Você está no peso ideal, colesterol abaixo de 100, pressão 12 por 8, boa alimentação, exercícios em dia – e quer saber? Você está em desvantagem. Não tem como melhorar. Suponha que fique doente. O que o médico poderia recomendar para aperfeiçoar sua qualidade de vida?
Bem diferente se você estivesse gordinho e meio paradão. Haveria ampla possibilidade de ação e melhoria.
Foi com esse tipo de lógica que o ministro Mantega andou demonstrando uma suposta superioridade brasileira no cenário de crise mundial. Lembrou, por exemplo, que em muitos países a taxa de juros está próxima de zero – de modo que seus bancos centrais, coitados, não dispõem de poderoso instrumento de estímulo à economia. Já o BC brasileiro, que pilota a maior taxa de juros do mundo, teria ampla possibilidade de reduzi-los várias vezes.
Assim, um dos piores vícios brasileiros, o juro descabido, se transforma em virtude. Mas, se essa lógica faz sentido, também faria sentido derivar daí uma recomendação de política monetária: que os BCs mantivessem juros elevados para poder reduzi-los em caso de necessidade. E isso nos levaria a uma contradição em termos: na crise, os juros não poderiam ser reduzidos porque se perderia o instrumento.
Vai que o BC brasileiro coloca a taxa de juros a zero e a economia continua exigindo mais estímulo, que fazer? Parece absurdo, é absurdo, mas é isso que estão nos dizendo: teria sido enorme sabedoria manter os juros mais altos do mundo.
Não é incrível que apareça esse tipo de questão em meio a um momento difícil e complexo da economia global?
É claro que os BCs que já reduziram os juros não têm mais o que fazer nessa direção. Mas os juros no chão continuam fazendo o serviço de baratear consumo e investimentos.
Portanto, vamos reparar: em qualquer circunstância, os juros brasileiros constituem vício. E formam o sintoma mais visível de diversas doenças da economia local, incluindo dívida pública elevada e com rolagem curta, gasto público exagerado e baixo nível de investimento.
Aplicaram a mesma manobra mental aos compulsórios – dinheiro que os bancos devem deixar depositado no BC -, também os maiores do mundo aqui no Brasil. Com tanto dinheiro retido, quando surge algum problema de liquidez, como falta de dinheiro e crédito na praça, o nosso BC pode liberar recursos do compulsório.
Do mesmo modo que na lógica dos juros altos, o correto seria aumentar o compulsório para poder reduzi-lo quando ocorresse algum problema. Outro vício que virou virtude.
Reparem: compulsório é dinheiro retirado do sistema financeiro, que tem reduzida sua capacidade de emprestar para empresas e pessoas. É vício, sintoma de uma economia doente que não pode conceder crédito abundante.
Olhando bem, juros altos e compulsórios elevados são duas faces do mesmo vício. Decorrem das necessidades de um governo gastador, que avança no mercado para se financiar, e do baixo nível de investimentos. Dito de outro modo: com juros baratos e mais dinheiro disponível, o crédito cresceria e ampliaria a capacidade de investimento e consumo de empresas e pessoas. E isso traria mais inflação, porque a oferta de bens e serviços ficaria muito abaixo dessa demanda turbinada.
Sim, é verdade que, em muitos países, juros muito baixos, por muito tempo, e muito dinheiro disponível levaram a bolhas e excessos de gastos públicos e privados. O momento, pois, é de maior prudência.
Não decorre daí que é melhor ter crédito caro e limitado. E, se for para escolher o problema, é melhor a abundância do que a falta de crédito.
E, na mesma linha de dar lições ao mundo, a presidente Dilma Rousseff disse aos europeus que ajustes fiscais (das contas públicas) são até prejudiciais quando muito rigorosos. Citando experiência brasileira, disse que era melhor estimular consumo e investimento, que teria o seguro anticrise.
Ora, é o contrário: a economia brasileira tornou-se mais resistente depois e graças ao pesado, rigoroso e longo ajuste fiscal feito no segundo mandato de Fernando Henrique e no primeiro de Lula. Com FHC, houve contenção de gastos públicos, aumento de impostos, privatizações e reformas estruturais, como a da Previdência, além da eliminação das dívidas dos governos estaduais. E Lula ampliou o superávit primário a nível recorde, conseguindo a redução do endividamento.
Exigiu esforço e desgaste político, mas foi o que salvou o Brasil, uma virtude da política ortodoxa. E é o que muitos europeus precisam fazer.
Mas, se eles tentarem seguir as lições das autoridades brasileiras, ficarão bem atrapalhados. A presidente recomenda que estimulem a economia com gastos públicos maiores e juros menores. Depois o ministro sugere que ter juros altos é uma vantagem relativa. Emagreçam, mas engordem antes.
Eis como a consciência culpada dos petistas (por terem aplicado uma política econômica clássica) os leva a tomar vícios por virtudes e a esquecer das virtudes praticadas. Outro caso de personalidade dividida.
O Globo, 07/10/2011
Carlos Alberto Sardenberg
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)
"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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