"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O SOM ÉPICO DA SUBJETIVIDADE

 
'O som ao redor': filme pernambucano conquista crítica e público discutindo o momento em que a ética emerge em meio à indiferença
Crítico de cinema mais severo do “New York Times”, A.O Scott disse que “O som ao redor”, de Kléber Mendonça Filho, em cartaz, é o primeiro grande filme brasileiro sobre o crescimento recente do país. O “Cahiers du Cinema” identificou na direção “um verdadeiro domínio estético”. A “Variety” destacou a excelência da construção e da fotografia. Tudo isso é muito significativo para a carreira do filme pernambucano, mas é pouco.

É como olhar ao redor da obra e esquecer sua alma: a de um filme universal, um épico psicológico sobre a percepção do sujeito de si mesmo e a tentativa de entender o mundo das relações, seus códigos coletivos e seus juízos. Dentro desse conflito, quando é que a ética emerge decididamente da indiferença reinante, desfazendo os infinitos gargalos nos quais a face oficial das instituições, por seu caráter unívoco e por suas limitações, não pode intervir?

Um exemplo, no filme: por que parece tão óbvio à maioria dos participantes de uma reunião de condomínio de um prédio de classe alta que é preciso demitir um velho porteiro, há 40 anos no emprego, por justa causa, poupando a cada morador R$ 300 de seus direitos? A prova a ser usada para incriminar o velho é um vídeo feito por uma criança de dez anos, o filho de um dos moradores, que mostra o porteiro dormindo em diversas situações. Por que a proposta não escandaliza o grupo?

E por que não é sequer levantada como uma questão moral a evidência de que o menino é um delator, com a aprovação do pai? E, mais importante que tudo isso, porque essa versão “privatizada” das polícias do pensamento típicas das sociedades de estatismo totalitário soa tão verossímil, tão familiar? Vivemos num mundo assim?

Apenas um condômino, um dos protagonistas do filme (cujo roteiro alterna os “olhares” de vários personagens centrais) tem coragem de levantar a possibilidade de que botar o velho na rua daquele jeito seria uma atitude, nas suas palavras, “escrota”. Antes que seus argumentos comecem a ganhar simpatia entre os indecisos ele deixa a reunião para ver a namorada. O líder da degola lembra a todos que a votação não está aberta e sua opinião não será computada.

Por mais nobres que sejam seus motivos (no caso, a ânsia do amor) para abrir mão do debate e do voto, sua decisão tematiza o fosso entre a consciência e a ação prática. O que significa, para a elevação do sujeito, o esforço e a coragem de transpor o abismo, transcendendo a retórica? É possível medir, na hierarquia de desejos e vontades, o que é de fato importante para cada um na construção do destino do outro?

No estudo que faz sobre os clãs familiares, o filme de Kléber realiza uma das mais belas e pungentes cenas da história do cinema brasileiro, quando o patriarca e o neto, sob o véu da velha cachoeira do engenho, celebram a vida com a violência da água e seu poder revigorante — até que a água, antes do corte abrupto da sequência, se transforma em sangue.

Se aquele é o sangue derramado na guerra entre poderes, capital e classes ou simboliza os malfeitos que toda família humana (tribos, parentes, sociedades) comete, mais cedo, mais tarde, não importa. Importa a sedução que qualquer cultura coletiva exerce no estreito túnel entre a consciência individual e o senso comum em determinados momentos ou faces da História, anulando a voz discordante

É difícil enxergar que a “escrotidão” é uma potencialidade inerente a cada ser, assim como a loucura, ou o crime. A diferença está na superação ou não da condição. Em muitos casos, porém, os motivos podem atenuar o crime, ajudar a compreender (ou até glorificar) a loucura e relativizar a “escrotidão”, ou até institucionalizá-la. Na escala macro, as ciências sociais, a psiquiatria, a psicanálise, a política, lidam como podem com os matizes de cada desvio em perspectiva com a cultura vigente. Mas o dia a dia das relações possui muito mais matizes do que as instâncias totalizadoras que procuram domá-las em processos, tratamentos, estudos, leis, atos.

Como julgar a mulher que, no filme, usa um emissor importado de frequências altas para torturar um cão que late e acaba adoecendo? Culpa dela, do cão ou do marido que ronca enquanto ela se esfrega na máquina de lavar sob efeito de um baseado e expõe os filhos à sua neurose e à sua perversão?

Como julgar o patriarca, dono de metade dos imóveis da rua, pelos malfeitos dos moradores? Como julgar os pequenos milicianos que se imiscuem na vida da rua, assombrados por um passado brutal? Como julgar os pobres da comunidade próxima, por seu ressentimento, e os ricos, por sua letargia?

Culpar o estado, o capital, a cultura de um povo, ou a natureza da espécie é fácil. Culpar é fácil. Difícil é enfrentar a subjetividade com orçamento baixo e número de cópias pífio e mesmo assim já somar 30 mil espectadores e lotar sessões. Ia falar também do soberbo desenho de som, ora ambiente, ora sintetizado, que evoca o “real” oculto e está encantando os críticos, mas o espaço acabou.

21 de janeiro de 2013
Arnaldo Bloch, O Globo

Nenhum comentário:

Postar um comentário