"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 17 de abril de 2012

HISTÓRIAS DO JORNALISTA SEBASTIÃO NERY

O UÍSQUE E O RETRATO


Paulo Maciel, professor de sociologia e reitor da Universidade Federal de Pernambuco, deputado, primo de Marco Maciel, logo depois do golpe de 64 foi nomeado presidente do IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool) pelo presidente Castelo Branco. Veio para o Rio, começou a trabalhar.
O IAA era sinônimo de Pernambuco. Sendo também ele um filho quatrocentão de Recife, Paulo Maciel conhecia todos os usineiros do Estado. No fim do ano, começaram a chegar a seu apartamento, na zona sul do Rio, caixas de uísque de seus amigos usineiros, como presentes de Natal.
Ele não bebia, não gostava dos presentes, mas não podia fazer nada. E o uísque chegando e a mulher dele guardando no quarto dos fundos. Passou o Natal, o Ano Novo, aquelas caixas ali empilhadas. Fazer o que? A mulher, muito naturalmente, resolveu livrar-se daquele uísque todo: pôs um anúncio mínimo nos classificados do Jornal do Brasil: “Vende-se uísque escocês”.

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PAULO MACIEL

E o endereço muito bem explicado. Antes do meio-dia, Paulo Maciel trabalhando no IAA, chegam dois senhores bem vestidos, terno e gravata:
– A senhora anunciou uísque escocês para vender? Quantas caixas são? De que marca? Podemos ficar com tudo.
– Pois não. Entrem e vejam lá dentro. Há muitas caixas, meias caixas e algumas garrafas isoladas. Nunca somei.
Os homens foram, contaram tudo, anotaram tudo, chamaram uma Kombi pelo telefone, mandaram descer as caixas:
– Quanto é, minha senhora?
– Tanto.
– Infelizmente, não podemos pagar. Somos da Policia Federal.
Paulo Maciel ficou com ódio de presente de usineiro.

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RETRATO DE GEISEL

Madalena trabalhava em Realengo, subúrbio do Rio, empregada na casa do doutor Otacílio, advogado e cabo eleitoral da Arena. Doutor Otacílio ajudou na eleição do deputado Nina Ribeiro, que lhe conseguiu um retrato, com assinatura, moldura e tudo, do presidente Geisel. Pôs o retrato logo na entrada do escritório, como homenagem e prova de prestígio.
Madalena era mãe de Joãozinho, quatro anos, menino travesso, que subia e descia das janelas como um trapezista. Madalena ficava em pânico quando ele subia nas janelas. Uma noite, doutor Otacílio chegou em casa, foi direto para o escritório. Percebeu que o retrato de Geisel não estava na parede:
– Madalena, onde é que está o retrato do presidente?

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JOÃOZINHO

Madalena ficou lívida. Doutor Otacílio ouviu o choro de Joãozinho:
– Por que é que o menino está chorando?
– Pus de castigo, doutor. Ele está levado demais. Não sai de cima das janelas. Uma hora dessas cai lá embaixo e morre.
Doutor Otacílio foi lá dentro tirar Joãozinho do castigo. Encontrou-o em prantos e o retrato do presidente Geisel na parede do quarto:
– O que é que a fotografia do presidente está fazendo aqui, Madalena?
– Doutor, é o castigo. O Joãozinho tem pavor desse retrato. Eu prendo o Joãozinho, ponho o retrato, ele chora, mas logo depois fica bonzinho. É a única coisa de que ele respeita. Só fica bom com o retrato desse homem.
O retrato de Geisel amedrontava mais do que a Polícia Federal.

17 de abril de 2012
Sebastião Nery

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