Ainda saía fumaça da boate Kiss quando começou o julgamento da tragédia de Santa Maria. Pela imprensa de São Paulo e Rio, especialistas de plantão e autoridades instantâneas soltando veredictos em tempo real. Os primeiros condenados foram os seguranças da boate.
Esses trogloditas não deixaram os jovens sair – afirmavam os justiceiros a mais de mil quilômetros de distância. Esses autômatos a serviço do capitalismo exigiram que as vítimas pagassem a conta! Aí surgiu na TV a imagem de um jovem forte, sem camisa, que se arriscara salvando vidas. Quem era esse herói com a bondade estampada no rosto? Era um segurança da boate Kiss…
Os tele-juízes então remendavam suas sentenças, explicando que “nem todos” os seguranças eram vilões. Mas e os que chegaram a barrar os jovens na saída? Tinham condições de saber de imediato o que se passava, sem a visão completa do local? E se algum segurança tivesse morrido tentando salvar vidas, deixando mulher e filhos sofrendo? Bem, isso fica para depois. O importante para os especialistas remotos é ter culpados no paredão. Afinal, a audiência está indignada e quer se vingar de alguém.
Um dos personagens mais frequentes nas primeiras imagens era o chefe do Corpo de Bombeiros de Santa Maria. Ele explicava os erros da boate, falava de alvará vencido etc. Assim é o tribunal dos estereótipos. Os seguranças são maus, os bombeiros são bons. Mas como autorizaram durante anos o funcionamento de uma casa noturna para mil pessoas com uma única e estreita porta? Como manter aberto um local desse porte com extintores de incêndio que, segundo várias testemunhas, não funcionavam?
O tal show com fogos de artifícios em local fechado não era novidade. Houve tempo mais do que suficiente para surgir uma única alma sensata – entre os sócios da casa, funcionários, bombeiros, fiscais, autoridades municipais, jornalistas, músicos e milhares de frequentadores – para dizer o óbvio: isso não pode dar certo.
As responsabilidades legais terão que ser apuradas, e os culpados diretos terão que ser punidos. Mas a tragédia da boate Kiss também contou com uma boa dose de insensatez coletiva. Entre autoridades e civis, ninguém achou, nunca, que aquela caixa de sapato inflamável com mil pessoas dentro poderia a qualquer momento virar uma ratoeira? E poderia ser por um cigarro escondido, por um curto-circuito ou outras causas invisíveis – mas foi por uma tocha, acesa na frente de todos, como parte de um show conhecido. A estupidez era a atração.
A Kiss era um coquetel de riscos – evidentes – que não foram evitados for uma soma de omissões. Mas tragédia com muitos culpados dificulta o espetáculo do linchamento. Por que o músico da banda foi preso? Porque o show tem que continuar.
E hoje não pode haver show grandioso no Brasil sem a presença do governo popular. Num passe de mágica, poucas horas depois do incêndio, quem estava em todas as manchetes? “Dilma cancela”, “Dilma volta”, “Dilma chora”. E Dilma faz comício para milhares de prefeitos, ordenando-lhes que a tragédia de Santa Maria não se repita. Como é fácil ser presidente.
Já que seu discurso nunca quer dizer nada, o jeito é entendê-la por gestos. Aí tudo fica claro: escondido na aba da presidente, por exemplo, há um ministro com alvará vencido. Após faturar R$ 2 milhões com consultorias fantasmas, Fernando Pimentel foi interditado pela Comissão de Ética da Presidência. O que fez Dilma, a sensível? Interditou a Comissão de Ética – e manteve o ministro pirotécnico no cargo.
Este é apenas um dos muitos exemplos de legalidade que a líder da nação oferece a bombeiros, prefeituras e donos de boate. Sem falar no risco energético que o país corre para sustentar o truque da bondade tarifária.
Assim o governo popular estimula o cumprimento das regras: durante anos, a presidente e seu padrinho mantiveram como sua representante oficial Rosemary Noronha, que atuava sobre as agências reguladoras – as que criam as regras – como negociante de cargos e propinas. As ações dos companheiros de Dilma que não deixam dúvida: driblar a lei dá lucro.
Os donos de boates piratas em todo o Brasil têm, portanto, em quem se espelhar. Por esse ângulo, até dá para entender que Dilma seja a estrela da tragédia.
11 de julho de 2013
guilherme fiuza, Época
Esses trogloditas não deixaram os jovens sair – afirmavam os justiceiros a mais de mil quilômetros de distância. Esses autômatos a serviço do capitalismo exigiram que as vítimas pagassem a conta! Aí surgiu na TV a imagem de um jovem forte, sem camisa, que se arriscara salvando vidas. Quem era esse herói com a bondade estampada no rosto? Era um segurança da boate Kiss…
Os tele-juízes então remendavam suas sentenças, explicando que “nem todos” os seguranças eram vilões. Mas e os que chegaram a barrar os jovens na saída? Tinham condições de saber de imediato o que se passava, sem a visão completa do local? E se algum segurança tivesse morrido tentando salvar vidas, deixando mulher e filhos sofrendo? Bem, isso fica para depois. O importante para os especialistas remotos é ter culpados no paredão. Afinal, a audiência está indignada e quer se vingar de alguém.
Um dos personagens mais frequentes nas primeiras imagens era o chefe do Corpo de Bombeiros de Santa Maria. Ele explicava os erros da boate, falava de alvará vencido etc. Assim é o tribunal dos estereótipos. Os seguranças são maus, os bombeiros são bons. Mas como autorizaram durante anos o funcionamento de uma casa noturna para mil pessoas com uma única e estreita porta? Como manter aberto um local desse porte com extintores de incêndio que, segundo várias testemunhas, não funcionavam?
O tal show com fogos de artifícios em local fechado não era novidade. Houve tempo mais do que suficiente para surgir uma única alma sensata – entre os sócios da casa, funcionários, bombeiros, fiscais, autoridades municipais, jornalistas, músicos e milhares de frequentadores – para dizer o óbvio: isso não pode dar certo.
As responsabilidades legais terão que ser apuradas, e os culpados diretos terão que ser punidos. Mas a tragédia da boate Kiss também contou com uma boa dose de insensatez coletiva. Entre autoridades e civis, ninguém achou, nunca, que aquela caixa de sapato inflamável com mil pessoas dentro poderia a qualquer momento virar uma ratoeira? E poderia ser por um cigarro escondido, por um curto-circuito ou outras causas invisíveis – mas foi por uma tocha, acesa na frente de todos, como parte de um show conhecido. A estupidez era a atração.
A Kiss era um coquetel de riscos – evidentes – que não foram evitados for uma soma de omissões. Mas tragédia com muitos culpados dificulta o espetáculo do linchamento. Por que o músico da banda foi preso? Porque o show tem que continuar.
E hoje não pode haver show grandioso no Brasil sem a presença do governo popular. Num passe de mágica, poucas horas depois do incêndio, quem estava em todas as manchetes? “Dilma cancela”, “Dilma volta”, “Dilma chora”. E Dilma faz comício para milhares de prefeitos, ordenando-lhes que a tragédia de Santa Maria não se repita. Como é fácil ser presidente.
Já que seu discurso nunca quer dizer nada, o jeito é entendê-la por gestos. Aí tudo fica claro: escondido na aba da presidente, por exemplo, há um ministro com alvará vencido. Após faturar R$ 2 milhões com consultorias fantasmas, Fernando Pimentel foi interditado pela Comissão de Ética da Presidência. O que fez Dilma, a sensível? Interditou a Comissão de Ética – e manteve o ministro pirotécnico no cargo.
Este é apenas um dos muitos exemplos de legalidade que a líder da nação oferece a bombeiros, prefeituras e donos de boate. Sem falar no risco energético que o país corre para sustentar o truque da bondade tarifária.
Assim o governo popular estimula o cumprimento das regras: durante anos, a presidente e seu padrinho mantiveram como sua representante oficial Rosemary Noronha, que atuava sobre as agências reguladoras – as que criam as regras – como negociante de cargos e propinas. As ações dos companheiros de Dilma que não deixam dúvida: driblar a lei dá lucro.
Os donos de boates piratas em todo o Brasil têm, portanto, em quem se espelhar. Por esse ângulo, até dá para entender que Dilma seja a estrela da tragédia.
11 de julho de 2013
guilherme fiuza, Época
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