"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 29 de outubro de 2012

ESCRITORES QUE NÃO MERECEM PERDÃO


Via Facebook, me escreve Fernando Felipe Cordeiro Pessoa, em função de meu artigo sobre Graciliano Ramos:
Muito peculiar essa figura. Curioso que integrava, sem a devida consciência disso, o próprio contra-ideal que combatia.

O Brasil era o que era, e a partir da leitura que fazia do seu país, o que restaria esperar? Idealizou a URSS como berço das coisas que acreditava. Obstinou-se em alimentar sua fantasia. Fora disso, só havia a Alagoas real, o Brasil dos oligarcas. Janer fala de Koestler que já denunciava os soviéticos, também havia Kravchenko, Orwell, Victor Serge.


Será que Graciliano não lia esses sujeitos? Mas mesmo que os tivesse lido, por que acreditaria nesses ex-comunistas? Por que não seriam esses sujeitos uns vendidos, traidores de um ideal superior? Por que seriam esses os sinceros de todo coração e não toda aquela massa de intelectuais e camaradas, que efusivamente decantavam a Terra Santa?

Uma guerra é feita especialmente de mentiras. Graciliano, como todos de sua época, tinha mentiras a sua escolha para abraçar. Escolheu as sinceras. Não acho que caiba crucificá-lo por isso.


Não tem perdão, meu caro Fernando Felipe. Existem mentiras sinceras? Graciliano viajou em 52. As purgas de 36, os gulags, a ausência de liberdade de expressão, a proibição de sair do bloco soviético, o massacre dos kulaks, o holodomor, eram fatos amplamente conhecidos na época.

Em 52, nenhuma pessoa honesta pode afirmar que Stalin é o “estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, nunca o enganou. Não poderia enganá-lo. Esforçou-se por vencer o explorador, viu-o morto - e seria idiota supor que, alcançada a vitória, desejasse a ressurreição dele. É, desde a juventude, um defensor da classe trabalhadora".

Com a mesma nonchalance que o PT comprou o Congresso em 2003, Stalin comprou os intelectuais do Ocidente nos anos 40 e 50. Ainda há pouco comentei o livro de outro escritor deslumbrado com o stalinismo, que viajou a Moscou (e a Pequim) praticamente na mesma época que Graciliano.

Falo do gaúcho Josué Guimarães, que não é de duvidar que estivesse no mesmo pacote de escritores comprado pelo Paizinho dos Povos. Em As Muralhas de Jericó, escrito em junho daquele ano e só publicado em 2001, doze anos após a queda do muro de Berlim e dez anos após o desmoronamento da União Soviética, o autor louva a União Soviética de Stalin como um exemplo para as nações e para o futuro. Escreve Josué:

Este livro tem a pretensão de derrubar as muralhas que separam, praticamente, o Ocidente do Oriente, fazendo deste mundo um só. Para tanto faltam engenho e arte. Porém, se não tiver a força e a magia das trombetas do Profeta, se não for capaz de destruir as muralhas simbólicas que hoje têm o nome de Cortina de Ferro, que pelo menos sirva para tirar desse muro de indiferença uma única pedra. Só isto justificaria a veleidade de publicá-lo. Pois a fresta assim aberta daria para que duas mãos se apertassem, fraternalmente, iniciando uma era de compreensão e vontade, únicos sentimentos que ainda poderão devolver a Paz aos homens.

No fundo, Josué quer absolver Stalin dos crimes tremendos de que, já na época, era acusado. Em Moscou tudo é lindo.
O nível cultural do povo soviético talvez seja hoje um dos mais elevados do mundo. Tive grande preocupação em observar este aspecto. (...) Uma tarde, a delegação brasileira, ao deixar o Hotel Nacional, teve a atenção de todos despertada para uma aglomeração à porta de uma livraria que nós havíamos visto várias vezes. Homens e mulheres disputavam a primazia na porta e muitos outros saíam de lá de dentro empunhando um livro qualquer. Fomos nos informar do que havia.
E o espanto foi tanto, para nós, brasileiros, que ninguém comentou o sucedido depois, ruminando lá as suas incompreensões e engolindo seco seu espanto.
Tratava-se, simplesmente, de mais uma edição de um livro sobre filosofia, disputado de tal maneira que me lembrou episódio igual, numa banca de São Paulo, no dia em que saiu uma edição nova da revista Grande Hotel, uma cretiníssima coleção de histórias de amores mal correspondidos de mistura com a vida secreta de Hollywood e conselhos sobre a melhor maneira de encontrar um marido.

E seriam intelectuais os que tanto esforço faziam para comprar um pesado livro sobre filosofia? A resposta é negativa e verdadeira. Talvez seja difícil para nossa mentalidade compreender o interesse do operário de uma fábrica qualquer por um assunto sério, de cultura.

Ou o desejo da moça que dirige um trem elétrico subterrâneo – naquele esplêndido Metrô de Moscou – em comprar um livro que trata de problemas transcendentais, fora das coisas diárias ou das estórias de casamentos frustrados. Mas para eles isso é uma coisa natural e não representa nenhum esnobismo ou atitude.

Nenhuma palavrinha sobre as prisões de intelectuais e dissidentes, que há muito vinham sendo enviados para os gulags. Este é o tom sempre baboso do livro. Tudo é grandioso, eficaz, inteligente, tudo é esperança no futuro e no homem novo, nas observações de Josué. Nenhuma palavrinha sobre a sufocação da literatura por Zdanov. Nenhuma menção ao desastre na agricultura provocado por Lyssenko.

Da mesma forma Graciliano, que era mais velho que Josué, esteve no mesmo período em Moscou, vivia nos mesmos anos em que Kravchenko denunciava os gulags e parece nada ter visto de criminoso no regime de Stalin.

Não por acaso, apenas dois anos após a viagem do escritor alagoano, um outro turista célebre louvava as virtudes do stalinismo. Declarações de Jean Paul Sartre ao jornal parisiense Libération, em 1954:

"A liberdade de crítica é total na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E o cidadão soviético melhora sem cessar sua condição no seio de uma sociedade em progressão contínua. Exceto alguns, os russos não têm muita vontade de sair do país... não têm muita vontade de viajar neste momento.
Têm outra coisa a fazer em casa". "Lá por 1960, antes de 1965, se a França continua estagnada, o nível médio de vida na URSS será de 30 a 40% superior ao nosso. Qualquer que seja o caminho que a França deve seguir para sair de seu imobilismo, para recuperar ser atraso industrial, para se constituir como nação diferente da de hoje, ele não pode ser contrário ao da União Soviética."

Graciliano sabia também de outras coisas. Que louvar Stalin significava ser publicado na URSS e, conseqüentemente, na Europa. E que criticar Stalin significaria sua morte literária no Brasil. No mesmo ano, viajou a Moscou - talvez até no mesmo grupo - o jornalista gaúcho Orlando Loureiro, que desmitificou o regime soviético em seu livro À Sombra do Kremlin. Teve uma única edição e o autor foi ostracizado.

Na mesma viagem de Graciliano, andava também em Moscou Jorge Amado - esse “ruidoso camelô do marxismo”, como o definiu Loureiro – que também fez carreira louvando Stalin, vide o baboso O Mundo da Paz. Aderir ao marxismo e a seus tiranos, na época, era aposta certa no sucesso literário.

E continuou sendo por muito tempo. Por exemplo, José Saramago, o prêmio Nobel português de Literatura. Durante toda sua vida, apoiou as tiranias comunistas. Só foi romper com Cuba em 2003, quando 75 dissidentes foram presos e três pessoas foram executadas em um julgamento sumário. Castro vinha executando opositores desde 1959, e Saramago rompeu com o tirano só 44 anos depois. Em uma carta, escreveu: "De agora em diante Cuba segue seu caminho, eu fico aqui. Cuba perdeu minha confiança e fraudou minhas ilusões".

Ou ainda mais recentemente esta outra prostituta arrependida, o Ferreira Gullar – José Ribamar de pia -, que recém em agosto deste ano descobria o horror do socialismo. Gullar filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro no dia 1º de abril de 1964, 28 anos após a denúncia das primeiras purgas de Stalin em 1936, quinze anos após a denúncia dos gulags por Viktor Kravchenko em Paris, em 1949, nove anos após a denúncia dos crimes de Stalin por Nikita Kruschev, em 1956, no XX Congresso do PCUS. Doze anos após as louvações de Graciliano a Stalin. Isto é, o maranhense aderiu ao partido quando a nenhum cidadão honesto era mais permissível ignorar os crimes do regime soviético.

Em 1971, partiu para o exílio e foi acolhido de braços abertos por Moscou, a nova Jerusalém das esquerdas. Mas logo preferiu viver no bom mundo capitalista, passando a residir em Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires.

O Ribamar atroz precisou de quase meio século para render-se à evidência histórica. Tempo mais que suficiente para a prostituta maranhense construir uma carreira literária, abiscoitar aqueles prêmios que a burritsia nacional reserva para os fiéis cultores do obscurantismo e pretender-se inclusive nobelizável. Para quem vive em torre de marfim, seguido ocorre a tentação da mosca azul. Recém em fevereiro deste ano, Gullar ousou criticar a Disneylândia das esquerdas:
Nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem permissão. É com enorme dificuldade que abordo este assunto: mais uma vez – a 19ª – o governo cubano nega permissão a que Yoani Sánchez saia do país.

A dificuldade advém da relação afetiva e ideológica que me prende à Revolução Cubana, desde sua origem em 1959. Para todos nós, então jovens e idealistas, convencidos de que o marxismo era o caminho para a sociedade fraterna e justa, a Revolução Cubana dava início a uma grande transformação social da América Latina. Essa certeza incendiava nossa imaginação e nos impelia ao trabalho revolucionário.

Nos primeiros dias de novo regime, muitos foram fuzilados no célebre “paredón”, em Havana. Não nos perguntamos se eram inocentes, se haviam sido submetidos a um processo justo, com direito de defesa. Para nós, a justiça revolucionária não podia ser questionada: se os condenara, eles eram culpados.

E nossas certezas ganharam ainda maior consistência, em face das medidas que favoreciam aos mais pobres, dando-lhes enfim o direito a estudar, a se alimentar e a ter atendimento médico de qualidade. É verdade que muitos haviam fugido para Miami, mas era certamente gente reacionária, em geral cheia da grana, que não gozaria mais dos mesmos privilégios na nova Cuba revolucionária.


Gullar precisou de mais de meio século – 53 anos – para descobrir que um país comandado por 47 anos pelo mesmo homem era uma ditadura. Longo é o caminho de um bolchevique até o entendimento.

Graciliano morreu um ano após sua viagem – no mesmo em que morreu seu ídolo, Stalin. Morreu três anos antes das denúncias de Kruschev no xx Congresso do PCUS. Tivesse morrido depois, talvez renegasse à sua fé. Mesmo assim, seria uma descoberta tardia. Teve em vida todos os elementos para saber que Stalin era um tirano responsável pela morte de milhões, e mesmo assim foi reverenciar o “menino”, em seu berço em Gori.

Essa gente não merece perdão. Graciliano muito menos.


29 de outubro de 2012
janer cristaldo
 

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