Artigos - Cultura
A dramaturgia rodriguiana foi deglutida e assimilada por certo freudismo rasteiro, que pretende encontrar tragédia – equiparando-a à dos grandes trágicos da Antiguidade – em peças nas quais, muitas vezes, apenas há farsa ou estética do grotesco.
Em famosa entrevista a Otto Lara Resende, disponível na Web, Nelson Rodrigues é questionado: “Você tem um sentimento religioso que não se definiu numa religião. Você não é um praticante”.
Nelson responde: “Eu sou um cristão. Profundamente um cristão.
Agora, comigo tem uma coisa: só entro nas igrejas vazias. Na minha opinião, os crentes e o padre é que estragam a missa”. Surpreso, Otto insiste: “Mas como você concilia [essas opiniões] com a sua condição de cristão?”. E Nelson, evasivo: “Eu não explico o inexplicável, meu caro Otto. Deus não me deu esse dom”.
O núcleo da personalidade rodriguiana, visceralmente contraditória, está inteiro nessas respostas. E também algo do seu poder de persuadir: usando da eloquência que, sem escapar do tema central, aparenta erguer os termos da discussão a um patamar inalcançável a questionamentos, a frase, quase sempre emblemática, revela-se, quando lida com atenção, apenas hábil subterfúgio.
Quem analisa Nelson Rodrigues está, portanto, destinado a se surpreender com o fato irrevogável: obra e vida não se sustentam isoladas da incoerência. “A virtude é bonita...”, diz ele – e o leitor, que espera uma sequência igualmente virtuosa para esta primeira parte do pensamento, decepciona-se ao ler a conclusão: “...mas exala um tédio homicida”.
Seu elogio à prece segue lógica semelhante: “Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes...”, Nelson afirma, para encerrar de forma surpreendente: “...ainda que rezem pelo vampiro de Dusseldorf”. E ele próprio cumpriu em sua vida a discutível escolha anunciada nesta frase: “Entre o desquite e a infidelidade acho esta última muito mais generosa, humana, familiar e social”.
Foi, sem dúvida, antimaterialista e antimarxista, liberal convicto: “Para rejeitar Marx, basta, a meu ver, a circunstância de ele ter ignorado o problema da morte. O homem de Marx é um homem com uma dimensão a menos, um ser simplificado, amputado. É um homem inexistente”. Mas não se deve esperar que tenha a mesma coerência translúcida em relação a tudo. Pode declarar, como um menino encantador:
“O único ideal que eu teria na vida, se fosse possível realizá-lo, era ser um santo. Eu queria ser um sujeito bom. A única coisa que eu admiro é o bom, fora disto não admiro mais nada”. Para se desdizer em outro momento: “Não tenho medo de confessar minha morbidez. Eu a recebo e a compreendo como uma graça de Deus”.
Contudo, ao contrário do que o leitor apressado pode imaginar, este breve ensaio não pretende exigir coerência absoluta – aliás, de todo impossível –, mas identificar alguns dos elementos que permaneceram em luta constante no íntimo de Nelson Rodrigues. Bem pouco lineares, implicaram variada obra, cujos exemplos, os quais podemos ou não apreciar, ocupam postos de importância desigual mas irrefutável na nossa literatura.
Na verdade, trata-se, antes, de resgatar a obra rodriguiana da prisão na qual a intelligentsia brasileira – marxista e materialista – a colocou, exercendo sobre ela a melhor vingança que a esquerda pode e sabe empreender: a de forçar o mimetismo de seus oponentes, transformá-los em dóceis caricaturas, apropriar-se de seus pensamentos.
Veja-se como a dramaturgia rodriguiana foi deglutida e assimilada por certo freudismo rasteiro, que pretende encontrar tragédia – equiparando-a à dos grandes trágicos da Antiguidade – em peças nas quais, muitas vezes, apenas há farsa ou estética do grotesco. E, ainda pior, procura estabelecer um espelhamento falso entre a obra encenada e o espectador: este é, necessariamente, o neurótico que deve libertar suas pulsões; aquela provoca, sempre, a catarse inevitável e salvadora.
Exemplo notável, por sua repetição, é a análise infundada das reações de parcela do público que assistiu, em 1961, à estreia de O beijo no asfalto: na opinião do crítico Sábato Magaldi e do jornalista Ruy Castro, biógrafo de Nelson Rodrigues, os homens que se levantaram para sair no meio do espetáculo – durante a fala da personagem Selminha, quando esta enumera as qualidades sexuais do marido injustamente acusado de homossexualismo – eram “talvez pouco assíduos às suas obrigações domésticas”, sua atitude revelava o “constrangimento provável dos maridos relapsos”.
Ora, não deixa de ser curioso e revelador que o julgamento psicanalítico, apressado e superficial, pretenda se impor – e que em nenhum momento passe pela cabeça desses freudianos a possibilidade de um público indignado com os aspectos vulgares da peça.
Sabemos que, para esses e centenas de outros especialistas em Nelson Rodrigues, a indignação já é sintoma de neurose, de sentimentos reprimidos – mas, talvez sem perceber, eles apenas papagueiam as justificativas do próprio dramaturgo, como neste relato típico da retórica rodriguiana, às vezes recheada de controverso psicanalismo:
“Manuel Bandeira chegou pra mim um dia, quando eu e meus personagens éramos odiados, e disse: ‘Nelson, por que você não faz uma peça em que os personagens sejam assim como todo mundo?’. Eu respondi da forma mais singela: ‘Mas meu caro Bandeira, meus personagens são como todo mundo’. Porque uma coisa é verdade: quem metia ou mete o pau no meu teatro está procedendo como um Narciso às avessas, cuspindo na própria imagem”.
Falácias desse tipo são encontradas a mancheias. O veredicto de Sábato Magaldi – “Ninguém, antes de Nelson, havia apreendido tão profundamente o caráter do país. E desvendado, sem nenhum véu mistificador, a essência da própria natureza do homem” – também é redito sem questionamentos, como se todos, absolutamente todos, estivéssemos representados na inumerável coleção de vícios que Nelson Rodrigues nos legou.
Há uma resposta, no entanto, para a repetição insana desses chavões: o filósofo Olavo de Carvalho está certo quando diz, na aula nº 8 do seu Curso On-line de Filosofia, que, “no Brasil, no fundo, todos escrevem a mesma coisa, não há nada de experiência real ali, mas apenas a identidade de sentimentos grupais.
Essa identidade, sobretudo dos intelectuais de esquerda, se tornou a única realidade, todos têm de sentir do mesmo modo”.
Façamos, contudo, uma ressalva: as generalizações e esquematismos não se repetem quando se trata de estudar as ideias que Nelson Rodrigues defendeu ardorosamente em suas crônicas, muitas delas ferozes libelos antiesquerdistas.
Para citar apenas um exemplo, talvez não seja difícil adivinhar por qual motivo uma das grandes frases rodriguianas, hoje um bordão – “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota” –, não representa, para esses críticos, o “caráter do país” ou a “essência da própria natureza do homem”. Acaso nosso escritor não estava certo quando disse que os idiotas “explodem por toda parte: são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais” e que “o dinheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas”? É no mínimo risível que, no caso da dramaturgia, a generalização se imponha com a força de lei e, em relação às crônicas, procurem-se matizações ou apenas prefira-se o silêncio...
Mas há vozes dissonantes. O que, para Sábato Magaldi, é “um desmascaramento [...] que incomoda os bem-pensantes”, ou, no caso específico de Álbum de família, “mergulho na inconsciência primitiva do homem”, na verdade pode não passar – e muitas vezes realmente não passa – de “um assunto ordinário, conquanto destituído de verossimilhança”, como disse Álvaro Lins no texto “Tragédia ou farsa?”, presente em Os mortos de sobrecasaca.
O crítico pernambucano, que não poupa elogios a Vestido de noiva, aponta, em Álbum de família, “a maciça vulgaridade”, pois “fecha todos os caminhos, não deixa lugar para outra sensação além do desencanto, da decepção e do aborrecimento”; e “só poderá despertar prazer ou interesse lascivo naqueles atingidos por alguma perversão nos últimos graus da baixeza humana”.
Ao final, depois de recordar as qualidades de Édipo Rei, conclui: “Sem estilo, sem técnica teatral, sem imaginação e sem poesia dramática, eis que Álbum de família soçobra num mar de enganos, equívocos, erros, atrapalhações e insuficiências”.
Entretanto, o resgate que proponho – e que deve ser fiel ao próprio Nelson Rodrigues, para quem “toda unanimidade é burra” – exige não apenas recuperar as grandes vozes críticas esquecidas, que destoam do senso comum, mas esmiuçar impiedosamente a obra rodriguiana, a fim de compreender e redimensionar sua relevância literária e humanística. Não poderemos fazê-lo aqui, dada a exiguidade do espaço, restringindo-nos a sugerir um dos possíveis caminhos.
O primeiro passo dessa empreitada exige estabelecer nítida separação entre, de um lado, a produção não ficcional, e, de outro, dramaturgia, contos e romances, analisando o alcance das obras pertencentes ao segundo grupo, que o próprio Nelson Rodrigues classificou, referindo-se a seu teatro, como “pestilentas, fétidas, capazes, por si só, de produzir o tifo e a malária na plateia”.
Há muito de autopromoção escandalosa nessa afirmativa, repetida, aliás, por meio de formas sinonímicas, ao longo da carreira do escritor, mas é possível identificar, nesse grupo de obras, um sombrio calvinismo, que muitas vezes expulsa do horizonte das personagens a possibilidade de redenção.
O controle ou a superação dos instintos, por meio do esforço pessoal ou da graça divina, é inalcançável a esses personagens condicionados por seus impulsos naturais. E quando há um gesto de benevolência – por exemplo, o insólito beijo de O beijo no asfalto –, este é implacavelmente distorcido pela sociedade.
O próprio Nelson Rodrigues afiança tal raciocínio: “Em relação ao homem sempre fui pessimista”. E chama a si mesmo de “moralista protestante” ou “moralista feroz”. Moralismo que produziu, inclusive, efeito nocivo: sua dramaturgia e seus contos folhetinescos – de A vida como ela é – foram assimilados não como crítica a possíveis vícios humanos, mas, sim, como enaltecimento da corrupção moral, “meio de propagação da imaginação diabólica”, no feliz exemplo que Alex Catharino cita – em entrevista concedida ao blog Diálogos exemplares, de Rafael Guedes – ao elucidar a expressão que Russell Kirk buscou em T. S. Eliot para distinguir a “imaginação moral” do “imaginário corrompido”.
O moralismo rodriguiano acaba, portanto, descaindo para um naturalismo exacerbado, com ares deterministas. Nas palavras de Otto Maria Carpeaux, que, ao analisar a dramaturgia de Franz Wedekind e os limites do gênero trágico no século XX – no ensaio Marionette, che passione! –, na verdade faz um estudo oblíquo do teatro de Nelson Rodrigues, seus personagens “estão pendurados do fio do instinto, privados da liberdade trágica”.
Mas terminemos fazendo uma contraposição a essas características rodriguianas. O teólogo Hans Urs von Balthasar lembra, em O coração do mundo, que “nada é trágico em nós, pois toda renúncia recebe um prêmio superabundante, e quanto mais nos aproximamos do centro da pobreza, tanto mais intimamente tomamos posse de nós mesmos, com tanta maior segurança nos pertencem todas as coisas”.
A citação ilumina a profunda discrepância que há entre o herói cristão e o clássico herói trágico – e ela não deve ser esquecida ao reavaliarmos o legado do nosso escritor. Se a encontraremos na obra ficcional e dramatúrgica de Nelson Rodrigues, bem, esse é um outro problema.
05 de abril de 2013
Rodrigo Gurgel
Nelson responde: “Eu sou um cristão. Profundamente um cristão.
Agora, comigo tem uma coisa: só entro nas igrejas vazias. Na minha opinião, os crentes e o padre é que estragam a missa”. Surpreso, Otto insiste: “Mas como você concilia [essas opiniões] com a sua condição de cristão?”. E Nelson, evasivo: “Eu não explico o inexplicável, meu caro Otto. Deus não me deu esse dom”.
O núcleo da personalidade rodriguiana, visceralmente contraditória, está inteiro nessas respostas. E também algo do seu poder de persuadir: usando da eloquência que, sem escapar do tema central, aparenta erguer os termos da discussão a um patamar inalcançável a questionamentos, a frase, quase sempre emblemática, revela-se, quando lida com atenção, apenas hábil subterfúgio.
Quem analisa Nelson Rodrigues está, portanto, destinado a se surpreender com o fato irrevogável: obra e vida não se sustentam isoladas da incoerência. “A virtude é bonita...”, diz ele – e o leitor, que espera uma sequência igualmente virtuosa para esta primeira parte do pensamento, decepciona-se ao ler a conclusão: “...mas exala um tédio homicida”.
Seu elogio à prece segue lógica semelhante: “Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes...”, Nelson afirma, para encerrar de forma surpreendente: “...ainda que rezem pelo vampiro de Dusseldorf”. E ele próprio cumpriu em sua vida a discutível escolha anunciada nesta frase: “Entre o desquite e a infidelidade acho esta última muito mais generosa, humana, familiar e social”.
Foi, sem dúvida, antimaterialista e antimarxista, liberal convicto: “Para rejeitar Marx, basta, a meu ver, a circunstância de ele ter ignorado o problema da morte. O homem de Marx é um homem com uma dimensão a menos, um ser simplificado, amputado. É um homem inexistente”. Mas não se deve esperar que tenha a mesma coerência translúcida em relação a tudo. Pode declarar, como um menino encantador:
“O único ideal que eu teria na vida, se fosse possível realizá-lo, era ser um santo. Eu queria ser um sujeito bom. A única coisa que eu admiro é o bom, fora disto não admiro mais nada”. Para se desdizer em outro momento: “Não tenho medo de confessar minha morbidez. Eu a recebo e a compreendo como uma graça de Deus”.
Contudo, ao contrário do que o leitor apressado pode imaginar, este breve ensaio não pretende exigir coerência absoluta – aliás, de todo impossível –, mas identificar alguns dos elementos que permaneceram em luta constante no íntimo de Nelson Rodrigues. Bem pouco lineares, implicaram variada obra, cujos exemplos, os quais podemos ou não apreciar, ocupam postos de importância desigual mas irrefutável na nossa literatura.
Na verdade, trata-se, antes, de resgatar a obra rodriguiana da prisão na qual a intelligentsia brasileira – marxista e materialista – a colocou, exercendo sobre ela a melhor vingança que a esquerda pode e sabe empreender: a de forçar o mimetismo de seus oponentes, transformá-los em dóceis caricaturas, apropriar-se de seus pensamentos.
Veja-se como a dramaturgia rodriguiana foi deglutida e assimilada por certo freudismo rasteiro, que pretende encontrar tragédia – equiparando-a à dos grandes trágicos da Antiguidade – em peças nas quais, muitas vezes, apenas há farsa ou estética do grotesco. E, ainda pior, procura estabelecer um espelhamento falso entre a obra encenada e o espectador: este é, necessariamente, o neurótico que deve libertar suas pulsões; aquela provoca, sempre, a catarse inevitável e salvadora.
Exemplo notável, por sua repetição, é a análise infundada das reações de parcela do público que assistiu, em 1961, à estreia de O beijo no asfalto: na opinião do crítico Sábato Magaldi e do jornalista Ruy Castro, biógrafo de Nelson Rodrigues, os homens que se levantaram para sair no meio do espetáculo – durante a fala da personagem Selminha, quando esta enumera as qualidades sexuais do marido injustamente acusado de homossexualismo – eram “talvez pouco assíduos às suas obrigações domésticas”, sua atitude revelava o “constrangimento provável dos maridos relapsos”.
Ora, não deixa de ser curioso e revelador que o julgamento psicanalítico, apressado e superficial, pretenda se impor – e que em nenhum momento passe pela cabeça desses freudianos a possibilidade de um público indignado com os aspectos vulgares da peça.
Sabemos que, para esses e centenas de outros especialistas em Nelson Rodrigues, a indignação já é sintoma de neurose, de sentimentos reprimidos – mas, talvez sem perceber, eles apenas papagueiam as justificativas do próprio dramaturgo, como neste relato típico da retórica rodriguiana, às vezes recheada de controverso psicanalismo:
“Manuel Bandeira chegou pra mim um dia, quando eu e meus personagens éramos odiados, e disse: ‘Nelson, por que você não faz uma peça em que os personagens sejam assim como todo mundo?’. Eu respondi da forma mais singela: ‘Mas meu caro Bandeira, meus personagens são como todo mundo’. Porque uma coisa é verdade: quem metia ou mete o pau no meu teatro está procedendo como um Narciso às avessas, cuspindo na própria imagem”.
Falácias desse tipo são encontradas a mancheias. O veredicto de Sábato Magaldi – “Ninguém, antes de Nelson, havia apreendido tão profundamente o caráter do país. E desvendado, sem nenhum véu mistificador, a essência da própria natureza do homem” – também é redito sem questionamentos, como se todos, absolutamente todos, estivéssemos representados na inumerável coleção de vícios que Nelson Rodrigues nos legou.
Há uma resposta, no entanto, para a repetição insana desses chavões: o filósofo Olavo de Carvalho está certo quando diz, na aula nº 8 do seu Curso On-line de Filosofia, que, “no Brasil, no fundo, todos escrevem a mesma coisa, não há nada de experiência real ali, mas apenas a identidade de sentimentos grupais.
Essa identidade, sobretudo dos intelectuais de esquerda, se tornou a única realidade, todos têm de sentir do mesmo modo”.
Façamos, contudo, uma ressalva: as generalizações e esquematismos não se repetem quando se trata de estudar as ideias que Nelson Rodrigues defendeu ardorosamente em suas crônicas, muitas delas ferozes libelos antiesquerdistas.
Para citar apenas um exemplo, talvez não seja difícil adivinhar por qual motivo uma das grandes frases rodriguianas, hoje um bordão – “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota” –, não representa, para esses críticos, o “caráter do país” ou a “essência da própria natureza do homem”. Acaso nosso escritor não estava certo quando disse que os idiotas “explodem por toda parte: são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais” e que “o dinheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas”? É no mínimo risível que, no caso da dramaturgia, a generalização se imponha com a força de lei e, em relação às crônicas, procurem-se matizações ou apenas prefira-se o silêncio...
Mas há vozes dissonantes. O que, para Sábato Magaldi, é “um desmascaramento [...] que incomoda os bem-pensantes”, ou, no caso específico de Álbum de família, “mergulho na inconsciência primitiva do homem”, na verdade pode não passar – e muitas vezes realmente não passa – de “um assunto ordinário, conquanto destituído de verossimilhança”, como disse Álvaro Lins no texto “Tragédia ou farsa?”, presente em Os mortos de sobrecasaca.
O crítico pernambucano, que não poupa elogios a Vestido de noiva, aponta, em Álbum de família, “a maciça vulgaridade”, pois “fecha todos os caminhos, não deixa lugar para outra sensação além do desencanto, da decepção e do aborrecimento”; e “só poderá despertar prazer ou interesse lascivo naqueles atingidos por alguma perversão nos últimos graus da baixeza humana”.
Ao final, depois de recordar as qualidades de Édipo Rei, conclui: “Sem estilo, sem técnica teatral, sem imaginação e sem poesia dramática, eis que Álbum de família soçobra num mar de enganos, equívocos, erros, atrapalhações e insuficiências”.
Entretanto, o resgate que proponho – e que deve ser fiel ao próprio Nelson Rodrigues, para quem “toda unanimidade é burra” – exige não apenas recuperar as grandes vozes críticas esquecidas, que destoam do senso comum, mas esmiuçar impiedosamente a obra rodriguiana, a fim de compreender e redimensionar sua relevância literária e humanística. Não poderemos fazê-lo aqui, dada a exiguidade do espaço, restringindo-nos a sugerir um dos possíveis caminhos.
O primeiro passo dessa empreitada exige estabelecer nítida separação entre, de um lado, a produção não ficcional, e, de outro, dramaturgia, contos e romances, analisando o alcance das obras pertencentes ao segundo grupo, que o próprio Nelson Rodrigues classificou, referindo-se a seu teatro, como “pestilentas, fétidas, capazes, por si só, de produzir o tifo e a malária na plateia”.
Há muito de autopromoção escandalosa nessa afirmativa, repetida, aliás, por meio de formas sinonímicas, ao longo da carreira do escritor, mas é possível identificar, nesse grupo de obras, um sombrio calvinismo, que muitas vezes expulsa do horizonte das personagens a possibilidade de redenção.
O controle ou a superação dos instintos, por meio do esforço pessoal ou da graça divina, é inalcançável a esses personagens condicionados por seus impulsos naturais. E quando há um gesto de benevolência – por exemplo, o insólito beijo de O beijo no asfalto –, este é implacavelmente distorcido pela sociedade.
O próprio Nelson Rodrigues afiança tal raciocínio: “Em relação ao homem sempre fui pessimista”. E chama a si mesmo de “moralista protestante” ou “moralista feroz”. Moralismo que produziu, inclusive, efeito nocivo: sua dramaturgia e seus contos folhetinescos – de A vida como ela é – foram assimilados não como crítica a possíveis vícios humanos, mas, sim, como enaltecimento da corrupção moral, “meio de propagação da imaginação diabólica”, no feliz exemplo que Alex Catharino cita – em entrevista concedida ao blog Diálogos exemplares, de Rafael Guedes – ao elucidar a expressão que Russell Kirk buscou em T. S. Eliot para distinguir a “imaginação moral” do “imaginário corrompido”.
O moralismo rodriguiano acaba, portanto, descaindo para um naturalismo exacerbado, com ares deterministas. Nas palavras de Otto Maria Carpeaux, que, ao analisar a dramaturgia de Franz Wedekind e os limites do gênero trágico no século XX – no ensaio Marionette, che passione! –, na verdade faz um estudo oblíquo do teatro de Nelson Rodrigues, seus personagens “estão pendurados do fio do instinto, privados da liberdade trágica”.
Mas terminemos fazendo uma contraposição a essas características rodriguianas. O teólogo Hans Urs von Balthasar lembra, em O coração do mundo, que “nada é trágico em nós, pois toda renúncia recebe um prêmio superabundante, e quanto mais nos aproximamos do centro da pobreza, tanto mais intimamente tomamos posse de nós mesmos, com tanta maior segurança nos pertencem todas as coisas”.
A citação ilumina a profunda discrepância que há entre o herói cristão e o clássico herói trágico – e ela não deve ser esquecida ao reavaliarmos o legado do nosso escritor. Se a encontraremos na obra ficcional e dramatúrgica de Nelson Rodrigues, bem, esse é um outro problema.
05 de abril de 2013
Rodrigo Gurgel
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