“LULA METALÚRGICO” FAZ UMA CONFISSÃO: “NÃO TENHO VOCAÇÃO POLÍTICA”
O sobrenome não era um sobrenome. Era uma profissão: metalúrgico. O nome não era um nome. Era um apelido: Lula. A combinação esquisita de um nome que era apelido e um sobrenome que era uma profissão servia para identificar aquele sindicalista que despontava para a fama: Lula Metalúrgico.
Era assim que nós, repórteres que cobríamos a visita do sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva ao Recife, no remoto ano de 1979, o chamávamos.
Lula já tinha sido capa de uma revista semanal. Começava a atrair a atenção do Brasil como o primeiro líder sindical surgido sob o regime militar. Fazia, ali, a primeira visita a Pernambuco depois de ficar conhecido. Ainda não era uma celebridade.
Quem poderia imaginar que aquele pernambucano que voltava ao Recife para defender um “novo sindicalismo” iria, um dia, subir a rampa do Palácio do Planalto como presidente? Ninguém.
O Partido dos Trabalhadores não existia. Era apenas uma idéia na cabeça daquele sindicalista, que, ao abrir a boca diante de platéias, subtraía o “s” do plural das palavras com a mesma desenvoltura com que soltava imprecações contra governos militares que manipulavam os índices de inflação.
O Lula que desembarcou no Recife era um líder sindical que resistia às cantadas para se engajar em partidos políticos – não importa quais fossem. Descubro em meus arquivos uma gravação em que ele avisa: “Não sou filiado a partido político algum. Não sou filiado à Arena, não sou filiado ao MDB.
Fui contra o bipartidarismo quando ele foi instituído. Por uma questão pessoal, enquanto houver bipartidarismo, não vou me filiar a partido político algum. Quem sabe, um dia, surja um partido em que os trabalhadores tenham voz, onde os trabalhadores sejam maioria. Quando surgir esse partido, serei – não tenham dúvida – um dos filiados”.
O sindicalista Lula estava a um milhão de anos-luz do candidato Lula que, quase um quarto de século depois, seria capaz de dar bom-dia a poste em troca de um voto – como faz todo candidato que se preza.
O Lula Metalúrgico pichava gente da Arena e do MDB, dispensava a ajuda de estudantes que se ofereciam para distribuir panfletos a operários, acabrunhava-se com a intromissão de intelectuais na atuação do sindicato, fazia restrições à ótica das pastorais operárias da Igreja Católica, esculachava a conduta da chamada “grande imprensa”.
Aos que tentavam sondar seus planos futuros, oferecia uma resposta que, hoje, soa como curiosidade arqueológica. Lula dizia que, simplesmente, não tinha vocação política. Dava-se por satisfeito no exercício da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos.
O então presidente da seção estadual do MDB – Jarbas Vasconcelos, oposicionista brigão que, duas décadas depois, se elegeria duas vezes governador de Pernambuco – é o cicerone na visita que o sindicalista barbudo faz ao arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara.
O arcebispo vivia numa casa modestíssima, nos fundos da Igreja das Fronteiras, no bairro das Graças, no Recife. Um pôster de Martin Luther King – com a inscrição “Eu tenho um sonho” – ornamentava a parede da sala.
Lula troca gentilezas com Dom Hélder. Diz que a trajetória do arcebispo servia de exemplo para os trabalhadores.
Dom Hélder ouve o elogio com um meio-sorriso nos lábios. Lula apresenta aos anfitriões o filho caçula, um menino de um ano e poucos meses:
“Ele tem esse nome de costureiro, Sandro, mas é macho!” Dom Hélder, Jarbas Vasconcelos e a mulher de Lula, Marisa, riem.
Aquela viúva que atraíra os olhares do também viúvo Luiz Inácio Lula da Silva se tornaria, tanto tempo depois, a primeira-dama do país. O primeiro marido de Marisa, um motorista de táxi, morreu assassinado num assalto. A primeira mulher de Lula morreu de parto – junto com o primeiro filho do casal.
Depois da visita a Dom Hélder, a estrela emergente do sindicalismo brasileiro faz uma pausa no périplo recifense para conversar com os repórteres.
Hoje a cena seria impensável, mas na época era assim que acontecia: em vez de convocar a imprensa para o local da entrevista, Lula é que se dava ao trabalho de ir a uma redação.
O “sapo barbudo” (apelido que ganharia dez anos depois, durante a campanha presidencial de 1989) revisita, então, memórias distantes:
Em que situação você saiu de Pernambuco para morar em São Paulo?
Não me lembro se foi em 1951 ou 1952. Mas saí de Pernambuco para não morrer de fome. Fui com toda a família. Meu pai já estava lá. Minha mãe tinha um pedaço de terra em Garanhuns, trabalhava na roça e não conseguia sustentar a família. Então, a única forma que ela encontrou para sobreviver – na época, eu era criança – foi ir embora, para onde estava o marido, para poder tentar cuidar dos filhos. Eu tinha uns seis anos.
Quando você começou a trabalhar em São Paulo?
Comecei a trabalhar em 1958, com 13 anos de idade. Trabalhava como tintureiro, numa tinturaria. Trabalhei quase três anos como tintureiro. Depois, entrei numa empresa metalúrgica. Trabalho hoje nas Indústrias Villares.
Como é que você entrou no sindicato?
Eu entrei no sindicato em 1969. Um dia, fui lá ver uma assembléia, gostei e fiquei.
Você reconhece que é o primeiro líder político que surgiu fora do âmbito parlamentar nesses últimos tempos?
Nem me considero uma liderança. Eu me considero, muito mais, um elemento que conseguiu captar os desejos de uma classe. Tentei levar os desejos dessa classe adiante e transformá-los numa bandeira de luta. Acho que a sociedade inteira tem muita responsabilidade – como os estudantes, com aqueles movimentos de 1977- e os intelectuais. Nós, os trabalhadores, somos um dos setores que entraram na briga.
Você se considera, então, um resultado da abertura comandada pela sociedade civil?
Exatamente. Porque faço parte dessa sociedade.
Além da circunstância política concreta da abertura, o fato de você ter conseguido se tornar porta-bandeira de uma classe pode ser atribuído a quê? Haveria uma vocação pessoal ou foram apenas as circunstâncias políticas que favoreceram?
Já começa a ficar difícil falar a gente... Gostaria que, aí, você colocasse de sua cabeça como é que você vê a coisa. Porque, para mim, fica muito difícil falar...
Alguma experiência passada de partidos políticos no Brasil entusiasmou você?
Não. Lamentavelmente, nenhuma.
Que experiência chegou perto do que você espera de um partido representativo?
Nenhum partido me entusiasmou. O Partido Comunista, por exemplo, sucumbiu da mesma forma que nasceu. Quer dizer: nasceu e morreu. Não foi obra dos trabalhadores. Veio de cima para baixo, um negócio imposto à classe trabalhadora. Alguns partidos que se diziam representantes da classe trabalhadora, como o PTB, o PC e o próprio Partido Socialista, nunca foram legitimamente representantes dos trabalhadores, porque não nasceram da classe trabalhadora. Foram impostos à classe.
Quais são, afinal, os planos de Lula na política?
Não sei. Não pensei ainda. Deixe contar uma coisa: toda essa vida que tenho levado tem me afastado muito de minha mulher e dos meus filhos. Hoje, praticamente, não disponho de um horário para minha família. Não posso permitir que minha mulher fique sozinha na hora de cuidar da família. A única coisa de que tenho certeza é que, no dia 25 de abril de 1981, eu me desligo do sindicato. O que vai acontecer depois daí só vou saber a partir do dia 25. Não tenho vocação política. Por enquanto, o que pretendo é continuar o trabalho no sindicato.
Vinte e três anos depois dessa entrevista, eis Luiz Inácio Lula da Silva aos primeiros minutos de um sábado, véspera da eleição presidencial de 2002. Diante de uma massa compacta de fotógrafos, repórteres e cinegrafistas, ele faz, num púlpito, um pequeno pronunciamento sobre o debate com José Serra, o candidato do PSDB.
Depois dos agradecimentos de praxe, volta a exercitar o humor que, há tempos, diante de Dom Hélder, levou-o a brincar com o nome do filho Sandro.
Lula pede uma trégua de “seis horas” aos repórteres e fotógrafos. Diz que, ao final da campanha, já não agüenta encarar microfones e máquinas fotográficas de manhã, à tarde e à noite.
“Depois de uma campanha como essa, sou capaz de pegar o barbeador para fazer a barba de manhã e começar a falar, porque vou pensar que o barbeador é microfone.
Um candidato pode abrir a geladeira para pegar água: quando a luz da geladeira acender, ele vai fazer uma declaração, porque vai pensar que a luz é de uma câmera...”
De fato: os momentos de solidão de Lula foram raríssimos naquela campanha. Quem observou com atenção o balé dos candidatos durante o debate nos estúdios da Central Globo de Produção flagrou uma imagem rara.
Minutos antes de serem chamados ao palco, ambos se concentravam longe dos olhos do público, numa espécie de baia, em extremidades opostas do palco. José Serra trocava confidências com assessores.
Num espaço de tempo que deve ter parecido uma eternidade para um homem assediado a cada aparição pública, Lula vivia seus três minutos de solidão. Caminhou de um lado para o outro, no espaço exíguo. Olhava para o chão. Em que estaria pensando?
O líder sindical que em 1979 se incomodava com a falta de tempo para se dedicar à família transformara-se no candidato que, em 2002, clamava por uma trégua no bombardeio dos flashes fotográficos.
Eleito presidente, ele teria de aprender a ser observado o tempo todo – pelo resto da vida, como acontece com todos os que um dia subiram a rampa com a faixa no peito.
(TRECHO DO LIVRO "DOSSIÊ BRASÍLIA : OS SEGREDOS DOS PRESIDENTES")
Posted by geneton at julho 8, 2007
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