Os livros de auto-ajuda insistem, com suas fórmulas enfadonhas, que a sociedade se resume a um sistema de líderes e liderados. Mas as pessoas querem realmente liderar?
Poucas coisas são tão desalentadoras quanto cruzar com uma livraria de aeroporto. Os mais-vendidos do momento saltam aos seus olhos, e não importa o quanto você lutou para ficar longe dos modismos editoriais: a livraria de aeroporto vai lhe colocar cara a cara com a vida real.
O seu voo ainda vai demorar meia-hora, não há mais nada a fazer no saguão de espera. Então você passa os olhos pelas estantes, num gesto de curiosidade mórbida.
É um pouco como espiar um acidente na beira da estrada. Só que em vez das vítimas com as tripas de fora, são os best-sellers vendidos aos milhões que nos deprimem.
As apostas editoriais mudam de acordo com a dança. Tem o ano vampiro, o ano fada, anjo, mistérios medievais… Mas, pelo menos no setor de auto-ajuda, há uma tendência que nunca parece sair de moda.
A cada dez livros nas estantes das livrarias de aeroporto, pelo menos seis insistem ensinar seus leitores a serem líderes. Seja líder no trabalho, seja líder em casa, no seu negócio, na sua cozinha, na sua vida. Aprenda liderança com Jesus ou com o Dalai Lama, “inspire pessoas”, “mude vidas”, faça “sua jornada até a liderança autêntica e sustentável”.
E o que dizer de expressões como “líder coach”, “coração de líder”, “líder do novo milênio” e de histórias de executivos que abandonaram suas ferraris para aprender a “essência da liderança” em mosteiros remotos?
Os livros insistem, com suas fórmulas enfadonhas, que o mundo se resume a um sistema de líderes e liderados. Mas é difícil entender essa obsessão por liderança em uma sociedade em que ninguém quer se responsabilizar por nada. Não há coisa mais chata do que liderar. Ser responsável por indivíduos e – pior ainda – dizer a eles o que fazer. As pessoas realmente querem isso para elas? Para que? E com que propósito?
Desde a Segunda Guerra mundial, o mundo ficou um tanto desiludido com seus líderes. Hitler, por exemplo, poderia muito bem ser considerado um “líder coach”. Seu “coração de líder” convenceu seus compatriotas a matarem milhares de judeus. Não é o único exemplo.
A civilização já estava cansada de chefes e revoluções que resultavam em tiranias e mortes.
Não por acaso, pensadores como Isaiah Berlin são tão influentes desde a pós-guerra. Berlin criou os termos “liberdade negativa” – para definir uma liberdade a base de coerção – e “liberdade positiva” – para definir uma liberdade em que todos têm a oportunidade de demonstrar o seu potencial.
O nosso mundo ocidental contemporâneo é moldado no conceito de liberdade positiva, em que os perigosos líderes e seus grandes ideais são trocados por uma sociedade que funciona mais ou menos sozinha, equilibrada pela sociedade de consumo. Esta não está mais a serviço dos valores edificantes do passado, mas sim dos desejos simples e banais dos indivíduos.
Os governantes não são mais líderes históricos que nos guiam para conquistas coletivas. São apenas burocratas ou tecnocratas que cuidam da economia e se contentam em nos entregar aquilo que precisamos: boas estradas, bons serviços, etc.
A ideia de liderança, claro, não desapareceu totalmente do mundo: ela se descentralizou, ficou ao alcance de cada cidadão.
Nessa fragmentação, restou ao indivíduo a busca desesperada pelo seu “líder interno”.
Numa sociedade movida pela economia de mercado, o líder é o empreendedor, o self-made man, aquele que mobiliza as pessoas em torno de um negócio, um escritório, uma associação. Liderança já significou reunir pessoas em torno de valores e ideais. Agora, o líder convence o estagiário a buscar café e xerocar documentos com a promessa de que será o futuro Eike Batista.
A liderança se banalizou. Virou uma fórmula comercial que se compra por 30 reais numa ponte aérea. Mas queremos mesmo liderar? Ou estamos apenas tentando preencher o vácuo deixado pela sociedade de consumo? A “liberdade positiva” de Berlin pode nos ter poupado de ideais perigosos e tiranias massacrantes, mas nos transformou em máquinas ocas de felicidade, robôs solitários, seres errantes em um mundo de infinitos desejos, só que vazio de significado.
16 de maio de 2012
O seu voo ainda vai demorar meia-hora, não há mais nada a fazer no saguão de espera. Então você passa os olhos pelas estantes, num gesto de curiosidade mórbida.
É um pouco como espiar um acidente na beira da estrada. Só que em vez das vítimas com as tripas de fora, são os best-sellers vendidos aos milhões que nos deprimem.
As apostas editoriais mudam de acordo com a dança. Tem o ano vampiro, o ano fada, anjo, mistérios medievais… Mas, pelo menos no setor de auto-ajuda, há uma tendência que nunca parece sair de moda.
A cada dez livros nas estantes das livrarias de aeroporto, pelo menos seis insistem ensinar seus leitores a serem líderes. Seja líder no trabalho, seja líder em casa, no seu negócio, na sua cozinha, na sua vida. Aprenda liderança com Jesus ou com o Dalai Lama, “inspire pessoas”, “mude vidas”, faça “sua jornada até a liderança autêntica e sustentável”.
E o que dizer de expressões como “líder coach”, “coração de líder”, “líder do novo milênio” e de histórias de executivos que abandonaram suas ferraris para aprender a “essência da liderança” em mosteiros remotos?
Os livros insistem, com suas fórmulas enfadonhas, que o mundo se resume a um sistema de líderes e liderados. Mas é difícil entender essa obsessão por liderança em uma sociedade em que ninguém quer se responsabilizar por nada. Não há coisa mais chata do que liderar. Ser responsável por indivíduos e – pior ainda – dizer a eles o que fazer. As pessoas realmente querem isso para elas? Para que? E com que propósito?
Desde a Segunda Guerra mundial, o mundo ficou um tanto desiludido com seus líderes. Hitler, por exemplo, poderia muito bem ser considerado um “líder coach”. Seu “coração de líder” convenceu seus compatriotas a matarem milhares de judeus. Não é o único exemplo.
A civilização já estava cansada de chefes e revoluções que resultavam em tiranias e mortes.
Não por acaso, pensadores como Isaiah Berlin são tão influentes desde a pós-guerra. Berlin criou os termos “liberdade negativa” – para definir uma liberdade a base de coerção – e “liberdade positiva” – para definir uma liberdade em que todos têm a oportunidade de demonstrar o seu potencial.
O nosso mundo ocidental contemporâneo é moldado no conceito de liberdade positiva, em que os perigosos líderes e seus grandes ideais são trocados por uma sociedade que funciona mais ou menos sozinha, equilibrada pela sociedade de consumo. Esta não está mais a serviço dos valores edificantes do passado, mas sim dos desejos simples e banais dos indivíduos.
Os governantes não são mais líderes históricos que nos guiam para conquistas coletivas. São apenas burocratas ou tecnocratas que cuidam da economia e se contentam em nos entregar aquilo que precisamos: boas estradas, bons serviços, etc.
A ideia de liderança, claro, não desapareceu totalmente do mundo: ela se descentralizou, ficou ao alcance de cada cidadão.
Nessa fragmentação, restou ao indivíduo a busca desesperada pelo seu “líder interno”.
Numa sociedade movida pela economia de mercado, o líder é o empreendedor, o self-made man, aquele que mobiliza as pessoas em torno de um negócio, um escritório, uma associação. Liderança já significou reunir pessoas em torno de valores e ideais. Agora, o líder convence o estagiário a buscar café e xerocar documentos com a promessa de que será o futuro Eike Batista.
A liderança se banalizou. Virou uma fórmula comercial que se compra por 30 reais numa ponte aérea. Mas queremos mesmo liderar? Ou estamos apenas tentando preencher o vácuo deixado pela sociedade de consumo? A “liberdade positiva” de Berlin pode nos ter poupado de ideais perigosos e tiranias massacrantes, mas nos transformou em máquinas ocas de felicidade, robôs solitários, seres errantes em um mundo de infinitos desejos, só que vazio de significado.
16 de maio de 2012
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