“Tudo não passou de caixa dois de campanha” vai ficar como a frase-símbolo do poder petista quando, no futuro, a historiografia quiser contar como era cínico o Brasil de outros tempos. De tão repetida pelo PT, pelos aliados do governo e pelos advogados dos réus do Supremo, a frase virou um código.
Quando ela aparece, já se sabe que os acusados reconhecem que este é um país sério, que houve crime e que quase ninguém está acima da lei… eleitoral. Bem verdade que, por essa lei, o crime já prescreveu. Mas, que diabo, não se pode ter tudo na vida. Não dá para eliminar a ironia e a pantomima da história política brasileira assim, do dia pra noite.
Reunido há dois meses para julgar o escândalo, o STF é formado na sua maioria por ministros nascidos das canetas de Lula e de Dilma Rousseff. Misturam-se no plenário magistrados da linha Lewandowski e julgadores da linha Barbosa. De repente, os magistrados do segundo grupo decidiram que chegou a hora de a marmelada desandar. Concluiu-se que houve compra de votos.
A conclusão é preocupante. Esse negócio de ficar chamando os crimes pelo nome verdadeiro, sem eufemismos, ainda vai dar problema. Vem aí o julgamento do mensalão do PSDB de Minas. Se a moda pega, o que será da democracia brasileira?
O mensalão virou escândalo quando Roberto Jefferson levou os lábios ao trombone, em 6 de junho de 2005. Dias depois, em 17 de julho de 2005, Lula diria naquela célebre entrevista parisiense, levada ao ar em programa de nome sugestivo (‘Fantástico’): “O que o PT fez do ponto de vista eleitoral é o que é feito no Brasil sistematicamente. […] Não é por causa do erro de um dirigente ou de outro que você pode dizer que o PT está envolvido em corrupção.”
Lula falou em reforçar o combate aos malfeitos. Pronunciou outra expressão-mantra do Brasil dos escândalos: “Doa a quem doer.” (Reveja abaixo).
http://www.youtube.com/watch?v=rhDBXbWS8eI&feature=player_embedded
As violas de Valério e Delúbio haviam sido afinadas em reuniões subterrâneas realizadas no eixo São Paulo-Brasília-Belo Horizonte. A adoção da frase-símbolo – “Tudo não passou de caixa dois de campanha”— fora endossada pela direção do PT – o presidente José Genoino à frente — e pelo defensor de Delúbio, o advogado Arnaldo Malheiros.
Ouvido, José Dirceu, o então todo-poderoso chefe da Casa Civil, endossara a saída. Informado, o ministro da Justiça da época, Márcio Thomaz Bastos, levara a fórmula a Lula como um mal menor para o governo. Numa conversa testemunhada por Antonio Palocci, ainda um respeitável czar da economia, Lula endossara a saída, propalando-a depois na desconversa de Paris.
Mal comparando, Valério, o PT, o governo e sua base aliciada ajeitaram para o mensalão uma explicação análoga à que a ditadura empinara no episódio do Riocentro. Com uma diferença: no caso da bomba que explodiu no puma a explicação oficial foi a de que se tratava de um complô da esquerda. No mensalão, o complô era da direita. Envolvia a oposição preconceituosa, a imprensa golpista, e, mais tarde, também a Procuradoria sensacionalista.
A tese tinha lá o seu apelo. Ou o governo que retirava os brasileiros da miséria era vítima de um complô coletivo ou o país estava diante de um gigantesco mal-entendido. Uma sequência de fatos mal explicados que, submetidos à interpretação de mentes maliciosas, convertia o partido da ética e o governo dos pobres numa fraude nunca antes vista na história desse país.
O melado escorria normalmente. Súbito, vem o Supremo com a novidade de querer injetar lógica no processo. Em vez de reconhecer a perfídia humana como um dado da realidade, os julgadores querem fazer o Brasil acreditar que tudo o que está na cara, todas as provas reunidas pela Polícia Federal revelam a ação de “marginais do poder”, na definição crua do ministro Celso de Mello.
Na semana passada, como que farejando o cheiro de queimado, um grupo de brasileiros ilustres alertara o país para o que estava por vir. Em carta aberta assinada por gente de grife – de chefões dos movimentos sociais a jornalistas e intelectuais companheiros — repudiara-se a superexposição do julgamento.
O texto criticara “parte da cobertura na mídia e até mesmo reações públicas.” Manifestara preocupação com a conversão de ministros do STF em “heróis”.
“Somos contra a transformação do julgamento em espetáculo, sob o risco de se exigir – e alcançar – condenações por uma falsa e forçada exemplaridade. Repudiamos o linchamento público e defendemos a presunção da inocência.”
Assinam a peça personagens como João Pedro Stédile, do insuspeito MST; Fernando Moraes, biógrafo de José Dirceu; Luiz Carlos Barreto, produtor da fita ‘Lula, o filho do Brasil’; e até Luiz Carlos Bresser Pereira, tucano e amigo de FHC. Os desdobramentos da encrenca revelam que os signatários da carta estavam cobertos de razão.
Sob os holofotes da TV Justiça, a maioria dos ministros do Supremo, como que rendida à cobertura da parte da mídia que insiste em desvirtuar o combinado, resolveu aderir ao complô golpista de direita. O STF se excede. E estava entendido que, no Brasil, só o cinismo e a corrupção podiam ser excessivos.
Admitindo-se a compra de apoio político no Congresso, será necessário apontar os compradores. Insista-se: esse negócio de chamar os crimes pelo nome –corrupção, peculato, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha…— vai acabar dando problema.
Não bastasse a interrupção dos negócios que transitavam pelo esquema, ainda querem impor a cadeia! O Brasil cínico das sombras era um país bem mais simples.
02 de outubro de 2012
Josias de Souza - UOL
Nenhum comentário:
Postar um comentário