O governo brasileiro defende que a posse de Chávez — prevista constitucionalmente para 10 de janeiro — seja adiada por até 6 meses, sob o argumento de que “não há um processo de descontinuidade se ele não tomar posse formalmente”, já que foi reeleito.
Estabelece o artigo 231 da Constituição venezuelana: “O candidato eleito tomará posse do cargo de presidente da República em 10 de janeiro do primeiro ano de seu período constitucional, mediante juramento na Assembleia Nacional. Se, por qualquer motivo inesperado, o presidente da República não puder tomar posse na Assembleia Nacional, o fará no Supremo Tribunal de Justiça (STJ).”
Adiciona o artigo 233: “Serão faltas absolutas do presidente: morte, renúncia, destituição decretada por sentença do STJ (...), incapacidade física ou mental (...), e o abandono de cargo (...). Quando houver a falta absoluta do presidente eleito antes da posse, haverá uma nova eleição universal, direta e secreta, nos 30 dias consecutivos seguintes. (...) será encarregado da Presidência da República o presidente da Assembleia Nacional”.
Chávez se recupera de um câncer em Cuba. A total falta de transparência a respeito de seu estado de saúde não permitiu, contudo, ocultar a absoluta ausência de condições que o impossibilitam de tomar posse no cargo em 10 de janeiro.
Em afronta à ordem constitucional, o plano chavista é que o presidente da Assembleia Nacional mantenha-se indefinidamente no acúmulo das duas funções (legislativa e executiva), até que o presidente possa tomar posse — que não passaria de uma “formalidade dispensável”, merecendo prevalecer a vontade popular expressa nas eleições de outubro passado.
Cumprir a Constituição não é mera “formalidade”, mas condição essencial ao Estado Democrático de Direito, que tem como pilar ser o “governo das leis”, e não o “governo dos homens”, como observa Bobbio.
O Estado de Direito guia-se pelo respeito às leis a todos aplicáveis, de forma geral e abstrata, o que assegura densidade e estabilidade democrática, contribuindo para o fortalecimento das instituições. Não pode ser refém das vulnerabilidades das conjunturas momentâneas e das conveniências políticas. A vontade de Constituição não pode ser submissa à vontade de poder.
No hiperpresidencialismo latino-americano a gerar o fenômeno das “democracias delegativas”, em que o poder Executivo é cada vez mais agigantado, faz-se essencial proteger as regras do jogo constitucional quanto à sucessão e substituição do presidente da República.
A própria Constituição brasileira — tal como a venezuelana — na hipótese de impedimento do presidente e do vice-presidente da República ou vacância dos respectivos cargos apresenta uma ordem de substituição, a começar pelo presidente da Câmara dos Deputados.
Ao reconhecer que a substituição é sempre precária e temporária — até porque seria um grave risco à separação dos poderes a concentração das funções legislativas e executivas na mesma pessoa —, a Carta brasileira requer eleições (ver artigos 79 e 81 da Constituição).
No caso da Venezuela, a absoluta incapacidade de Chávez de tomar posse no cargo implica a vacância do mesmo. A vacância do cargo demanda a realização de eleições, como expressamente estabelece a Constituição. Não se trata de “apego formal à Constituição”, como entende o governo brasileiro, mas da necessária defesa da democracia.
Como alertou o presidente da Conferência Episcopal da Venezuela, “neste caso estão em jogo o bem comum do país e a defesa da ética. Alterar a interpretação da Constituição para alcançar um objetivo político é moralmente inaceitável”.
Em 2012, a Venezuela passou a integrar o Mercosul. Como bloco regional, o Mercosul ambiciona não apenas fortalecer a cooperação econômica, como também a democracia, mediante a cláusula democrática enunciada no protocolo de Ushuaia.
Em casos de ruptura ou ameaça de ruptura da ordem democrática, de violação da ordem constitucional ou em qualquer situação que coloque em risco a vigência de princípios democráticos, poderá ser aplicada como sanção a suspensão do bloco — cabe menção à controvertida suspensão do Paraguai em 2012.
Com as responsabilidades de líder regional e ator global, aguarda-se do governo brasileiro o firme compromisso com a causa democrática, superior a uma solidariedade pessoal e afinidade ideológica a simbolizar um nefasto precedente ao futuro da democracia na região.
10 de janeiro de 2013
Flávia Piovesan é procuradora do Estado de São Paulo e professora da PUC-SP
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