"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 16 de maio de 2012

A PORTA É NADA SE NINGUÉM ME ESPERA

Descobrir algo não significa necessariamente saber reconhecer todo o valor desse algo, da mesma forma que conhecer algo no sentido empírico do termo não significa saber interpretá-lo ou mesmo entendê-lo.
Esse jogo de palavras iniciais na verdade me veio à mente ao lembrar outro dia da poesia de Miguel Cirilo (foto) um dos mais brilhantes poetas do nosso estado, o Rio Grande do Norte, pouco conhecido dos amantes da poesia e menos ainda estudado pelos nossos acadêmicos. Deveria, mas não é.


Pois bem, Miguel Cirilo é autor de um dos livros mais emblemáticos e enigmáticos da nossa poesia intitulado “Os elementos do caos”. Nesse pequeno (no tamanho apenas) livro há um poema chamado “Conhecimento do morto” que é uma verdadeira obra-prima.

Eu já havia lido esse poema algumas vezes, mas foi minha tia Margarida Bittencourt, quem chamou atenção para um dos versos (ela sempre gosta de repetir o verso em eventos sociais) do poema que é simplesmente encantador para dizer o mínimo. O verso diz: “A porta é nada se ninguém me espera”. Leia novamente e com calma. Releia.
A clareza do verso é momentoso. Mas também é enigmático e certamente metafórico. Aliás, se há algo precisamente metafórico é a poesia.
Ela, a metáfora, “ocupa” o lugar de algo ou fala de algo que “não aparece”. A idéia de metáfora na poesia é exatamente essa a de falar nas entrelinhas. A beleza poética ou padrão estético da poesia reside em muito neste sentido indireto com que o verso ou as estrofes são produzidos.

Pinçado do todo, porém, a frase “a porta é nada se ninguém me espera” se sustenta pela beleza, profundidade e polissemia que a mesma permite. É um verso aberto, incomodo, tocante e mais ainda, crítico de um mundo em que os valores humanos parecem afetados pela correria do cotidiano, como se não houvesse mais um tempo de espera, de acolhimento, de escuta.

A porta não deve estar fechada se o outro é esperado. A porta não deve estar fechada se a possibilidade do encontro remete a uma aceitação do outro, do diferente, do fazer humano, do constituir-se humano, da tolerância. A porta enquanto metáfora pode remeter ao vazio negando-se ao compartilhamento de idéias, a aposta no outro, ao amor que nada espera, mas que sabe aguardar.
O verso de Cirilo sugere um compromisso e como tal deve ser cumprido. Caso não fica subentendido a pergunta: então para que o compromisso? Se há a porta então que seja feita para a espera. A porta é o ponto de partida para a revelação do encontro, para o desejo que se realiza no encontro e não um ponto de chegada em que apenas o vazio reine.

Sem citar na integra o poema vale a pena esticar um pouco mais a partir da frase aqui pensada: “a porta é nada se ninguém me espera, sou hóspede e o chamar-te minha amada, dorme na casa do não ser que eu era, morreu quem sou, mas quem não fui resiste”.
Um estudo mais aprofundado sobre a poesia de Miguel Cirilo ainda carece de um bom interprete. Como diz o mesmo no mesmo poema “amar é achar o tempo do não ser”.

16 de maio de 2012
Laurence Bittencourt

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