Por mais afável e simpático que um médico seja, não é exatamente por prazer que o procuramos. Quando os procuramos no consultório, sempre é sinal de problemas. Tenho um médico, no entanto, que me apraz consultar. É meu urologista.
Sempre que ando na rua, levo leitura debaixo do braço. Nunca se sabe quanto vamos esperar em um bar ou consultório e não suporto ficar olhando o nada. Sem falar que sempre estou com leituras atrasadas. Há alguns anos, quando visitava o urologista, levava comigo um tratado de teologia.
- Ah, você gosta disso? – me perguntou.
Gostava. De lá para cá, nossos encontros terminam sempre com troca de bibliografias. Ele é judeu, ateu e vive imerso em leituras religiosas. Quando termina minha consulta propriamente, ele puxa uma pasta cheia de livros e me convida ao bom diálogo:
- Vamos agora ao que interessa.
Enquanto discutimos a origem dos deuses, as contradições dos textos bíblicos, as peregrinações de Paulo pelo Mediterrâneo, as deturpações dos preceitos do Antigo Testamento pelos redatores do Novo, a papisa Joana e o estercorário, seus clientes se amontoam no consultório. Sempre saio da consulta com uma prescrição... de livros.
Há um café Frans no shopping aqui perto de casa. Se passo por lá entre 11hs e meio-dia, é certo que vou encontrá-lo absorto em suas leituras. Quando coincidimos na rua, ele já vai puxando de sua pasta seus mais recentes achados.
Em minha última consulta, enquanto seus pacientes pacientavam, entre outros títulos, prescreveu-me um que julgo excelente. Interrompi minhas outras leituras e dediquei-me ao ensaio de Pepe Rodríguez, Mentiras Fundamentais da Igreja Católica.
É obra na trilha de O que Jesus disse? O que Jesus não disse, de Bart Ehrman, teólogo que perdeu a fé pesquisando as cópias existentes dos textos bíblicos.
Mas Rodríguez é bem mais abrangente. Pretende mostrar como a Igreja Católica mentiu ao se apropriar dos textos do Antigo e Novo Testamento. Em verdade, o título fica aquém das dimensões da obra, que mostra deturpações dos livros bíblicos em função de interesses de poder ou rivalidades entre sacerdotes, muito antes de a Igreja existir.
À guisa de degustação, transcrevo dois trechos. O livro é em espanhol. Cito a tradução portuguesa:
Deus, plenamente ciente do que fazia, ocultou ao seu povo eleito o advento futuro do seu Filho, o Salvador, obrigou-o a odiar as nações vizinhas sabendo que o seu Filho pregaria justamente o contrário, forjou de si próprio uma imagem com as suas respectivas atribuições divinas, atribuições essas que, agora, no seu novo testamentum, há-de modificar, obrigou-o a cumprir leis e rituais que seu Filho abolirá, por os considerar inúteis, levou-o a seguir sacerdotes que nos novos tempos surgirão como falsos – senão hereges -, estenderá o seu manto protector a toda a humanidade, etc. Não nos podemos deixar de perguntar: por que não o fez antes?
Não eram também criaturas de Deus os demais povos da Terra quando os excluiu da sua “aliança eterna”? Ao alterar suas posições, não reparou que causava um dano profundo ao seu povo hebreu? Se o Deus do Velho Testamento é o mesmo Deus que inspirou o Novo, é evidente que alguém, antes ou depois, terá vergonhosamente mentido.
Sobre os critérios de seleção dos quatro evangelhos, entre os sessenta existentes:
A seleção dos evangelhos canónicos foi feita no concílio de Niceia (325) e ratificada no de Laodiceia (363). O modus operandi ou o processo utilizado, para distinguir entre textos verdadeiros e falsos foi, segundo a tradição, o da “eleição milagrosa”. Foram apresentadas, de facto, quatro versões para justificar a preferência pelos quatro livros canónicos:
1) depois de os bispos terem rezado muito, os quatro textos voaram por si sós e foram pousar-se sobre um altar;
2)puseram todos os evangelhos em competição sobre um altar e os apócrifos caíram ao chão, enquanto os canónicos não se mexeram;
3)depois de escolhidos, os quatro foram colocados sobre o altar e foi pedido a Deus que se neles houvesse qualquer palavra falsa os fizesse cair no chão, o que não ocorreu;
4)o Espírito Santo, na forma de uma pomba, penetrou no recinto de Niceia e pousando no ombro de cada bispo sussurrou a cada um deles quais eram os evangelhos autênticos e quais os apócrifos. Esta última versão revelaria, além do mais, que uma boa parte dos bispos presentes no concílio eram surdos ou muito incrédulos, visto ter havido grande exposição à seleção – por voto maioritário, que não unânime – dos quatro textos canónicos actuais.
Santo Irineu (c. 130-200) procurou fundar em bases intelectualmente sólidas a selecção dos livros canónicos quando escreveu que “o Evangelho é a coluna da Igreja, a Igreja está espalhada por toda a Terra, a Terra tem quatro direcções, e como há quatro ventos cardiais, é necessário que existam quatro Evangelhos. (...) O Verbo criador do universo reina e brilha sobre os querubins, os querubins têm quatro formas, e é aqui que o Verbo nos obsequiou com quatro Evangelhos.
Sobre estes últimos arrazoados, o autor comenta:
Esta ciência espantosa baseia-se no seguinte texto do Apocalipse: “Depois disto vi quatro anjos que estavam de pé nos quatro ângulos da terra, e retinham os seus quatro ventos para que não soprasse sobre a terra vento algum...” (Ap 7, 1). Apesar de esta informação proceder da inspiração de Deus, não passa de um atestado da enorme ignorância que reinava então. Hoje, que sabemos que a Terra é redonda e não tem os quatro ângulos que se lhe atribuía ao imaginá-la plana, com quantos evangelhos nos deveria obsequiar o Verbo para se pôr em dia com o mundo actual?
Para quem se sentiu incitado à leitura, um pouco mais de Pepe Rodríguez:
http://www.pepe-rodriguez.com/Cristianismo/Cristianismo_menu.htm
22 de julho de 2012
janer cristaldo
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