"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A CONSTRUÇÃO DA NOVA CLASSE BRASILEIRA II


          Artigos - Movimento Revolucionário        
Cuando los interese privados se consideran contrarios al interés general, tenemos la justificación ética del poder absoluto, y su consecuencia: el interés privado de los gobernantes que forman el Gobierno.
Armando Ribas


O bem estar do povo tem sido particularmente um álibi para os tiranos.
Albert Camus


A nova classe

Terminei a primeira parte dizendo que, para uma compreensão do passado recente, do presente e dos possíveis futuros de nosso país, é necessário detectar os passos no sentido da formação e tomada de poder por parte desta nova classe de dirigentes que se dispõem a empregar a engenharia social para transformar a própria consciência da população e quais os métodos empregados.
Nos diferentes partidos e organizações envolvidos, os meios diferem, mas os objetivos, os fins, são exatamente os mesmos.

O termo Nova Classe é usado aqui no sentido que lhe foi dado por Milovan Đilas, membro do Comitê Central do Partido Comunista Iugoslavo, presidente da Assembleia Federal e considerado o sucessor natural de Josip Broz “Tito”.
Em 1953-54, Đilas escreveu 19 artigos para o órgão oficial da Liga dos Comunistas, Borba, denunciando a formação de uma nova classe dominante através de benefícios concedidos oficialmente a altas patentes militares e administradores civis, incluindo casas caríssimas nas melhores áreas do país.

Estes textos representavam uma ameaça aos líderes e Đilas foi expulso do partido e de seus cargos no governo. De sua extensa obra a mais conhecida é The New Class: An Analysis of the Communist System, de 1957.

Sua principal observação é a de que um Estado sem classes, a tal utopia com que se engabelam idiotas úteis, não passava de uma farsa para a criação de uma nova classe, com poder sem rival em toda a história da humanidade. Este termo se aplica a todos os países comunistas [i] e também ao fascismo e nazismo, com a diferença que neste último a utopia era a da superioridade da raça germânica e a divisão em castas dentro da própria Alemanha com a eliminação das classes tradicionais.

“O nacional-socialismo pretendia, essencialmente, um novo tipo de comunidade que oferecesse grande mobilidade social e progresso pessoal através de mérito e Leistung (realização pessoal) e que apelasse para grande parte da sociedade” [ii].


Diferentemente do comunismo, o nazismo não pretendia ser a expressão de uma determinada classe social, mas encontrar apoio e oposição em todas elas. Por esta razão o acesso à elite SS, por exemplo, estava aberto a todas as classes e constituía uma “comunidade germânica modelo”, a Volksgemeinschaft (op. cit.).

O fascismo italiano seduzia a maior parte da população trabalhadora com a eliminação das classes sociais, substituindo-as por poderosas corporações de ofício semelhantes às guildas medievais onde a ascensão social era teórica e legalmente possível através de rígidos regulamentos [iii], embora dificílima na prática.

O nazismo desapareceu, ao menos enquanto força real, sobrevivendo apenas em difusos focos ‘neonazistas’ que não constituem um movimento global organizado. É preciso não confundir o antissemitismo que permanece forte e impávido com uma estrutura partidária antijudaica. Nem o antissemitismo muçulmano apresenta aquelas estruturas características, não obstante ser tanto ou mais virulento. É um erro, embora muito encontrado, chamá-lo de islamofascismo, pois o fascismo é algo muito diferente.

O fato de que tenha havido ampla colaboração entre muçulmanos, como o Mufti de Jerusalém, e o partido nazista, não autoriza confundir os dois numa mistura absurda, como também chamar de fascista o ultranacionalismo militarista japonês pelo simples fato de terem assinado o Pacto Anti-Komintern. A idéia de que o mundo ideologicamente está dividido entre comunistas – a esquerda a favor do povo e da paz – e fascistas – a direita ‘burguesa’, exploradora do trabalho alheio, belicista e antissemita – é uma genial invenção de Stalin após o rompimento do Pacto Molotov-Ribbentrop por Hitler, e ainda domina a mente de grande parte da intelectualidade ocidental, até mesmo dos que se dizem liberais ou conservadores que pensam e se deixam guiar por estes paradigmas. O termo fascismo é ainda usado para designar a sociedade aberta, liberal e democrática, pois segundo os cânones stalinistas, a democracia liberal burguesa, etapa inevitável do devir histórico marxista, é fascista.

Outro destino teve o comunismo, persistindo quase inalterado até 1985, quando muitos acreditam que acabou. Na realidade o que ocorreu foi a desarticulação de uma estrutura rígida por outra mais flexível e palatável para todos os gostos. Pelo contrário, ao se flexibilizar tornou-se mais difuso e dificilmente identificável pela metodologia de estudo tradicional, como explico n’O Eixo do Mal Latino-Americano e a Nova Ordem Mundial.

Aparente ou oculto, permeia diversos partidos políticos, mas principalmente organizações da ‘sociedade civil organizada’ sendo moldável a diferentes circunstâncias - como os gases que se acomodam em qualquer recipiente. Todas as organizações, sindicatos, igrejas, forças armadas, o que seja, possuem uma fração que torna o partido comunista atuante em grupos não comunistas. Com o crescente anticomunismo estas frações passaram a se chamar, não mais comunistas, e sim progressistas.

Eu conheci muito bem este assunto ao fazer parte da fração – majoritária - da AP na UNE em 1965. No entanto, aprendi com Bella Dodd [iv] algumas lições sobre este tema, das quais destaco duas.

A primeira me esclareceu uma dúvida de 42 anos: por que um sujeito desconhecido como eu foi subitamente elevado à cúpula da política estudantil semi clandestina?

‘Porque esta é uma tática dos partidos comunistas: levar desconhecidos a uma posição de liderança. Quanto mais inexperiente e menos conhecimento melhor, porque será mais facilmente manobrado pelo partido. Súbita e dramaticamente o partido transforma um João-ninguém em “alguém”. Se a tática mudar, com a mesma rapidez fazem deste “alguém” novamente um João-ninguém’.

Eu também me espantei quando percebi que mesmo em minoria e perdendo todas as decisões, a fração é muito importante, porque não interessa necessariamente ganhar, mas expor a visão do partido e, com isto, angariar mais adeptos. Como diz Dodd: ‘Toda derrota é uma vitória!’

Percebem os leitores o que significam os chavões ‘precisamos discutir mais profundamente esta questão’, ‘é preciso discutir com toda a sociedade’ e outros similares?
Não é um discurso dialético que buscam, nem uma argumentação erística, a patifaria intelectual de ganhar uma discussão a ferro e fogo [v]: nem mesmo a vitória é absolutamente necessária – este, é claro, é o objetivo final; a ela se chega geralmente pelo cansaço porque paciência e tempo livre não lhes faltam -, o mais importante, no entanto, é ‘colocar’ a posição do partido e se possível ‘tirar’ uma decisão. Notem os verbos empregados: não se referem à discussão, ao debate de idéias, mas denunciam uma intenção concreta.
Se for necessário vencer, o estratagema de encolerizar o(os) adversário(s) para que percam a capacidade de pensar e passem a agredi-los, se tornando vítimas da ‘truculência fascista’, pode ser usado, e com isto angariam mais adeptos entre os neutros.

A segunda lição é de que ‘em algumas organizações ideologicamente neutras, ao invés de frações, havia “sleepers”, agentes clandestinos colocados secretamente com a finalidade de espionar e sabotar a organização considerada inimiga (para os comunistas não existe neutralidade, todo não comunista é inimigo) defendendo os interesses do partido e que, a um sinal pré-combinado, poderiam ser “acordados”. Não havia organização que não fosse infiltrada por frações ou sleepers ou ambos’.

O comunismo pós-soviético

 

A Perestroika, como foi denunciada por Golitsyn [vi] em 1985, era um plano para reestruturar não o comunismo, como parecia, mas a visão que o Ocidente tinha do mesmo e acabar com o anticomunismo. Foi elaborado em 1958 pelo Politbüro do PCUS baseado na leitura das obras de Antonio Gramsci levadas para a URSS por seu sucessor Palmiro Togliatti, dada a necessidade de abandonar a truculenta estratégia stalinista anterior que havia gerado um forte sentimento anticomunista.
O momento propício para ser desencadeado chegou quando a poderosa troika anticomunista – João Paulo II, Ronald Reagan e Margareth Thatcher – empolgava o mundo com suas idéias conservadoras e reformas liberais. Até hoje muita gente acredita que suas ações venceram o comunismo. Nada mais falso!

Ao contrário, a queda de URSS permitiu uma expansão rápida e prolífica, podendo-se dizer que o comunismo, sem a URSS, tornou-se muito mais forte exatamente por ser mais aceito pela liquidação do anticomunismo. Não foi a URSS que criou o comunismo, mas este que criou a URSS e usou-a enquanto foi necessário descartando-a quando se tornou um empecilho. Putin e o FSB, um disfarce para a continuação intacta do KGB, mantiveram acessa a chama comunista e a reconstrução atual da URSS é uma realidade insofismável.

Se a Nova Classe pressupõe a existência de um partido hegemônico, o conceito de partido aqui é bem mais elástico, portanto, do que o que entendíamos no passado. Pode haver vários partidos envolvidos no processo, como também, e principalmente, a uniformização de pensamento das principais áreas privilegiadas da sociedade mesmo não pertencentes diretamente a nenhum partido político. É aí que entra o conceito de Gleichshaltung já definido como a coordenação, sincronização e uniformização de todos os aspectos da sociedade, principalmente do pensamento, e sua conformação com os desígnios da Nova Ordem.
A Nova Ordem Mundial e a superação do sentido ‘nacional’ de nova classe

 

As ideias sobre uma Nova Ordem Mundial são muito antigas e já escrevi vários artigos sobre isto [vii]. Abordarei aqui apenas o que se refere à Nova Classe, pois desde que Đilas a denunciou, tomou força a idéia de uma Nova Classe não mais nacional, mas mundial. O que denominei (op.cit.) Uma aliança improvável ... mas real!
Pode ser resumido em poucas palavras: as grandes corporações, o big business conseguido através da livre iniciativa e da concorrência, criaram os metacapitalistas aos quais a competição não mais interessa. Segundo o conselho de Frederick C. Howe (Confessions of a Monopolist): ‘arranje um monopólio, deixe a sociedade trabalhar para você e lembre que o melhor negócio de todos é a política, porque uma concessão legislativa, uma franquia estatal, um subsídio ou uma isenção de impostos vale mais do que uma mina (de diamantes) em Kimberley, porque não exige nenhum trabalho, nem físico nem mental para explorar’.

Ou, com outras palavras, o melhor sócio do mundo é o governo e, se a corporação for suficientemente poderosa, vários governos. São as hoje denominadas PPP, parceiras público-privadas, que Eike Batista chamou de ‘kit felicidade’.
E certamente quanto mais forte for o governo e maior controle exercer sobre a sociedade, melhor para os investimentos. O big business execra principalmente duas coisas: na economia, a livre concorrência e na política, as eleições periódicas, livres e não controladas (x).

Anthony Sutton, em seu livro Wall Street and the Bolshevik Revolution (Bucanner Books, 1993) afirma que em 1917 o regime corrupto do Tzar foi substituído por outro poder corrupto, dos bolcheviques.
‘Os Estados Unidos poderiam contribuir para uma Rússia livre, mas Wall Street não podia tolerar uma Rússia livre, democrática e descentralizada’. O regime bolchevique altamente centralizado era tudo que desejavam, pois a centralização do poder econômico só se dá num regime politicamente centralizado.

Ao aspecto econômico aliou-se o político: Woodrow Wilson, que se reelegera em 1916 com o slogan ‘Ele nos manteve fora da guerra’, tão logo tomou posse aproveitou o afundamento de um navio inglês que levava cidadãos americanos para declarar guerra às potências centrais. No mesmo ano, concedeu passaporte americano a Leon Trotsky, para facilitar sua participação na tomada do poder pelos bolcheviques.

Quando da Revolução de fevereiro de 1917 e o estabelecimento do Governo Provisório, Wilson impôs como condição de ajuda econômica, a manutenção da Rússia na guerra, em acordo com França e Inglaterra, que não queriam que a Alemanha liberasse suas forças na Frente Oriental, mas em total desacordo com a grande maioria do povo russo, principalmente os soldados espezinhados pelos oficiais imperiais que permaneceram em seus postos apesar da Revolução Republicana.

Esta era a hora de Wilson fortalecer o Governo Provisório com ajuda maciça, mas os assessores militares ingleses e franceses apostavam num golpe militar que mantivesse a Rússia na guerra. Apesar do caos que tomara conta do front, com soldados sem armas nem munição, mal nutridos e sem uniformes, desertando e correndo volta para casa, os Aliados continuavam querendo a Rússia na guerra a qualquer preço [viii]. Os russos queriam alguém que lhes tirasse da guerra o mais cedo possível.


A propaganda leninista maciça financiada pela Alemanha permitiu aumentar a tiragem do Pravda de 85 mil para 320 mil entre junho e julho, além do que passou a haver uma edição especial para os soldados, Soldatskaia Pravda, com tiragem de 350 mil. Antes de propagar as benesses do comunismo, faziam propaganda contra a guerra, o que era sinfonia aos ouvidos de soldados e operários.

O golpe de estado bolchevique foi possível porque, embora fossem minoria no Primeiro Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia (105 Delegados, contra 285 dos Socialistas Revolucionários e 248 dos Mencheviques [ix]), contavam com o apoio quase total da guarnição do Exército em Petrogrado (a grande maioria, 11 mil, pertencente ao Regimento de Metralhadoras) que se dividiu quando mandada para o front: mais da metade rebelou-se e apoiou os bolcheviques.

Tão logo tomou o poder Lenin começou a organizar a Nova Classe comunista: a antiga classe dominante recebeu a denominação genérica de burzhooi, palavra obviamente derivada do francês bourgeoisie, mas sem a conotação de classe social específica, e incluía indiscriminadamente empregadores, oficiais, proprietários de terra, padres, profissionais liberais e, eventualmente, judeus.

Para os jornais marxistas: ‘inimigos do povo’ em geral. Embora a maioria fosse de pequenos comerciantes, professores, médicos já empobrecidos pela guerra e pela inflação, sofreram pesados impostos e confiscos de bens. Os bancos foram nacionalizados e as caixas de segurança arrombadas. Todo o dinheiro foi parar nas mãos dos nouveaux riches soviéticos – comissários ‘do povo’, soldados e marinheiros, bandidos em geral.

O Terror Vermelho tornou-se política oficial de extermínio de toda a oposição e, mesmo sabendo das atrocidades que os bolcheviques passaram a perpetrar contra seu povo, o Terror Vermelho [x], Wilson continuou apoiando o governo revolucionário.

Quando se deu conta do que tinha feito era tarde demais. Mas os capitalistas de Wall Street se deram muito bem com o regime de seus ‘inimigos’. A Nova Classe nascia do roubo, já internacional desde as origens.

(x) Quando este texto ia ser publicado, foi divulgado pelo jornal O Globo as diferenças entre os preços de automóveis no Brasil, nos USA e no resto do mundo. Aqui, com um governo popular e protecionista o imposto é 32%, o lucro 10%, e o custo de produção 58%. No suposto paraíso das empresas são respectivamente 6-9%, 3% e 88-91%.


(Continua)

30 de agosto de 2012
Heitor De Paola

Notas:

[i] Mikhail Sergeievitch Voslensky descreveu a situação na URSS em NOMENKLATURA: Como vivem as classes privilegiadas na União Soviética, Rio: Record, 1980.
[ii] Herbert F. Ziegler, Nazi Germany’s New Aristocracy: The SS Leadership, 1925-1939, 1989, Princeton

[iii] Carta del Lavoro, VI: As associações profissionais legalmente reconhecidas asseguram a igualdade jurídica entre os empregadores e os empregados, mantendo a disciplina da produção e do trabalho, promovendo o seu aperfeiçoamento. As corporações constituem a organização unitária das forças de produção, representando integralmente seus interesses. Devido a esta representação integral, sendo os interesses da produção, interesses nacionais, as corporações são reconhecidas por lei como órgãos do Estado.

[iv] School of Darkness: The record of a life and a conflict between two faiths, NY, Devin-Adair Co., 1954

[v] Olavo de Carvalho, Como vencer um debate sem precisar ter razão, Rio: Topbooks, 2003

[vi] Anatoliy Golitsyn, New Lies for Old, Clarion House, Atlanta, 1984. E também The Perestroika Deception: the World Slides towards the ‘Second October Revolution’, Edward Harle, NY, 1990 (só foi publicado em 95).

[vii] Um bom sumário pode ser encontrado em O Eixo do Mal Latino-Americano e a Nova Ordem Mundial, É Realizações, SP, 2008

[viii] As informações que se seguem são do livro de Jim Powell, Wilson’s War: How Woodrow Wilson’s great blunder led to Hitler, Lenin, Stalin & World War II, Crown Forum, NY, 2005

[ix] Bolchievik (maioria) e Mienchievik (minoria) se referiam à cisão do Partido Social-Democrata Russo. Não obstante terem a maioria interna os bolchieviks jamais superaram os outros em votos populares.

[x] Segundo Richard Pipes (The Russian Revolution, NY:Knopf, 1990) ‘o Terror foi possível pela eliminação de todas as restrições legais e sua substituição por algo vagamente definido como “consciência revolucionária”. A Rússia Soviética foi o primeiro Estado em toda a história a formalmente colocar a própria lei fora da lei (to outlaw Law)’.

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