Comentei, nas últimas crônicas, as relações espúrias entre cultura e show business. De tanto os jornais noticiarem shows de rock em suas páginas dedicadas à cultura, rock acabou virando manifestação de cultura. E até mesmo o funk, que foi reconhecido como patrimônio cultural pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. O espantoso nesta decisão é que os deputados fluminenses adotaram, como patrimônio cultural nacional, um ritmo criado pelos negros americanos nos anos 60. Neste sentido, o rock é muito mais patrimônio cultural do que o funk. Ocorre que o funk é de negros. Patrimônio cultural seja.
Mal escrevi a última crônica, o mundo das coisas reais veio correndo confirmar-me. Na Zero Hora de ontem, leio que a 27ª Feira do Livro de Bento Gonçalves contratou o “músico e escritor” Gabriel O Pensador como patrono do encontro literário. Ou seja, o sedizente roqueiro pensador de repente virou literatura. Com esta medida, o o prefeito do município, Roberto Lunelli, do PT, quer projetar nacionalmente a Feira.
O roqueiro pensador receberá 169 mil reais como cachê, cifra destinada à compra de mil exemplares do livro Um Garoto Chamado Rorbeto, Prêmio Jabuti em 2006, e de outros mil de Diário Noturno, ambos de Gabriel, mais o pagamento de palestras e de um show do artista ao fim da feira. Normalmente, ser patrono de uma feira do livro é uma homenagem que se faz a alguém. No caso, o homenageado cobra 169 mil reais para receber a homenagem. E ainda impõe a venda de suas “obras”, sejam compradas ou não.
No lançamento da Feira, a ser realizada mês que vem, Lunelli justificou a presença do músico como incentivo para atrair jovens para a literatura, bem como para os esportes. Gabriel é empresário na área do futebol e toca o projeto Pensando Futebol, que incentiva a carreira de novos atletas. A prefeitura também quer ter o Pensador como porta-voz da campanha Copa do Mundo de 2014, para a qual Bento é candidata a receber uma seleção no período pré-Copa.
Ou seja, para atrair jovens para a literatura, o prefeito petista contrata... um roqueiro. Os patronos da últimas sete feiras do livro de Bento Gonçalves, que além de não serem roqueiros pecam pelo fato de serem gaúchos, receberam apenas cinco mil reais. Imagine o que o prefeito pagaria a um Paul McCartney para atrair os jovens para a literatura.
Isto de misturar show business com literatura vem de longe. Desde os dias em que as letras de Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento passaram a constituir questões de vestibular. De repente, músicos do mundo do espetáculo foram promovidos a escritores. Canções anódinas passaram a ser literatura. Como é mais fácil memorizar um versinho do Chico que um romance de Graciliano, a meninada assumiu com gosto o embuste. Não vi, da parte de nossos jovens – quase sempre indignados – qualquer protesto contra tal despautério.
Fossem estes músicos associados à literatura, até que o absurdo não clamaria aos céus justiça. Mas já vi as letras de Chico Buarque e Milton Nascimento em provas de biologia. Na rede, encontro esta exótica pergunta no Banco de Dados de Questões de Biologia da UnB:
Pergunta: Na música Cio da Terra, Chico Buarque e Milton Nascimento fazem interessantes correlações entre os reinos animal e vegetal, conforme é ilustrado a seguir.
Debulhar o trigo
Recolher cada bago de trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão ...
Decepar a cana
Recolher a garapa da cana
Roubar da cana a doçura do mel
Se lambuzar de mel ...
Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, propícia estação
E fecundar o chão...
Com o auxílio desse texto, julgue os seguintes itens.
(1) Pela estrutura do "bago" (v.2), deduz-se que trigo é uma monocotiledônea.
(2) O "milagre" (v.3) que se realiza no trigo, origem ao pão, deve-se a ação de bactérias que metabolizam os lipídios do trigo.
(3) Os autores comparam o caldo de cana ao mel (v.6-7) porque ambos contêm grande quantidade de glicídios.
(4) Nos versos de 10 a 12, faz-se uma analogia entre a estação adequada ao plantio e a época fértil dos animais.
Ora, que raios tem a ver o tal de Cio da Terra com biologia? Se é por associar coisas com coisas que nada têm a ver umas com as outras, daqui a pouco encontraremos estes senhores nas provas de química e matemática. Estamos assistindo a uma desmoralização a passos céleres do livro, da literatura e mesmo do ensino universitário. Sob o olhar complacente das autoridades educacionais, do governo e da imprensa.
Cultura é show business. Se você pretende um dia ser considerado um homem culto, comece a freqüentar raves e shows de rock.
PS - Leitores me advertem que o tal de Gabriel não seria roqueiro. É que não consigo distinguir muito entre uma mediocridade e outra. Mantenho o roqueiro. Dá no mesmo.
23 de abril de 2012
janer cristaldo
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