Meu avô de Itaparica, o inderrotável Coronel Ubaldo Osório, não era muito
dado a novas tecnologias e à modernidade em geral. Jamais tocou em nada
elétrico, inclusive interruptores e pilhas. Quando queria acender a luz, chamava
alguém e mantinha uma distância prudente do procedimento. Tampouco conheceu
televisão, recusava-se.
A gente explicava a ele o que era, com pormenores tão fartos quanto o que julgávamos necessário para convencê-lo, mas não adiantava. Ele ouvia tudo por trás de um sorriso indecifrável, assentia com a cabeça e periodicamente repetia "creio, creio", mas, assim que alguém ligava o aparelho, desviava o rosto e se retirava. "Mais tarde eu vejo", despedia-se com um aceno de costas.
O único remédio que admitia em sua presença era leite de magnésia Phillips, assim mesmo somente para olhar, enquanto passava um raro mal-estar. Acho que ele concluiu que, depois de bastante olhado, o leite de magnésia fazia efeito sem que fosse necessário ingeri-lo. Considerava injeção um castigo severo e, depois que as vitaminas começaram a ser muito divulgadas, diz o povo que, quando queria justiçar alguma malfeitoria, apontava o culpado a um preposto e determinava:
"Dê uma injeção de vitamina B nesse infeliz." Dizem também que não se apiedava diante das súplicas dos sentenciados à injeção de vitamina, enquanto eram arrastados para o patíbulo, na saleta junto à cozinha, onde o temido carcereiro Joaquim Ovo Grande já estava fervendo a seringa. (Naquele tempo, as seringas eram de vidro e esterilizadas em água fervente, vinha tudo num estojinho, sério mesmo.)
- Amoleça a bunda, senão vai ser pior! - dizia Ovo Grande, de sorriso viperino, olhos faiscantes e agulha em riste, numa cena a que nunca assisti, mas que não devia ser para espíritos fracos.
- Sim, mas acabo fazendo a biografia de meu avô e não chego ao assunto, que, pelo menos quando me sentei faz pouco para escrever, tinha a ver com fotografia. O coronel não evitava codaques, nome por que chamava indistintamente qualquer máquina fotográfica, mas só admitia ser fotografado se houvesse a preparação que ele considerava essencial. Nada do que então se chamava "instantâneo".
Ele fazia a barba, tomava banho, vestia paletó e gravata, botava perfume e posava imóvel como uma rocha, diante da codaque. Daí a um mês, mais ou menos, as fotos voltavam, reveladas e copiadas, de um laboratório da cidade - e sua chegada era uma espécie de festa, que reunia parentes, amigos e correligionários.
Se o coronel estivesse vivo hoje, acho que acabaria tomando o leite de magnésia. Aproxima-se o dia em que seremos filmados, fotografados e monitorados em absolutamente todas as circunstâncias, inclusive no banheiro.
Claro, reconheço que deliro um pouco, mas somente um pouco, quando imagino que, num futuro em que a água será escassa, cada morador terá cotas para todo tipo de uso da água e sofrerá penalidades diversas, se ultrapassá-las.
Facilmente, a monitorização saberia quantas vezes e com que finalidade o freguês usou o vaso, estatística talvez considerada indispensável para a formulação de políticas sanitárias e de saneamento básico. Não saberemos como teremos vivido sem isso, até então.
Entrando em elevadores, dei para perceber gente olhando para as câmeras e se ajeitando como se fosse entrar no ar dentro de alguns instantes. Algumas moças chegam mesmo a passar a mão na nuca e ajeitar faceiramente os cabelos com um movimento de cabeça, como nos comerciais de xampus.
Foi-se a manobra, tão praticada em gerações pretéritas, em que, tendo-se a sorte de encontrar no elevador a dadivosa e adrede acumpliciada vizinha do 703, apertava-se o botão de emergência, parava-se a cabine entre dois andares e davam-se os dois a um furtivo e inesquecível pecadilho da carne.
O clipe já estaria no YouTube assim que ambos chegassem em casa, com dezenas de "visualizações", inclusive do marido e da família da vizinha.
Antigamente, a gente só tinha que dizer "que gracinha", "que beleza" ou "muito interessante" umas duas ou três vezes por amigo de boteco, no máximo. Era quando ele mostrava a foto da última neta, o retrato de toda a família junta ou um documento velho. Hoje a gente assiste a várias dezenas de clipes de celulares e sucessões de slides por dia, enquanto todo mundo fotografa e filma todo mundo, o tempo todo.
E outro dia, num noticiário de tevê, apareceu a notícia de um sequestro relâmpago em que um dos sequestradores filmou tudo com seu celular. Fico querendo adivinhar qual a razão para isso e me ocorre que, em muitos criminosos, suas ações talvez despertem um certo orgulho autoral e eles agora têm muitos recursos para documentar seus feitos para a História.
De qualquer maneira, presenciamos o primeiro making of de um ato criminoso e espero somente que algum filósofo francês não saiba disso e publique um livro designando essa atividade como uma nova forma de arte, para que depois um porreta de uma agência governamental qualquer ache isso científico e premie com absoluta impunidade qualquer assalto, ou semelhantes, para o qual o seu autor haja preparado um making of de qualidade, gerando empregos e estimulando a arte. É bom viver onde o seguinte diálogo pode ocorrer:
- Então, como se foi de assalto hoje?
- Ah, legal. Só faltou me levar as calças, mas em compensação a crítica considera esse cara o melhor diretor de filmagem de assalto do Brasil, tablete de 12 megapixels, tudo muito profissional. Desta vez eu saio no Fantástico com certeza.
22 de julho de 2012
João Ubaldo Ribeiro, O Estado de S.Paulo
A gente explicava a ele o que era, com pormenores tão fartos quanto o que julgávamos necessário para convencê-lo, mas não adiantava. Ele ouvia tudo por trás de um sorriso indecifrável, assentia com a cabeça e periodicamente repetia "creio, creio", mas, assim que alguém ligava o aparelho, desviava o rosto e se retirava. "Mais tarde eu vejo", despedia-se com um aceno de costas.
O único remédio que admitia em sua presença era leite de magnésia Phillips, assim mesmo somente para olhar, enquanto passava um raro mal-estar. Acho que ele concluiu que, depois de bastante olhado, o leite de magnésia fazia efeito sem que fosse necessário ingeri-lo. Considerava injeção um castigo severo e, depois que as vitaminas começaram a ser muito divulgadas, diz o povo que, quando queria justiçar alguma malfeitoria, apontava o culpado a um preposto e determinava:
"Dê uma injeção de vitamina B nesse infeliz." Dizem também que não se apiedava diante das súplicas dos sentenciados à injeção de vitamina, enquanto eram arrastados para o patíbulo, na saleta junto à cozinha, onde o temido carcereiro Joaquim Ovo Grande já estava fervendo a seringa. (Naquele tempo, as seringas eram de vidro e esterilizadas em água fervente, vinha tudo num estojinho, sério mesmo.)
- Amoleça a bunda, senão vai ser pior! - dizia Ovo Grande, de sorriso viperino, olhos faiscantes e agulha em riste, numa cena a que nunca assisti, mas que não devia ser para espíritos fracos.
- Sim, mas acabo fazendo a biografia de meu avô e não chego ao assunto, que, pelo menos quando me sentei faz pouco para escrever, tinha a ver com fotografia. O coronel não evitava codaques, nome por que chamava indistintamente qualquer máquina fotográfica, mas só admitia ser fotografado se houvesse a preparação que ele considerava essencial. Nada do que então se chamava "instantâneo".
Ele fazia a barba, tomava banho, vestia paletó e gravata, botava perfume e posava imóvel como uma rocha, diante da codaque. Daí a um mês, mais ou menos, as fotos voltavam, reveladas e copiadas, de um laboratório da cidade - e sua chegada era uma espécie de festa, que reunia parentes, amigos e correligionários.
Se o coronel estivesse vivo hoje, acho que acabaria tomando o leite de magnésia. Aproxima-se o dia em que seremos filmados, fotografados e monitorados em absolutamente todas as circunstâncias, inclusive no banheiro.
Claro, reconheço que deliro um pouco, mas somente um pouco, quando imagino que, num futuro em que a água será escassa, cada morador terá cotas para todo tipo de uso da água e sofrerá penalidades diversas, se ultrapassá-las.
Facilmente, a monitorização saberia quantas vezes e com que finalidade o freguês usou o vaso, estatística talvez considerada indispensável para a formulação de políticas sanitárias e de saneamento básico. Não saberemos como teremos vivido sem isso, até então.
Entrando em elevadores, dei para perceber gente olhando para as câmeras e se ajeitando como se fosse entrar no ar dentro de alguns instantes. Algumas moças chegam mesmo a passar a mão na nuca e ajeitar faceiramente os cabelos com um movimento de cabeça, como nos comerciais de xampus.
Foi-se a manobra, tão praticada em gerações pretéritas, em que, tendo-se a sorte de encontrar no elevador a dadivosa e adrede acumpliciada vizinha do 703, apertava-se o botão de emergência, parava-se a cabine entre dois andares e davam-se os dois a um furtivo e inesquecível pecadilho da carne.
O clipe já estaria no YouTube assim que ambos chegassem em casa, com dezenas de "visualizações", inclusive do marido e da família da vizinha.
Antigamente, a gente só tinha que dizer "que gracinha", "que beleza" ou "muito interessante" umas duas ou três vezes por amigo de boteco, no máximo. Era quando ele mostrava a foto da última neta, o retrato de toda a família junta ou um documento velho. Hoje a gente assiste a várias dezenas de clipes de celulares e sucessões de slides por dia, enquanto todo mundo fotografa e filma todo mundo, o tempo todo.
E outro dia, num noticiário de tevê, apareceu a notícia de um sequestro relâmpago em que um dos sequestradores filmou tudo com seu celular. Fico querendo adivinhar qual a razão para isso e me ocorre que, em muitos criminosos, suas ações talvez despertem um certo orgulho autoral e eles agora têm muitos recursos para documentar seus feitos para a História.
De qualquer maneira, presenciamos o primeiro making of de um ato criminoso e espero somente que algum filósofo francês não saiba disso e publique um livro designando essa atividade como uma nova forma de arte, para que depois um porreta de uma agência governamental qualquer ache isso científico e premie com absoluta impunidade qualquer assalto, ou semelhantes, para o qual o seu autor haja preparado um making of de qualidade, gerando empregos e estimulando a arte. É bom viver onde o seguinte diálogo pode ocorrer:
- Então, como se foi de assalto hoje?
- Ah, legal. Só faltou me levar as calças, mas em compensação a crítica considera esse cara o melhor diretor de filmagem de assalto do Brasil, tablete de 12 megapixels, tudo muito profissional. Desta vez eu saio no Fantástico com certeza.
22 de julho de 2012
João Ubaldo Ribeiro, O Estado de S.Paulo
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