Em meus verdes anos, lá pelos quinze anos, imaginei que estudando Filosofia eu chegaria um dia à tal de Verdade, assim com H maiúsculo. Não sei de onde tirei essa idéia maluca, o fato é que assim pensava.
Na época, li uma história da filosofia de Will Durant, na qual o autor arrolava quais obras um homem culto tinha de ler. Fiz minha listinha e fui procurá-los na Livraria do Globo, em Santa Maria, o centro cultural mais próximo de Dom Pedrito.
Até que encontrei muita coisa. Na época, a editora Globo publicou a Biblioteca dos Séculos, coleção na qual se podia encontrar uma boa súmula do pensamento filosófico universal. Comecei pelos gregos. Gostei de ler Platão, me diverti com os sofismas de Sócrates. Mas emperrei nos pré-socráticos. Particularmente em Zenão de Eléia e seu paradoxo de Aquiles e da tartaruga. Vamos a ele.
Aquiles, o herói grego, e a tartaruga decidem apostar uma corrida. Como a velocidade de Aquiles é maior que a da tartaruga, esta recebe uma vantagem, começando corrida um trecho na frente da linha de largada de Aquiles.
Aquiles nunca sobrepassa à tartaruga, pois quando ele chegar à posição inicial A da tartaruga, esta encontra-se mais a frente, numa outra posição B. Quando Aquiles chegar a B, a tartaruga não está mais lá, pois avançou para uma nova posição C, e assim sucessivamente, ad infinitum. Assim narram as enciclopédias o paradoxo.
Vivesse eu naqueles dias, proporia um outro paradoxo, o de Zenão e a flecha. Me muno de um arco e flecha. Zenão sai na frente. É óbvio que a flecha nunca atingirá Zenão, pois quando ela chegar à posição inicial A de Zenão, este encontra-se mais a frente, numa outra posição B. Quando a flecha chegar a B, Zenão não estará mais lá, pois avançou para uma nova posição C, e assim sucessivamente, ad infinitum. É curioso que os gregos, tão malandros, não tenham pensado nisto. Zenão queria negar a possibilidade do movimento. Direito dele. Há até quem afirme a existência de Deus. O que me espantava não era sua pretensão intelectual, mas o fato de que seus contemporâneos – e mesmo pósteros – o tivessem levado a sério. Através de um artifício intelectual, Zenão negava a evidência. Você podia ver à vontade Aquiles ultrapassando a lebre, mas conceitualmente isto era impossível.
Daí a acreditar em Deus basta um pequeno passo. Que encontramos no argumento sumamente rídiculo – et pour cause – da Suma Teológica, que Tomás empunhava para provar a existência de Deus, o da causa não-causada. Se tudo tem uma causa, o universo também deve ter uma. E como isto não pode se repetir indeterminadamente (quem disse que não?), então em algum momento existe aquela causa que não é causada é esta causa não-causada é Deus.
Simples assim. Mas se hoje ninguém leva a sério Zenão de Eléia, crentes é o que não falta para brandir o argumento do aquinata. Não por acaso, o paradoxo da tartaruga remete – segundo alguns – à mecânica quântica e ao Princípio da Incerteza, formulado por Werner Heisenberg, em 1927. E ao famoso gato de Schrödinger.
Longe de mim pretender discutir física quântica, eu que nem de física entendo. Muito menos de medicina, o que não me impede de dar meus palpites. Em 1981, uma amiga médica me convidou para uma viagem à Romênia, queria tratar-se na clínica da Dra. Ana Aslan. Me pagava todas as despesas de viagem, eu serviria como uma espécie de guia e intérprete. Não me desagradou a idéia. Mas bastou pesquisar um pouco sobre a doutora romena e fiquei com um pé atrás. “Isso é picaretagem. Sugiro o seguinte: vamos pras ilhas gregas e eu pago minhas despesas”.
A objeção veio voando: “o que é que tu entendes de medicina?” Bom, de medicina eu não entendia nada. Mas de picaretagem entendia muito. Ela foi irredutível e fomos pra Romênia. Duas semanas depois, chegou à conclusão que se tratava de picaretagem. Enfim, não foi viagem inútil. Tivemos a oportunidade de constatar, in loco, a miséria do socialismo.
Vamos ao que interessa. Comentando a concessão deste Nobel de Física aos cientistas David Wineland e Serge Haroche, a última edição de Veja atribui o prêmio à verificação em laboratório do paradoxo da mecânica quântica, intitulado o Gato de Schrödinger, que estaria morto e vivo ao mesmo tempo. Vamos ao gato.
Segundo as enciclopédias, este experimento mental consiste em um gato preso dentro de uma caixa sem transparências, junto a um frasco de veneno e um contador Geiger ligados por um relé, e um martelo. O contador Geiger será acionado ou não. Se for, transmitirá movimento através do relé; o martelo baterá no frasco de veneno quebrando-o e o gato morrerá. Mas se o contador não for acionado, o martelo não quebrará o frasco e o gato permanecerá vivo.
Esse experimento mental foi proposto por Erwin Schrödinger em 1935 para demonstrar os estados de superposição quântica: só saberemos se o gato está vivo ou morto se abrirmos a caixa, mas se isso for feito, alteraremos a possibilidade do gato estar vivo ou morto. O princípio está intrinsecamente ligado ao Princípio da Incerteza de Heisenberg, que por sua vez está ligado ao paradoxo de Zenão de Eléia. A vigarice vem de longe.
Ora, fere a evidência afirmar que um gato está morto e vivo ao mesmo tempo. Você pode jogar com palavras à vontade. Mas o gato ou está vivo...ou está morto. É espantoso como o homem contemporâneo é crédulo a ponto de negar o óbvio, desde que esta negação do óbvio seja proferida por alguma alta autoridade. E mais: que seja ininteligível. O ser humano adora crer no que não entende. Você pode até aceitar o paradoxo lógico. Mas lógica é criação mental. Realidade é outra coisa.
Confesso não saber se foi por estas razões que o prêmio foi concedido. Até hoje há quem acredite que Einstein recebeu o Nobel pela teoria da relatividade. Não foi. O comitê do Nobel foi alertado de seu plágio e conferiu-lhe o prêmio pelo efeito fotoelétrico. Mas vamos que tenha sido pelo experimento de Schrödinger. Se o foi, o prêmio Nobel de Física cai, em meu conceito, para o mesmo conceito que tenho dos Nobéis de Paz e Literatura.
Seja como for, Veja é muito crédula em matéria de vigarices. Em outubro de 2010, com o título de capa “Medicina e Fé”, a revista, em um atentado à ciência, fazia um aceno à terapia espírita, à impostação de mãos e ao tal de reiki. Ora, a imposição de mãos, na verdade, é uma antiga picaretagem, retomada por Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec (1804 – 1869), que misturou evangelhos com a teoria do magnetismo animal do austríaco Franz Anton Mesmer, com mais algumas pitadas de budismo, no caso, a reencarnação. Mesmer era médico, estudava teologia e instituiu como terapia a imposição das mãos. Criação nada original, afinal já está nos Evangelhos. Se voltarmos um pouco atrás, encontraremos a prática no Egito, no templo da deusa Isis, onde multidões buscavam o alívio dos sofrimentos junto aos sacerdotes, que lhes aplicavam a imposição das mãos.
Segundo a revista, o biólogo Ricardo Monezi, pesquisador de medicina comportamental na Universidade Federal de São Paulo, testou a influência da impostação de mãos (técnica chupada tanto pelo reiki como pelos espíritas) em ratos com câncer, divididos em três grupos. No terceiro, submetido à impostação de mãos, as células de defesa foram até 50% mais eficientes no combate às células tumorais do que as dos outros ratos. (Comentei há pouco esta vigarice).
Sem falar no famoso caso do boimate, que sempre é bom relembrar. Em 1983, a revista endossou como verdade científica uma brincadeira lançada pela revista inglesa New Science. Tratava-se de uma nova conquista científica, um fruto de carne, derivado da fusão da carne do boi e do tomate, que recebeu o nome de boimate. Se a editoria de ciências visse esta notícia num jornal brasileiro, evidentemente ficaria com um pé atrás. Para a revista, a experiência dos pesquisadores alemães permitia “sonhar com um tomate do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de tomate. E abre uma nova fronteira científica".
Isso que a New Science dava uma série de pistas para evidenciar a piada: os biólogos Barry McDonald e William Wimpey tinham esses nomes para lembrar as cadeias internacionais de alimentação McDonald´s e Wimpy´s. A Universidade de Hamburgo, palco do "grande fato", foi citada para que pudesse ser cotejada com hambúrguer. Os alertas de nada adiantaram. Como se tratava de uma prestigiosa publicação européia, a Veja embarcou com entusiasmo na piada.
Vejo no entanto que a imprensa internacional tem associado pelo menos o nome de Serge Haroche ao gato de Schrödinger. Consta inclusive que Brigite Bardot está exultante, porque desta vez tem certeza de que o gato vai sobreviver. Quanto a mim, reitero que nada entendo de física quântica.
Já quanto à picaretagem...
13 de outubro de 2012
janer cristaldo
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