Não há deuses na política
A onda vermelha começa a amarelar. O sentido do verbo é menos o de mudança cromática e mais o de perder o viço, o frescor, empalidecer por causa da idade, conforme ensina Houaiss em seu dicionário.
A perda da vitalidade pode ser observada tanto na estética da paisagem quanto na semântica do discurso. Até a governante-mor mostra recato na liturgia do poder, ao usar com parcimônia seu tailleur vermelho. A referência, logo decifrada pelo leitor, é sobre o Partido dos Trabalhadores.
Todos recordam a miríade de estrelas e bandeiras rubras se espraiando por todos os cantos - das praças centrais das metrópoles, passando pelos jardins do Palácio do Alvorada e enfeitando as poeirentas ruas de distritos dos fundões do País.
Nesta campanha eleitoral já é possível prever que a maré vermelha não chegará à praia com o volume de água e a força de arrebentação que destroçavam territórios povoados por outras cores partidárias.
A se confirmarem projeções que indicam um refluxo eleitoral do PT em tradicionais domínios, pode-se aduzir sem risco de errar que, ao chegar aos 32 anos de vida, o tecido petista se mostra roto.
Antes que o tucanato se anime com a hipótese de ter resgatado a antiga força perdida para o petismo, é oportuno examinar sua saúde.
Para começar, seu radiador furado ameaça superaquecer o corpo de suas aves - cientistas descobriram recentemente que o imenso bico dos tucanos funciona como um radiador que dissipa o calor do seu corpo, permitindo-lhe permanecer com temperatura amena. Pois bem, o radiador tucano há tempos deixa vazar água, porque o bico está esburacado.
Quem observou o estrago foi um tucano de alta plumagem, o arguto ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele foi ao ponto: o PSDB enfrenta intenso desgaste de material. Em 24 anos, os tucanos não souberam oxigenar seu corpo, renovar o bico, reciclar as asas. Imaginaram que, deitados no leito da classe média alta, podiam estender seu império a partir do comando da Nação durante oito anos. Fincaram profundas estacas em Estados poderosos, como São Paulo, Minas Gerais e Paraná. Um feito. Mas é inegável que os parafusos da máquina tucana estão espanados por falta de lubrificação das engrenagens.
Portanto, neste ciclo eleitoral as bandeiras rotas do PT desfilam ao lado de figuras carimbadas do PSDB. O tecido petista começou a esgarçar em 2005, na malha dos Correios, quando um vídeo mostrou um chefete recebendo dinheiro para intermediar negócios.
O episódio abriu o escândalo do mensalão. O então presidente do PTB, deputado Roberto Jefferson, contrariado com denúncias envolvendo seu nome, batizou a compra de votos de deputados com o neologismo. O caso começou a ser julgado em 2007.
O governo Lula chegou ao final imerso na poeira levantada pelo tufão.
O ex-presidente tentou tergiversar, negando a existência do mensalão, após se dizer traído e pedir perdão aos brasileiros por "práticas inaceitáveis". Usou o carisma, o programa de distribuição de renda (Bolsa-Família), o incentivo ao consumo e o controle dos eixos macroeconômicos para glorificar o petismo-lulismo. A estética vermelha dominava os ambientes. Os milhões de brasileiros ingressos no novo patamar da pirâmide social engrossaram o refrão do Lula-lá.
A dinâmica social, porém, acabou plasmando um antivírus. A organicidade social intensifica-se na esteira da multiplicação de bolsões de defesa de contribuintes e da mobilização de categorias que acorrem aos corredores institucionais.
Independência e autonomia passam a iluminar as consciências. A presidente Dilma, com sua identidade técnica, edifica um escudo que a protege da chuva ácida que fura o telhado petista. A crítica à representação política, na esteira de denúncias de malversação do dinheiro público, nivela entes partidários e forma ondas de contrariedade. O PT e seus ícones entram no primeiro plano da cena. E agora se constata que Lula não é "deus", como proclamou a hoje ministra Marta Suplicy. Não há deuses na política. Nem ela dobra a vontade do eleitor, como sugeriu.
O julgamento do mensalão vira o hit do momento. Marolas saem do meio do oceano social e chegam às margens, carregando indignação. Matérias bombásticas e recados de réus pairam como ameaça ao projeto petista.
Figuras de proa temem ser jogadas no meio do fogaréu. Ao entrar na guerra eleitoral disposto a costurar as bandeiras vermelhas País afora, Luiz Inácio assume o risco de sair da batalha como o grande perdedor. Vende continuidade com a lábia carismática. Mas o discurso está embalado em celofane velho: palanques, colchões assistencialistas, economia controlada. Será isso o novo? A invencionice de programas marquetados já deu o que tinha que dar.
Na floresta tucana as copas das árvores também amarelam. As folhas no chão formam um tapete apodrecido. E mais: o próximo capítulo do espetáculo midiático será o mensalão mineiro. Que jogará o PSDB no banco dos réus. Em suma, os tucanos não têm sido capazes de substituir seus grandes perfis por ideias luminosas.
O partido gira em torno de quatro a cinco caciques. São inegáveis suas qualidades pessoais, a experiência acumulada, os programas implantados nos territórios que governam. Jamais se poderá apagar a contribuição dada pelo ciclo FHC ao Brasil moderno. Foi ele, sim, que abriu as portas da estabilidade econômica. Mas essa é uma página virada. Qual é o projeto de futuro?
Não é de admirar, pois, que PT e PSDB estejam na maior encruzilhada de sua vida. Décadas de arengas e querelas corroeram seus estoques de credibilidade. Veja-se a campanha paulistana. O eleitorado mostra-se cansado e resiste a entrar no jogo da polarização.
Demonstração da saturação é a tendência a escolher um nome distante dos figurinos petista e tucano. Sinal dos tempos: as duas grandes estruturas partidárias que mais pregavam a ética na política estão vivendo horas de pesadelo.
23 de setembro de 2012
Editorial de O Estado de São Paulo
Gaudêncio Torquato
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