara esse Deus cara a cara; que no topo do Monte Sinai ele recebera as tábuas de pedra nas quais, pelos dedos de Deus, os dez mandamentos haviam sido escritos, e que Jeová havia dito quais os sacrifícios e cerimônias que o agradavam e quais as leis que deveriam governar esse povo.
Deste modo a religião judaica e o código de leis foram estabelecidos. Não foi dito que esta religião e esse código de leis se estenderiam a toda a humanidade.
Naquela época esses andarilhos não tinham qualquer relacionamento com outros povos. Não havia linguagem escrita, eles não sabiam ler ou escrever. Não havia meios de trazer essas mensagens a outros povos, de modo que elas ficaram enterradas no linguajar dessas tribos ignorantes, miseráveis e desconhecidas por mais de dois mil anos.
Muitos séculos depois de Moisés, o líder, estar morto, muitos séculos depois que todos os seus seguidores já não mais existissem, o Pentateuco foi escrito, o trabalho de muitos escribas, e para dar força e autoridade, disseram que Moisés fora o autor.
Sabemos hoje que o Pentateuco não foi escrito por Moisés. Cidades são mencionadas que não existiam na época em que Moisés viveu. Dinheiro, cunhado séculos após sua morte, é citado.
Então, muitas regras não se aplicavam a viajantes do deserto - leis sobre agricultura, sobre o sacrifício de bois, ovelhas e bezerro, sobre tecelagem de roupas, sobre colheitas, sobre o preparo de sementes, sobre casas e templos, sobre cidades e refúgios, e sobre muitos outros assuntos que nada diziam respeito a migrantes famintos do deserto e das pedras.
Hoje admitem os Teólogos inteligentes e honestos que Moisés não foi o autor do Pentateuco, mas todos admitem que ninguém sabe quem eram os autores, quem escreveu qual daqueles livros, este ou aquele capítulo e linha. Sabemos que os livros não foram sequer escritos numa mesma geração. Que não foram escritos por uma só pessoa. Que está repleto de erros e contradições. Sabe-se que Josué não escreveu o livro que leva seu nome porque trata de eventos que ocorreram muito tempo após sua morte.
Ninguém conhece ou finge conhecer o autor dos julgamentos; o que sabemos é que foi escrito séculos após os julgamentos deixarem de existir. Ninguém conhece o autor de Ruth, nem o primeiro e segundo de Samuel; o que sabemos é que Samuel não escreveu os livros que levam seu nome. No 25º capítulo do primeiro Samuel é citada a criação de Samuel pela bruxa de Endora.
Ninguém sabe quem foi o autor do primeiro e segundo livro dos Reis ou o primeiro e segundo livro das Crônicas; tudo o que sabemos é que esses livros são de nenhum valor.
Sabemos que os Salmos não foram escritos por David. Nos Salmos a escravidão é citada, e isto não aconteceu até quinhentos anos após David ter ido dormir com seus pais.
Sabemos que Salomão não escreveu os livros dos Provérbios ou as Canções; que Isaías não foi o autor do livro que leva seu nome; que ninguém sabe o autor de Eclesiastes, Jó, Ester, ou qualquer outro livro do Velho Testamento, com exceção de Ezra.
Sabemos que Deus não é mencionado ou de qualquer outra maneira citado no livro de Ester. Sabemos também que o livro é cruel, absurdo e impossível. E sabemos que Eclesiastes foi escrito por um não-crente.
Sabemos que os judeus não decidiram quais dos livros eram inspirados – autênticos - até o segundo século depois de Cristo.
Sabemos que a idéia da inspiração teve um crescimento gradual, e que a inspiração havia sido determinada por aqueles que tinham certos fins a atingir.
FRIEDRICH NIETZSCHE (1844 – 1900)
Lei contra o cristianismo
Datada do dia da Salvação: primeiro dia do ano Um (em 30 de Setembro de 1888, pelo falso calendário).
Guerra de morte contra o vício: o vício é o cristianismo.
Artigo Primeiro - Qualquer espécie de antinatureza é vício. O tipo de homem mais vicioso é o padre: ele ensina a antinatureza. Contra o padre não há razões: há cadeia.
Artigo Segundo - Qualquer tipo de colaboração a um ofício divino é um atentado contra a moral pública. Seremos mais ríspidos com protestantes que com católicos, e mais ríspidos com os protestantes liberais que com os ortodoxos. Quanto mais próximo se está da ciência, maior o crime de ser cristão. Conseqüentemente, o maior dos criminosos é filósofo.
Artigo Terceiro - O local amaldiçoado onde o cristianismo chocou seus ovos de basilisco deve ser demolido e transformado no lugar mais infame da Terra, constituirá motivo de pavor para a posteridade. Lá devem ser criadas cobras venenosas.
Artigo Quarto - Pregar a castidade é uma incitação pública à antinatureza. Qualquer desprezo à vida sexual, qualquer tentativa de maculá-la através do conceito de "impureza" é o maior pecado contra o Espírito Santo da Vida.
Artigo Quinto - Comer na mesma mesa que um padre é proibido: quem o fizer será excomungado da sociedade honesta. O padre é o nosso chandala - ele será proscrito, lhe deixaremos morrer de fome, jogá-lo-emos em qualquer espécie de deserto.
Artigo Sexto - A história "sagrada' será chamada pelo nome que merece: história maldita; as palavras "Deus", "salvador", "redentor", "santo" serão usadas como insultos, como alcunhas para criminosos.
Artigo Sétimo - O resto nasce a partir daqui.
01 de novembro de 2012
janer cristaldo
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