"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 23 de abril de 2012

"O CHEFE"


OchefeA cada página de O chefe, de forma crescente, tudo ao redor de Lula se conspurca. Não sobra um fio de honestidade, um gesto de ética.


Uma das mais famosas árias para baixo é “Madamina, il catalogo è questo”, da ópera Don Giovanni, de Wolfgang Amadeus Mozart, com libreto do veneziano Lorenzo da Ponte.

Nela, o servo de Don Giovanni, Leporello, conforta Dona Elvira, abandonada por seu patrão, de maneira irônica:

“Console-se! / Você não é / nem será / a primeira / nem a última. / Veja: / este pequeno livro / está totalmente cheio / com os nomes de suas amantes”.

O lacaio, então, apresenta imensa lista, na maioria das encenações estende-a pelo palco, e, diante da pobre mulher, canta:

“Cada vila, cada aldeia, cada país / é testemunha de sua andanças donjuanescas. / Minha Senhora, este é o catálogo / das belas que meu senhor amou; / é um catálogo feito por mim. / Observe, leia comigo”.

E Leporello passa a enumerar as incríveis, sobre-humanas conquistas de Don Giovanni:

“Na Itália, seiscentas e quarenta, / na Alemanha, duzentas e trinta e uma, / cem na França, / na Turquia noventa e uma. / Mas na Espanha já vão mil e três!”.

E assim prossegue o fiel Leporello, fornecendo não só números, mas detalhes das preferências sexuais de seu patrão (1).

A cena é, em parte, pura bufonaria – mas ganha dimensão dramática frente à dor da mulher, Dona Elvira, que descobre a verdade, olhando, estupefata, para a lista fora do comum: ela nada representa para Don Giovanni, o cínico por excelência, cujo discurso sedutor esconde incontrolável egolatria.
No entanto, essa mulher traída, juntamente com outras vítimas de Don Giovanni, não se decepcionam apenas; movidas pela indignação, buscam a justiça que, no final da ópera, acaba por prevalecer.

A história brasileira contemporânea não se assemelha a uma ópera e o jornalista Ivo Patarra está longe de ser um Leporello, mas seu livro, O chefe, causa o mesmo impacto do extraordinário catálogo das conquistas amorosas de Don Giovanni – e transforma a maioria dos cidadãos brasileiros em vítima de um dos maiores engodos políticos que o país já conheceu.

As 457 páginas de O chefe reúnem, de maneira didática, os escândalos que pontuaram quase oito anos de governo Lula; e causam impacto assombroso: o que foi disseminado jornal a jornal, edição a edição, agora constitui dossiê impressionante, assustador.
E semelhantes à Dona Elvira, lemos cada nome, cada fato, cada uma das centenas de cifras para, ao final, constatar que somos personagens inócuos numa trama gigantesca, cujas imoralidade e perfídia encontram-se muito além do que a imaginação pode conceber ou a mídia noticiar.

Conhecidos nomes estão ali – Antônio Palocci, Delúbio Soares, José Dirceu, Devanir Ribeiro, Altivo Ovando Júnior, Valdemir Garreta, José Mentor, Gilberto Carvalho, Renan Calheiros, José Sarney, Romero Jucá, Rogério Buratti, Luiz Gushiken e tantos outros –, agora participando da narrativa que obedece a certa lógica nefasta: os fatos, quando veiculados por jornais, rádios, tevês e internet, tinham a aparência de casos estanques, mas reunidos em livro se transformam num continuum, numa estratégia criminosa de governo que tem começo, meio e, de acordo com o que presenciamos neste setembro de 2010, não terá fim.

Há tal número de crimes, repetem-se com obstinação tão desavergonhada, o descalabro alcança tamanho nível, que, diante dos fatos, só é possível levantarmos duas hipóteses, igualmente paroxísticas:

1ª) é tudo mentira, trata-se de um complô nacional contra o governo mais justo, igualitário e inocente que já existiu na história da humanidade e contra um presidente da República que, verdadeiro santo, está prestes a ganhar, em vida, a honra dos altares;

2ª) é tudo verdade, estamos diante não de um governo, mas de uma escola de cinismo, de um grupo que, ansioso por chegar ao poder, finalmente alcançou seu objetivo e, agora, não admite e não admitirá quaisquer obstáculos a sua fúria de enriquecimento e controle absoluto de todas as instâncias da República.

Tenhamos escolhido qualquer uma das hipóteses, os fatos vêm sempre acompanhados, como já tive a oportunidade de afirmar (2), do exacerbado personalismo político; do populismo marcado por discursos nos quais o deboche, o riso e o sarcasmo transformam-se em recursos demagógicos de largo uso; da logorreia coalhada de disfemismos que serve a um método ilusionista, cuja pretensão é camuflar a política que menospreza e ridiculariza o Poder Judiciário, apoia e faz alianças com regimes ambíguos ou abertamente ditatoriais, mantém a maioria do Congresso Nacional submissa e considera toda a realidade sob uma visão monista, segundo a qual o presidente da República não é apenas mais um governante, mas, sim, o redentor do país.

É curioso, no entanto, que a realidade não obedeça às artimanhas. A cada página de O chefe, de forma crescente, tudo ao redor de Lula se conspurca.
Não sobra um fio de honestidade, um gesto de ética. Mas exagero. Há uma segunda opção: as pessoas que rodeiam o presidente – alguns, seus amigos de longuíssimos anos – ou se conspurcam ou enriquecem, sempre de forma desonesta ou, no mínimo, duvidosa; e Lula nunca sabe de nada.

Escândalo após escândalo, suas falas seguem os mesmos chavões, com direito ao pobre temário coligido por Patarra:

a) refere-se ao amigo ou apoiador como um arrependido que peca, confessa, pede perdão e, pobre homem, reincide;

b) a imprensa é injusta, não admite um governo de esquerda e prejulga sem provas os bons samaritanos;

c) o Brasil precisa acordar para as coisas boas que estão acontecendo, pois nunca antes na história deste país...; e

d) sorriso maroto, braços abertos... e logo a seguir uma piadinha chula.
Personagem, convenhamos, que se adéqua perfeitamente à pior estética popularesca – e exatamente por essa razão agrada.

“República sindicalista”


Por muito menos, Pierre Bérégovoy, primeiro-ministro de François Mitterrand de 1992 a 1993, cometeu suicídio. Acontece que na velha França a corrupção também grassa, mas lá alguns ainda acreditam na importância de manter a própria honra.
Aqui, não. Entre nós, o que impera é o pensamento de Delúbio Soares, colhido por Ivo Patarra: “Quando você está no governo, você é o dono do mundo. Você não tem preocupação com nada”. Ou talvez prefira-se recordar a fala de Klinger Luiz de Oliveira – petista que, segundo Patarra, está sempre acompanhado de um revólver: “Com o poder não se brinca, o poder tudo pode”.
Uma pequena parcela de cidadãos, contudo, aprecia mais esta outra pérola gravada por Patarra, o veredicto de Hélio Bicudo sobre Lula: “Ele é mestre em esconder a sujeira debaixo do tapete. Sempre agiu dessa forma”.

Mas O chefe não é apenas uma coletânea de sordidezes. Não. Ivo Patarra investiga as possíveis causas dos sucessivos e ininterruptos casos de corrupção, chegando a se aproximar de algumas, como neste elucidativo trecho:

Em abril de 2008, o jornal O Globo, do Rio, ajudou a entender Lula um pouco melhor. Publicou o artigo “Lula, o pelego”, do professor Francisco Weffort, fundador do PT e secretário-geral do partido de 1984 a 1988.

Ele relatou uma viagem internacional na qual acompanhou Lula na década de 80. Um dirigente sindical metalúrgico foi agressivo com Lula na Alemanha. Estava furioso porque enviara dinheiro a São Bernardo do Campo (SP), mas não recebera qualquer prestação de contas do sindicato comandado por Lula.
Já naquela época, Lula se desvencilhou do problema. Não sabia de nada.

Na mesma viagem, o mesmo constrangimento voltaria se repetir nos Estados Unidos. Sindicalistas norte-americanos igualmente não teriam recebido a prestação de contas de um dinheiro encaminhado ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, berço político de Lula.
Novamente Lula desconversou e fez que não era com ele.

Francisco Weffort saiu da direção do PT em 1989, e desligou-se do partido em 1995. Trecho do artigo:

“Até então era difícil imaginar que um partido tão afinado com o discurso da moral e da ética pudesse aninhar o ovo da serpente. Minha dúvida atual é a seguinte: será que a leniência do governo Lula em face da corrupção não tem raízes anteriores ao próprio governo? A propensão para tais práticas não teria origem mais antiga, no meio sindical onde nasceu o PT e a atual ‘república sindicalista’?”.

É possível que jamais saibamos a resposta. Mas ao final da leitura uma possibilidade nos assalta: no espaço de uma ou duas décadas, quando o livro de Ivo Patarra for consultado, seus hipotéticos leitores talvez perguntem, qual Donas Elviras abobalhadas: como eles chegaram ao poder e lá permaneceram por tanto tempo? A resposta, hoje, inclui não somente o bom período econômico vivido pelo país, fruto principalmente do governo que antecedeu Lula, mas também a oposição inepta, o Judiciário moroso e senil, o Legislativo conivente – e o promíscuo imperativo da Lei de Gérson, único irresistível dever da maior parte dos nossos políticos.

Ouvindo mais uma vez a ária de Mozart, percebo que há algo de melancólico na cena, pois toda insaciabilidade é, no fundo, um caso patológico. A justiça dos mortos se encarregará, no final da ópera, de purgar a desolação de Dona Elvira, eliminando o deletério Don Giovanni.

Quanto ao catálogo de Ivo Patarra, este não nos permite nenhuma melancolia, pois a denúncia dos crimes de uma quadrilha que se enraíza cada dia mais nos escaninhos do governo – centenas de homens movidos pela cobiça – inocula em nós um único desejo: que Nêmesis não seja apenas um mito, e que ela ressurja para cumprir seu papel, vingar os crimes e punir a hybris humana, ou seja, o crime do excesso, da desmedida, o ultraje e a arrogância que se acreditam intocáveis, acima de todos os mortais.

Escrito por Rodrigo Gurgel
Notas:
1 - Aqui, a conhecida versão para o cinema, dirigida por Robert Losey: http://www.youtube.com/watch?v=LczenCYK8No

2 - Na resenha que escrevi sobre o livro La libertad a prueba, de Ralf Dahrendorf: http://www.imil.org.br/artigos/a-imprescindivel-sociedade-dos-erasmistas/


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