O ímpeto intervencionista que hoje atua sobre o Paraguai poderia ser facilmente transformado em um argumento em favor de uma intervenção na Bolívia, Venezuela ou Cuba
Em pouco mais de uma semana, o cenário político sul-americano tornou-se extremamente conturbado. Em cerca de 30 horas, o Congresso paraguaio instaurou processo de impedimento contra o Presidente Fernando Lugo e extinguiu seu mandato. Em termos formais, o processo seguiu todos os dispositivos constantes na constituição paraguaia, mais especificamente o disposto em seu artigo 225, que trata do “juízo político” e estabelece a necessidade de maioria qualificada para condenação do acusado por “mau desempenho de suas funções, delitos cometidos no exercício de seus cargos ou delitos comuns”.
As fragilidades institucionais da região
Como ressaltou Fábio Ostermann em artigo recente, mecanismos para revogação de mandatos do chefe do executivo são parte dos dispositivos institucionais de separação e controle entre os poderes instituídos. Contudo, não se pode perder de vista que, em um regime presidencialista, a remoção do mandatário é um fenômeno extraordinário – o que torna frágeis as comparações feitas por Ostermann com o parlamentarismo inglês. Não é mero acaso que nenhum presidente tenha sido destituído na história do presidencialismo estadunidense – o modelo para todas as repúblicas latino-americanas – e que, lá, o processo de impedimento só tenha sido iniciado duas vezes desde 1776 (contra Andrew Johnson e Bill Clinton).
No caso paraguaio, pesa contrariamente ao presidente removido a quase uníssona votação do parlamento paraguaio – somente um deputado e quatro senadores votaram em favor de Lugo – e o fato da Suprema Corte paraguaia ter indeferido seu recurso contra a decisão do congresso.
Em favor de seus argumentos, existe a grande celeridade das decisões, que não condiz com a gravidade da natureza de um processo de impedimento e limitou a possibilidade de preparação da defesa do presidente removido, bem como a frágil argumentação do libelo acusatório, que afirma que os fatos pelos quais se acusa o presidente “são de notoriedade pública e por tal motivo não precisam ser provados”.
Essas contradições dão fundamento às declarações de José Miguel Insulza, chileno que ocupa a secretaria geral da Organização dos Estados Americanos, que, embora reconheça a legalidade do processo frente ao artigo 225 da constituição paraguaia, afirma existirem “dúvidas fundadas” sobre o respeito ao devido processo legal e ao direito à ampla defesa, conforme consagrados na própria constituição paraguaia e nos tratados internacionais dos quais o país é parte.
Paradoxalmente, a contenda no Paraguai exibe, concomitantemente, os sinais dos avanços e dos atrasos institucionais da região. Exibe avanços, pois demonstra que já não há espaço para golpes de estado como os que dominaram o continente durante todo o século XX. Ao mesmo tempo, expõe as fragilidades das instituições da região, uma vez que os mecanismos de governo são manipulados de modo a garantir uma aura de legitimidade a processos que não poderiam tomar lugar em países com democracias consolidadas.
Nesse aspecto, é importante recordar que o cenário de medidas legais mas de duvidosa legitimidade é persistente na região. Evo Morales aprovou uma nova constituição em um quartel, sem a presença de parlamentares da oposição. Hugo Chavez criou o instrumento das Leis Habilitantes, que o permitem promulgar decretos com valor de lei sem consulta ao Congresso. Cristina Kirchner critica a divulgação de estatísticas econômicas que se contraponham às oficiais,sabidamente manipuladas, o que torna impossível auferir a veracidade dos gastos públicos.
O perigo do intervencionismo
Tradicionalmente, a política externa brasileira se pauta por uma equidistância que assegure, ao mesmo tempo, autonomia da ação exterior do governo brasileiro e não-intervenção em assuntos internos de outros países. Tal é um histórico longilíneo, que encontra ecos na “Política Externa Independente”, sob Jango e Jânio, passando pelo “Pragmatismo Responsável” do Governo Geisel até chegar à busca pela autonomia pela participação e pela diversificação, sob FHC e Lula, respectivamente.
Em comum, todas essas diferentes afinações da política externa guardam uma desideologização das relações internacionais do Brasil, isto é, a rejeição de alinhamentos automáticos com qualquer grupo de países. Isso ajuda a justificar o apoio do regime militar ao governo socialista que levou Angola à independência, bem como a facilidade de trânsito que tinha FHC entre Fidel e Clinton ou de Lula entre Ahmadinejad e Bush.
Os desvios recentes à essa tradição acabaram por trazer resultados duvidosos com base nos objetivos estabelecidos pelo governo. A intervenção multilateral no Haiti custou ao país cerca de dois bilhões de reais, 13 vezes mais do que as estimativas orçamentárias iniciais, e não fizeram avançar significativamente a postulação brasileira a um assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
O outro episódio de intervencionismo brasileiro, a transformação da embaixada brasileira em Tegucigalpa em um pró-ativo comitê político em favor do presidente Zelaya, tampouco logrou os resultados que esperava o governo brasileiro. Tendo passado cerca de 4 meses na embaixada brasileira, Zelaya não voltou à presidência, não conseguiu deslegitimar as eleições gerais de fins de 2009 e, finalmente, retornou ao país depois de um autoexílio na República Dominicana em meados de 2011, como resultado de negociações internas.
Se os resultados do intervencionismo se mostram duvidosos, uma mudança nos princípios que orientam a política externa traz diversos riscos. O mais importante deles é o aumento da volatilidade da política externa conforme as modificações no governo.
O ímpeto intervencionista que hoje atua sobre o Paraguai poderia ser facilmente transformado em um argumento em favor de uma intervenção na Bolívia, Venezuela ou Cuba. Nesse caso, é possível que os papéis daqueles que exigem uma intervenção em favor de um dos lados se invertessem.
As reverberações do intervencionismo terminam por limitar as possibilidades de atuação política do governo, por opções que penalizam as pessoas – e não governos – e para caminhos cada vez mais radicalizados.
É necessário recordar, portanto, que as sanções que Hugo Chávez hoje impõe ao Paraguai são justificadas de maneira idêntica àquelas aplicadas contra o Iraque e que acabaram por resultar numa invasão militar: a imposição exógena de uma visão de democracia.
Apesar da intensa vocalização política de ambos os lados nessa questão, cada qual munido de argumentos razoáveis, é preciso fazer uma análise para além do Paraguai. Frente ao discurso conciliador do novo governo paraguaio, o Paraguai, em si, será o menor dos problemas, a despeito de qualquer oposição diplomática do governo brasileiro. Já a perspectiva de um rompimento com a a tradição da política externa brasileira e a inauguração de uma era intervencionista de política externa, a começar pela participação do governo paralelo de Lugo na Cúpula do Mercosul, são, elas sim, as mais preocupantes perspectivas da corrente crise.
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