Ainda não entendi tudo do noticiário sobre o suposto encontro do
ex-presidente Lula com o ministro Gilmar Mendes, em que eles teriam tido uma
suposta conversa em que Lula supostamente teria pedido a interferência do
ministro para um suposto adiamento do julgamento do suposto mensalão e, para
supostamente evidenciar que tinha argumentos persuasivos, supostamente lembrou
uma suposta viagem do ministro a Berlim, supostamente custeada por um
contraventor, alegação supostamente desmentida de pronto pelo ministro.
Nenhuma cautela é dispensável nestas matérias delicadas, pois se sabe que, entre nós, quando os implicados num ilícito qualquer são graúdos, quem costuma arrostar as penas da lei são os boys que carregaram a papelada delinquente e a estagiária da assessoria de comunicação. De repente resolvem pegar um escritor, melhor precatar-me. Manda a prudência supor tudo, pois nada foi provado e bem pode ser que continuemos supondo pelo resto da existência.
Essas questões de verdade ou mentira, como tudo mais, são muito relativas. Diz-se que o tempo é o senhor da verdade e que, com o passar dos anos, ela aparece, mas tenho minhas dúvidas. Por exemplo, Tiradentes, que viveu no século 18, ou seja, faz um bom tempinho, está sendo bastante desancado na internet, denunciado como impostor.
Outro homem (imagino que, nesse caso, deve ter sido o varredor da rua onde os conspiradores se reuniam, o qual, sem querer, teria ouvido conversas subversivas) teria sido enforcado em seu lugar e ele teria ido morar em Paris. Bem verdade que na internet se desanca todo mundo e o estilo de crítica costuma ser truculento, mas até Tiradentes levar cacete eu sinceramente não esperava mais.
De alguma forma, por exemplo, Tiradentes arriscou a vida porque o governo metia a mão num tal quinto, imposto que, pelo nome, devia ser bem menor do que o Half&Half que hoje pagamos, e do qual tão desmesurada proporção vai para o bolso de ladrões e aproveitadores, ou desce pelo ralo da incompetência e da incúria. Diferentemente dele, não arriscamos nada, vamos pagando, sem tugir ou sequer mugir.
Sou do tempo do latim no curso médio e do regime decoreba, de maneira que às vezes lembro frases latinas sentenciosas que, mais tarde, a gente usava na faculdade, para tentar enrolar o professor de Direito Romano. "Nimium altercando veritas amittitur", dizia uma delas. Acho dá para traduzi-la como "Muita discussão acaba por afastar a verdade".
Posso ter saído um pouquinho do original, mas o sentido é este (cartas de latinistas indignados para o editor, por caridade). Pois é, acaba havendo tanta discussão, tantos argumentos incidentais, tantas alegações, interpretações e distorções deliberadas, que ninguém, talvez nem os próprios personagens, sabe mais qual é a verdade.
A própria verdade "pública", a verdade, digamos oficial, varia bastante. Para isso contribuem estatísticas fajutas, que, com a maior cara de pau apresentam fatos meramente concomitantes como se tivessem uma relação de causa e efeito, maquilam porcentuais e gráficos e fazem afirmações equivalentes a "100% das pessoas que morreram de câncer no ano passado beberam água". E contribuem também as conclusões "científicas", baseadas em ciência tão multifacetada que se desdiz a cada instante.
A verdade oficial, pelo menos para as inteligências, digamos, comuns, é um pouco difícil de apreender. Os exemplos estão em toda parte. Como essa conversa do dólar, por exemplo. Passamos meses ouvindo os apresentadores de telejornais explicando, quase todo dia, que o Banco Central comprou zilhões de dólares, para conter a alta da moeda americana. Um economista sombrio assevera que o ideal para o País seria o dólar em torno de dois reais.
Os exportadores, bastião da economia, dizem que não suportam mais a pungente situação. Aí o dólar baixa praticamente no dia seguinte e, com a mesma entonação neutra, o apresentador lê a notícia de que o Banco Central vendeu zilhões de dólares para conter a alta.
A indústria, importadora de máquinas e equipamentos, também bastião da economia, diz que não aguenta mais a sufocante conjuntura. E outro economista soturno diz que assim não dá. Que diabo, é pra baixar ou pra subir? Ou é para o Banco Central bulir no sintonizador, como nos rádios de antigamente, e sintonizar micrometricamente o dólar?
A suspeita clara é de que o problema não está propriamente na cotação do dólar, mas na estranha circunstância de que, aqui, aparentemente, o que é bom para a economia é ruim para a economia e o que é ruim para a economia é excelente para a economia. Tenho certeza de que acabo de manifestar deplorável ignorância em matéria econômica, mas, que se há de fazer, não tive a mesma formação do pessoal do Lehman Brothers e de tantas instituições financeiras que foram à bancarrota - eles erraram, claro, mas com renomada competência.
Como disse, ainda não sei direito a quantas anda o problema de Lula com o ministro. Mas sei o suficiente para ver que as nossas instituições foram agredidas por um evento indecoroso e desprimoroso. Ou seja, escândalo compondo escândalo. Estarrecedor e mesmo inacreditável em qualquer democracia, é gravíssimo e denuncia vícios intoleráveis, no funcionamento das instituições.
Contudo, os dois são inocentes, até que seja provada sua culpa, conforme gostava de dizer o então presidente Lula. Mas a solução é fácil. A seriedade do problema e o respeito de que é credora a nação, pelos que foram, são e pretendem continuar ou voltar a ser seus governantes, deveriam impor que os personagens principais fossem acareados diante do Congresso, ou em cadeia nacional de televisão - afinal têm a inarredável obrigação de merecer a confiança da sociedade. Realizar a acareação devia ser um direito nosso. Pode-se argumentar que é recurso para pegar mentirosos. Bem, não é isso mesmo?
04 de junho de 2012
João Ubaldo Ribeiro, O Estado de S.Paulo
Nenhuma cautela é dispensável nestas matérias delicadas, pois se sabe que, entre nós, quando os implicados num ilícito qualquer são graúdos, quem costuma arrostar as penas da lei são os boys que carregaram a papelada delinquente e a estagiária da assessoria de comunicação. De repente resolvem pegar um escritor, melhor precatar-me. Manda a prudência supor tudo, pois nada foi provado e bem pode ser que continuemos supondo pelo resto da existência.
Essas questões de verdade ou mentira, como tudo mais, são muito relativas. Diz-se que o tempo é o senhor da verdade e que, com o passar dos anos, ela aparece, mas tenho minhas dúvidas. Por exemplo, Tiradentes, que viveu no século 18, ou seja, faz um bom tempinho, está sendo bastante desancado na internet, denunciado como impostor.
Outro homem (imagino que, nesse caso, deve ter sido o varredor da rua onde os conspiradores se reuniam, o qual, sem querer, teria ouvido conversas subversivas) teria sido enforcado em seu lugar e ele teria ido morar em Paris. Bem verdade que na internet se desanca todo mundo e o estilo de crítica costuma ser truculento, mas até Tiradentes levar cacete eu sinceramente não esperava mais.
De alguma forma, por exemplo, Tiradentes arriscou a vida porque o governo metia a mão num tal quinto, imposto que, pelo nome, devia ser bem menor do que o Half&Half que hoje pagamos, e do qual tão desmesurada proporção vai para o bolso de ladrões e aproveitadores, ou desce pelo ralo da incompetência e da incúria. Diferentemente dele, não arriscamos nada, vamos pagando, sem tugir ou sequer mugir.
Sou do tempo do latim no curso médio e do regime decoreba, de maneira que às vezes lembro frases latinas sentenciosas que, mais tarde, a gente usava na faculdade, para tentar enrolar o professor de Direito Romano. "Nimium altercando veritas amittitur", dizia uma delas. Acho dá para traduzi-la como "Muita discussão acaba por afastar a verdade".
Posso ter saído um pouquinho do original, mas o sentido é este (cartas de latinistas indignados para o editor, por caridade). Pois é, acaba havendo tanta discussão, tantos argumentos incidentais, tantas alegações, interpretações e distorções deliberadas, que ninguém, talvez nem os próprios personagens, sabe mais qual é a verdade.
A própria verdade "pública", a verdade, digamos oficial, varia bastante. Para isso contribuem estatísticas fajutas, que, com a maior cara de pau apresentam fatos meramente concomitantes como se tivessem uma relação de causa e efeito, maquilam porcentuais e gráficos e fazem afirmações equivalentes a "100% das pessoas que morreram de câncer no ano passado beberam água". E contribuem também as conclusões "científicas", baseadas em ciência tão multifacetada que se desdiz a cada instante.
A verdade oficial, pelo menos para as inteligências, digamos, comuns, é um pouco difícil de apreender. Os exemplos estão em toda parte. Como essa conversa do dólar, por exemplo. Passamos meses ouvindo os apresentadores de telejornais explicando, quase todo dia, que o Banco Central comprou zilhões de dólares, para conter a alta da moeda americana. Um economista sombrio assevera que o ideal para o País seria o dólar em torno de dois reais.
Os exportadores, bastião da economia, dizem que não suportam mais a pungente situação. Aí o dólar baixa praticamente no dia seguinte e, com a mesma entonação neutra, o apresentador lê a notícia de que o Banco Central vendeu zilhões de dólares para conter a alta.
A indústria, importadora de máquinas e equipamentos, também bastião da economia, diz que não aguenta mais a sufocante conjuntura. E outro economista soturno diz que assim não dá. Que diabo, é pra baixar ou pra subir? Ou é para o Banco Central bulir no sintonizador, como nos rádios de antigamente, e sintonizar micrometricamente o dólar?
A suspeita clara é de que o problema não está propriamente na cotação do dólar, mas na estranha circunstância de que, aqui, aparentemente, o que é bom para a economia é ruim para a economia e o que é ruim para a economia é excelente para a economia. Tenho certeza de que acabo de manifestar deplorável ignorância em matéria econômica, mas, que se há de fazer, não tive a mesma formação do pessoal do Lehman Brothers e de tantas instituições financeiras que foram à bancarrota - eles erraram, claro, mas com renomada competência.
Como disse, ainda não sei direito a quantas anda o problema de Lula com o ministro. Mas sei o suficiente para ver que as nossas instituições foram agredidas por um evento indecoroso e desprimoroso. Ou seja, escândalo compondo escândalo. Estarrecedor e mesmo inacreditável em qualquer democracia, é gravíssimo e denuncia vícios intoleráveis, no funcionamento das instituições.
Contudo, os dois são inocentes, até que seja provada sua culpa, conforme gostava de dizer o então presidente Lula. Mas a solução é fácil. A seriedade do problema e o respeito de que é credora a nação, pelos que foram, são e pretendem continuar ou voltar a ser seus governantes, deveriam impor que os personagens principais fossem acareados diante do Congresso, ou em cadeia nacional de televisão - afinal têm a inarredável obrigação de merecer a confiança da sociedade. Realizar a acareação devia ser um direito nosso. Pode-se argumentar que é recurso para pegar mentirosos. Bem, não é isso mesmo?
04 de junho de 2012
João Ubaldo Ribeiro, O Estado de S.Paulo
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