Vivi em Paris de 1977 a 1981. Se houve algo que me chocou na França, foi o status do qual gozavam os cães. Cheguei até a mesmo a fazer um dossiê sobre o assunto, que deveria ter uns bons quatro ou cinco quilos. Uma pequena parte desse dossiê está transcrita em Ponche Verde.
Do Le Monde, por exemplo, reproduzi uma reportagem sobre uma psicanalista de cães. A moça tinha seis anos de especialização na Inglaterra - onde a psicanálise canina está um século à frente em relação à França, dizia o jornal - e falava dos traumas que poderiam acometer os animaizinhos. Um dos graves problemas do cão parisiense era a crise de identidade, de tanto andar entre humanos o cão acabava esquecendo que era um cão, assim era bom que de vez em quando ele saísse com seus semelhantes. Um outro problema, e este dos mais graves, era o fato de que, sendo o cão muito sensível, seus problemas psíquicos muitas vezes não decorriam de seu próprio psiquismo, mas dos problemas vividos pelos proprietários. Se havia atritos no casal, estes eram imediatamente intuídos pelo cão, de modo que a psicanalista se via forçada a sugerir ao casal uma boa análise, pelo menos em nome da saúde psíquica do cão.
Mas o recorte que mais me impressionou na época foi sobre o direito de visita a cães. Um marido, em instância de divórcio em Cretéil, Val-de-Marne, obteve de um juiz de paz um direito de visita a seu cãozinho, já que a mulher havia ficado com a guarda do animal. O casal só se entendia em dois pontos: a ruptura e a vontade de ver regularmente o bichinho. O juiz, após ter oficialmente constatado que havia convergência de pontos de vista por parte do marido e da mulher a respeito do animal, deu ao marido o direito de visitar seu cachorro dois fins-de-semana por mês e de guardá-lo durante boa parte das férias.
Para mim, latino, era como se estivesse lendo alguma ficção de Swift ou Kafka. Nunca entendi - e até hoje não entendo - como pode um casal mobilizar a máquina judiciária para chegar a um acordo tão banal.
Quarenta anos depois, a moda chegou até nós. Leio nos jornais que os conflitos de família na disputa pela guarda dos filhos ganharam uma nova dimensão. A paixão pelos bichos de estimação caminha rumo aos tribunais, com direito a projeto de lei que prevê, inclusive, a interferência de um juiz para arbitrar as decisões.
"Pode soar como exagero àqueles que nunca compartilharam o apego por um animal. O tema, no entanto, é delicado e ganha grandes proporções em situações de divórcio. A decisão de quem ficará com os bichos de estimação pode se transformar em um doloroso dilema, quando ninguém quer se privar da convivência com o animal. Se aprovada, a lei que tramita na Câmara dos Deputados autorizará que um juiz determine quem vai ficar com os mascotes. Fatores como ambiente adequado, disponibilidade de tempo para cuidados, grau de afinidade e afetividade deverão ser determinantes para a decisão do magistrado".
Os nobres deputados andam com falta de assunto. Num país em que os juízes são escassos, pretendem mobilizar a máquina judiciária para dirimir pendengas entre casais, que se sentem incapazes de tomar uma decisão tão banal, como dividir a guarda de um cachorro.
Segundo o advogado especialista em Direito da Família Rolf Madaleno, é comum encontrar casos onde a disputa pela guarda dos animais vai parar na Justiça. Esses processos, no entanto, tratam o tema como secundário causando, muitas vezes, constrangimento entre os envolvidos. O tema, avalia, exige um olhar mais sensível.
Sua opinião é compartilhada pela veterinária e doutora em psicologia Ceres Faraco. Ela diz que é possível entender reações extremas dos donos na iminência de perder o convívio com os animais. Os bichinhos são, hoje em dia, como membros da família, com papel tanto ou até mais importante que outros membros humanos, com um vínculo muito intenso.
Ó tempora, ó mores! Cachorro já vale mais que gente. Obsoleto como sou, ainda prefiro os seres humanos.
04 de junho de 2012
janer cristaldo
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