Promessas de campanha eleitoral têm a confiabilidade das grandes realizações do camarada Kim Jong-un. Ainda assim elas geram expectativas, motivam e podem resultar em votos. Há vezes que até mesmo o candidato acredita nessas promessas de ocasião.
Na arrancada de 2008 rumo à Casa Branca, foi a vez de Barack Obama. Ele soou bastante confiável ao sair em defesa de uma tribo específica — a de quem denuncia abusos do poder público. “Não raro a melhor fonte de informação sobre desperdício, fraude e abusos [do governo] é um servidor público disposto a denunciar violações”, disse à época. “Atos de patriotismo e coragem deste tipo... deveriam ser incentivados ao invés de serem reprimidos.”
Na tarde de sexta-feira passada, depois de uma existência de 20 dias no limbo jurídico do aeroporto internacional de Cheremetievo, em Moscou, Edward Snowden capitulou. Pediu asilo temporário na Rússia até conseguir rumar para algum pouso definitivo.
À primeira vista, foi uma derrota cabal para este ex-técnico terceirizado da Agência de Segurança Nacional americana (NSA em inglês), que há quatro meses domina o noticiário internacional e preocupa tanto aliados como adversários dos Estados Unidos.
Contudo, o julgamento que a História fará de Snowden como responsável por um dos maiores vazamentos de segredos da História ainda sequer começou. Nada garante que a avaliação da era Obama, neste episódio, não venha a ser bem mais funesta do que a do whistleblower.
Ed Snowden mal completou 30 anos de idade. Hoje, ele tem mais a temer de um julgamento no país presidido por Barack Obama do que o ex-analista militar Daniel Ellsberg, que em 1971 forneceu ao “New York Times”, ao “Washington Post” e a outros 16 jornais um fatal baú de documentos secretos sobre o envolvimento americano na Guerra do Vietnã.
Ellsberg tinha então 40 anos e quem mandava na Casa Branca era o republicano Richard Nixon. Durante 13 dias daqueles tempos sem internet, o delator fugiu da Justiça americana enquanto copiava e distribuía manualmente a papelada tóxica.
Concluída a missão, entregou-se às autoridades, pagou fiança, foi solto no mesmo dia e passou a responder em liberdade às acusações: conspiração, violação de segredos de Estado e espionagem.
Durante os dois anos do processo, jamais teve a palavra ou a liberdade de ir e vir cerceadas. Ao final, o caso foi arquivado porque o governo Nixon autorizara um assalto ao consultório do psiquiatra de Ellsberg, em busca de sua ficha clínica. E também por ter grampeado ilegalmente o telefone do acusado.
Bons tempos aqueles em que essas práticas eram consideradas desonrosas. Tempos soterrados, porém, junto com os escombros das Torres Gêmeas derrubadas no ataque do 11 de setembro de 2001. Desde então o país é regido pelo Patriot Act, destinado a proteger a nação contra tudo e contra todos.
'Neste novo país o destino de Snowden remete menos a Daniel Ellsberg dos anos Nixon do que aos tempos da Guerra Fria.
Foi num dia de junho de 1960 que dois analistas da mesma National Security Agency embarcaram num voo em Washington e desembarcaram como desertores, muitas escalas e meses depois, na capital da então União Soviética. Chamavam-se William Martin e Bernon Mitchell, tinham amplo conhecimento das entranhas da NSA e decidiram fugir para o campo inimigo para denunciar o que classificaram de mentiras sistemáticas do governo americano.
Foram manchete no mundo todo. “Nenhum episódio do passado e provavelmente do futuro terá impacto maior sobre o sistema de segurança da Agência”, avaliou à época um estudo feito pela própria NSA sobre as consequências daquela delação.
O ex-presidente Harry Truman sugeriu que os dois fossem fuzilados. Dwight Eisenhower, que ocupava a Casa Branca, os considerou “traidores”. E a NSA se esmerou em inventar que ambos eram gays, movidos por “desvios sexuais”.
Só recentemente, graças ao acesso que teve a documentos até então sigilosos, um repórter americano pôde retificar os perfis dos acusados. Ambos tiveram um final de vida pouco glamouroso sob as asas do regime comunista.
“Quando você revela segredos de Estado, mais cedo ou mais tarde o medo vai tomar conta de você”, diz com conhecimento de causa Peter Van Buren. Funcionário do Departamento de Estado por 23 anos, voluntário para servir no Iraque em 2009, ele não silenciou sobre o que vivenciou por lá durante a chamada Operação de Reconstrução. Seu livro “We Meant Well — How I Helped Lose the Battle for the Hearts and Minds of the Iraqi People” (em tradução livre, “Nossas intenções eram boas — Como ajudei a perder a luta pelos corações e mentes do povo iraquiano”) teve como consequência imediata deixá-lo paranoico, segundo ele mesmo conta.
Outro delator, John Kiriakou, um ex-agente do serviço de inteligência americano (CIA) que expôs a prática de tortura autorizada desde o 11 de Setembro, cumpre pena de 30 meses numa penitenciária da Pensilvânia.
Em carta aberta a Snowden, publicada esta semana, o republicano Kiriakou alerta: “Em circunstância alguma colabore com o FBI (a polícia federal dos Estados Unidos). Os agentes vão mentir e te enganar. Eles irão deturpar suas palavras e te fazer cair na armadilha do patriotismo. O FBI é o inimigo, é parte do problema, não a solução.”
Neste clima turvo entre mocinhos e bandidos, o caso Snowden está apenas começando.
14 de julho de 2013
Dorrit Harazim, O Globo
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