"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 24 de junho de 2012

À MODA DO DR. HOUSE...

Como o médico da TV, o clínico geral Antonio Carlos Lopes usa a lógica para desvendar os mistérios da medicina. Numa era em que predominam os especialistas, médicos como ele são raros – e valem muito


UM MÉDICO RARO A cada 100 novos médicos, apenas dez decidem ser clínico geral. Aos 63 anos, Antonio Carlos acredita que o contato olho no olho e a conversa são tão importantes quanto auscultar o coração. “Acho que sou um dos últimos” (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)
 
 
Numa tarde abafada de quarta-feira, um estranho caso aguardava solução numa das enfermarias do Hospital São Paulo. É ali que os alunos e residentes da Escola Paulista de Medicina aprendem a reconhecer e a tratar as mais bizarras mazelas que a natureza criou. No universo de 90 mil consultas e 2.600 internações por mês, aparece de tudo. O professor de clínica médica Antonio Carlos Lopes decidira dar uma aula à beira do leito. Quando isso acontece, a notícia corre.

Mal chegou ao 3º andar, foi cercado com entusiasmo pelos futuros médicos. Antonio Carlos não é apenas o diretor da escola. Em seu território, é um pop star. É pelo Tratado de Clínica Médica editado por ele (um calhamaço de 5.366 páginas, vencedor do Prêmio Jabuti em 2007) que os alunos das escolas médicas de todo o Brasil dão os primeiros passos na arte de diagnosticar. Vê-lo em ação é para poucos. Doze jovens conseguiram se espremer num dos quartos. No leito A304, estava um paciente de meia-idade que fora submetido a uma cirurgia de quadril. Depois da alta, começou a ter febre. Internado pela segunda vez, ninguém conseguia fazer a febre baixar nem entender o que a causava.

Antonio Carlos disse que tentaria ajudar no tratamento. Cobriu o paciente com um lençol e demonstrou aos alunos como deve ser feito um exame clínico completo. Examinou os olhos, o pescoço, o tórax, o baço, todo o abdome. Durante a ausculta, percebeu que havia um acúmulo de líquido na membrana delicada que recobre o pulmão. Perguntou aos residentes qual era o resultado do eletrocardiograma. Com a voz trêmula, o rapaz que segurava o prontuário disse ter apenas uma tomografia. Antonio Carlos não gostou:

– Como vocês pedem uma tomografia antes de um eletro?

Os alunos engoliram em seco. Antonio Carlos prosseguiu:

– O paciente foi entubado?

O residente devolveu a pergunta ao doente:

– O senhor sabe se recebeu anestesia geral?

– Não sei.

Duas palavras. Foi o máximo de informação que o professor conseguiu extrair do paciente de olhar distante. Voltou-se ao residente e perguntou sobre os exames de laboratório:

– Eosinófilos? Linfócitos? Proteína C reativa? E o VHS? Aumentou?
Ao ouvir os resultados, concluiu:

– A grande sacada deste caso é fazer uma biópsia. Tirem material lá de dentro e vejam se o paciente foi infectado por uma micobactéria. Isso pode acontecer quando o doente precisa ser entubado.
Um residente respirou fundo e decidiu argumentar:

– Professor, mas nos últimos dias os antibióticos levaram a uma melhora no quadro clínico...
Sem arrogância, Antonio Carlos explicou:

– Ele pode ter respondido à infecção primária, mas pode estar sofrendo de alguma outra. Está tudo mascarado pelos antibióticos. Vocês precisam ter hipótese diagnóstica. Sem ela, ficam atirando para lá e para cá. Perdidos como estão agora.

PARECE REMBRANDT Como no célebre quadro A lição de anatomia do Dr. Tulp, Antonio Carlos demonstra num paciente do Hospital São Paulo um exame clínico completo. Para ele, nada substitui o ensino à beira do leito (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)

ENTRE SÓCRATES E SHERLOCK

 Outro médico famoso insiste na importância da hipótese diagnóstica: Dr. House, o personagem rabugento da série mais popular da história da TV americana. Em oito anos de exibição, ela foi vista por 81 milhões de pessoas em 66 países. Os brasileiros assistiram ao último capítulo na quinta-feira, dia 21. A cada novo desafio, o anti-herói politicamente incorreto, de charutão no canto da boca, resmunga: “Preciso de ideias”. Como um Sherlock Holmes obcecado pelo corpo humano, reúne pistas, persiste numa linha de raciocínio e, invariavelmente, acerta.
A pior coisa é tecnologia de ponta nas mãos de médico ruim"
Antonio Carlos Lopes, clínico geral
 
O segredo de House é perseguir o método socrático. Ele faz uma investigação filosófica baseada em perguntas simples, quase ingênuas, que revelam as armadilhas mentais que desviam a equipe do diagnóstico correto. House acha que é completamente desnecessário interagir com os pacientes. O que o motiva na medicina não é a vida dos homens – e sim o quebra-cabeça que eles representam.
Nesse quesito, Antonio Carlos é bem diferente. Presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, ele acredita que nada substitui a linha de raciocínio e o contato olho no olho, a conversa, a palpação bem feita, a

Quem o vê cercado pelos alunos (como na foto acima) associa a cena ao célebre quadro A lição de anatomia do Dr. Tulp, do pintor holandês Rembrandt. Quase 400 anos separam as duas aulas. Suando dentro dos jalecos, os alunos de Antonio Carlos parecem bem menos aristocráticos que os discípulos de Nicolaes Tulp. No lugar do cadáver do ladrão condenado à morte na véspera, o objeto de estudo é um brasileiro com aspirações e direitos.

Em vez do bisturi de dissecação do cirurgião holandês, Antonio Carlos usa as mãos. Para cumprimentar, apalpar, examinar e enxergar além da superfície.
A mão direita é diferente da esquerda. Quase não tem pelos. Eles não resistiram à constante exposição à radiação no início da carreira. Como cardiologista recém-formado, fez muito cateterismo antes de decidir ser clínico geral. Os pelos sucumbiram. O tato e a perspicácia ficaram mais afiados com o tempo. Graças a eles, o doente do leito A304 pôde receber o tratamento correto. A biópsia foi feita. A causa da infecção era mesmo a micobactéria.
Como o professor pensa e ensina
O segredo do diagnóstico certeiro, segundo Antonio Carlos
Um aperto de mão pode revelar muita coisa: febre, estresse, raiva, ansiedade e ainda mais

Dedique-se a quebrar o gelo, a ganhar a confiança do paciente

O exame clínico deve ser completo: olhos, pescoço, tórax, baço, todo o abdome e, às vezes, toque retal. Quem disse que isso não é obrigação do clínico geral?

Tenha uma hipótese diagnóstica. Nada substitui a linha de raciocínio, o contato olho no olho, a conversa, a palpação bem feita, a ausculta cuidadosa

Um bom diagnóstico é feito com os cinco sentidos e também com o sexto. Não subestime sua intuição
UM TIPO EM EXTINÇÃO

 Antonio Carlos diz que um bom diagnóstico é feito com os cinco sentidos. E também com o sexto. “Medicina é ciência, arte e intuição.” A intuição começa a guiá-lo no momento em que coloca os olhos sobre o paciente. Um aperto de mão também pode revelar muita coisa. Mãos quentes podem revelar um estado febril. Ou, quem sabe, um hipertireoidismo. Se estiverem frias, talvez seja um sinal de estresse ou de raiva. Suor excessivo nas palmas das mãos pode ser ansiedade. Uma demonstração de que o doente não se sente à vontade na presença do médico. Isso é péssimo.

Ganhar a confiança de quem precisa ser tratado é tão importante quanto auscultar o coração e medir a pressão arterial. Aos 63 anos, Antonio Carlos é um clínico geral, um tipo de médico cada vez mais raro. Uma quase anomalia na cultura dominante de especialidades que, em nome da precisão, esquartejou o paciente e perdeu a noção do todo. “Acho que sou um dos últimos”, diz, com indisfarçável melancolia. Até meados do século passado, médico era clínico geral.
Ou pediatra, cardiologista ou ginecologista. Eram essas as opções. Hoje, apenas 10% dos formandos escolhem exercer exclusivamente a clínica médica. Programas governamentais de estímulo à saúde da família precisam de clínicos gerais, principalmente em regiões distantes dos grandes centros, mas a maioria dos jovens prefere outro caminho.

Ser um especialista é uma opção mais rentável, principalmente no início da carreira. A clínica médica exige longas consultas, que precisam ser remuneradas à altura do esforço do profissional. Algo praticamente impossível em início de carreira, embora clínicos gerais experientes e reconhecidos como Antonio Carlos sejam altamente valorizados. No consultório que mantém no Hospital Albert Einstein, ele atende empresários, banqueiros, artistas e quem mais puder pagar R$ 800 por consulta. Cada encontro pode durar uma hora. “Em menos de 45 minutos não faço”, diz.

A MOÇA QUE CHORAVA SANGUE

 Ao longo da carreira, Antonio Carlos desvendou dezenas de casos estranhíssimos. Um deles envolvia uma moça de 17 anos do interior de São Paulo que ficou conhecida por “chorar sangue”. Nos arredores de Meridiano, onde Débora Santos mora, nenhum médico conseguia resolver o mistério. Parentes contavam que os sangramentos começaram aos 14 anos, quando ela trabalhava como babá no Ceará e dizia ter sido agredida pela patroa. No início, o sangue saía apenas pelos ouvidos e pelo nariz.
Com o tempo, passou a brotar dos olhos como se fosse lágrima. No ano passado, uma rede de TV decidiu tentar resolver o mistério. A paciente ficou 13 dias internada em São Paulo e passou por uma avaliação completa. Depois de conversar longamente com ela e submetê-la a exames detalhados, Antonio Carlos chegou ao diagnóstico.
Concluiu que pequenas veias na região dos olhos dilatam e rompem quando a pressão sanguínea aumenta. Pode ser que a alteração seja consequência de traumas sofridos na infância, mas felizmente tem solução. Com dois medicamentos (um betabloqueador e um calmante leve), a moça se livrou dos sangramentos. Antonio Carlos recomendou também que fizesse tratamento psicoterápico.

Ele acredita que é preciso ter uma visão humanista e integral do paciente, com suas emoções, dores ou simples desconfortos. Não é muito diferente do que pensava Hipócrates, o maior filósofo cientista da área médica. Os estudos dele, reunidos na Biblioteca de Alexandria no século IV a.C., revelam os princípios fundamentais de sua conduta: “Em primeiro lugar, vêm a observação e o estudo do paciente antes da doença. Depois, vêm o exame e a descrição dos sintomas. Por fim, o auxílio ao trabalho curativo da natureza. Ou seja: induzir à reação natural do organismo”.
Durante a consulta, Antonio Carlos segue os mesmos passos. Os primeiros 15 minutos são investidos apenas em conversa. “Uma síndrome do pânico, por exemplo, só diagnosticamos na conversa porque os exames são todos normais”, diz ele. Depois, vem o exame clínico completo. Olhos, ouvidos, nariz, garganta, tórax, genitais. “Até toque retal faço. Clínico geral tem de fazer isso.”

SALVO PELA SEGUNDA VEZ Em 2009, o engenheiro Carlos Nogueira (acima) desmaiou na praia. Antonio Carlos diagnosticou, por telefone, uma embolia pulmonar. O clínico usa um método lógico que guarda semelhança com o do personagem House (abaixo) (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)
 
 
Antonio Carlos é o tipo de médico que passa de pai para filho. Ainda era residente quando começou a atender a família do engenheiro paulistano Carlos Alberto Pinto Nogueira, de 71 anos. Quando sofreu uma taquicardia gravíssima, em 2001, Nogueira foi salvo pela primeira vez. Ninguém entendia por que os remédios não eram capazes de normalizar os batimentos cardíacos. Cruzando dados e contando com a intuição, que nunca o abandonou, Antonio Carlos desconfiou que ele tivesse algum problema de tireoide, como a mãe e uma prima. Estava certíssimo.

A tireoide impedia que o remédio agisse. Com o diagnóstico feito e os medicamentos ajustados, ele se recuperou. O segundo salvamento ocorreu em janeiro de 2009. Antes de viajar para o litoral paulista, Nogueira procurou outro médico, queixando-se de tosse. Depois de examinar uma radiografia, o médico concluiu que era apenas uma gripe. Nogueira viajou. No domingo de manhã, desmaiou. Antonio Carlos fez o diagnóstico certeiro por telefone: embolia pulmonar. Nogueira chegou ao Albert Einstein em estado gravíssimo. Antonio Carlos pediu à família autorização para aplicar um remédio poderoso, capaz de salvar ou de matar. Acertou outra vez. “Ele me ressuscitou”, diz Nogueira.

Dr. House (Foto: Everett Collection/divulgação)

Antonio Carlos é ciumento. Não aceita dividir pacientes com os colegas. “Quem quer se tratar comigo precisa saber que cuido de tudo.” Os clientes se sentem autorizados a usar e abusar. “Não vou a médico, psicólogo ou podólogo nenhum sem falar com ele”, diz o pecuarista José Antonio Marinho, de 64 anos, de Corumbá, em Mato Grosso do Sul. “Um dia liguei para perguntar onde poderia fazer uma boa limpeza de pele.”

Essa é uma relação que começou em 1985. Hoje, mais de 20 pessoas da família se tratam com ele. Naquele ano, Marinho começou a sentir dores nas costas. Os médicos de Corumbá concluíram que sofria de estresse e bico de papagaio. Na primeira consulta, Antonio Carlos desconfiou desse diagnóstico. “Espere um pouco: bico de papagaio não dá tontura.” Depois da ausculta, mandou o paciente fazer um eletrocardiograma. De lá, seguiu direto para o cateterismo. Descobriu que Marinho, aos 38 anos, tinha uma obstrução de 95% numa das artérias principais do coração. Poderia cair duro a qualquer momento. A solução do caso foi uma ponte de artéria mamária.
A mensagem
Para os pacientes
Desconfie dos médicos que pedem exames demais e conversam pouco

Para os médicos
Dedicar-se a ganhar a confiança do doente não é perda de tempo. Pode ser a garantia do diagnóstico bem feito

Numa outra vez, Marinho estava na fazenda quando começou a sentir mal-estar e dores na barriga. Por telefone, Antonio Carlos concluiu que a vesícula dele estava prestes a estourar. Marinho veio às pressas para São Paulo. A tempo de ser operado com sucesso. Certa vez, ele ligou para dizer que a mãe não estava bem. Antonio Carlos fez uma série de perguntas, tentou entender o que se passava, mas fracassou. Poucas horas depois, aterrissou em Corumbá. Viajou com a maletinha de médico e a roupa do corpo. Sem palavras, Marinho ouviu a justificativa: “Não consegui diagnosticar por telefone, então vim até aqui”.

Para construir relações assim, Antonio Carlos é aplicado. A primeira coisa que o paciente vê quando entra no consultório dele no Hospital Albert Einstein são quatro camisas do Corinthians, autografadas, sobre cadeiras encostadas na parede do fundo. Antonio Carlos é conselheiro do time. As camisas expostas são uma demonstração de paixão, mas também de estratégia. “Ninguém fica indiferente ao futebol. Os corintianos ficam satisfeitos, os anticorintianos dizem que tenho um defeito terrível”, afirma. É desse jeito que ele consegue engatar uma conversa descontraída. “A relação médico-paciente é uma relação de covardia. O médico é o dono do poder. É preciso quebrar isso se quiser acertar o diagnóstico.”

Casado com uma médica, pai de três médicos e sogro de um médico, Antonio Carlos é monotemático. Por volta das 8h15 já está na Escola Paulista de Medicina. Passa a manhã resolvendo problemas administrativos, assinando ofícios ou orientando alunos. Numa sexta-feira recente, almoçou com um almirante. Quer convencê-lo a usar navios para enviar jovens médicos da universidade a regiões brasileiras de difícil acesso. À tarde, foi para o consultório do Einstein.

Atendeu 17 pacientes (entre consultas longas e retornos mais breves). Despediu-se da repórter de ÉPOCA à meia-noite e 15. Ainda visitaria pacientes no hospital. Demonstrações de gratidão – materiais ou não – não lhe faltam. São carros importados, quadros, chocolates, beijos e abraços. Quando se despede de um paciente, Antonio Carlos bate no ombro dele e aconselha: “Fique longe dos médicos”.

CRISTIANE SEGATTO, ÉPOCA
24 de junho de 2012

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