"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 25 de novembro de 2012

VISITA AO INFERNO

 

Era sagrado. Bastava sentar na mesa do almoço e uma musiquinha tensa anunciava no rádio a Patrulha da Cidade. O locutor, Samuel Samuca Corrêa, tinha o estilo sensacionalista de certa imprensa nos idos dos anos 60.
 
O script era de um noticiário policial comentado. Sobraram na memória o tratamento agressivo contra os “bandidos” (muquiranas era o adjetivo mais suave) e uma delegacia que simbolizou, no meu imaginário adolescente, um terrível castelo de sombras.
 
Era a Invernada de Olaria, apresentada com requinte de sadismo por Samuca como o local de defesa da sociedade, dos justiçamentos. Podíamos dormir tranquilos, os policiais sabiam o que tinham que fazer … Ninguém ouvia ileso aquele programa. Ainda mais entre uma colher de arroz e outra de abóbora.
 
 
Violência naquela época tinha outra cara. O Rio convivia com punguistas, batedores de carteira, “olha o rapa !”, ladrões de galinhas, malandragem-navalha na Lapa, um ou outro crime passional, aqui e ali escândalos na classe média (como o assassinato de Cara de Cavalo e a morte de Dana de Teffé, jamais esclarecida; “Onde estão os ossos de Dana de Teffé ?” virou bordão do Carlos Heitor Cony).
 
Garrafas de leite e bisnagas eram colocados de manhã nas portas das casas, que não tinham grades, e não eram roubados. Andava-se pelas ruas a qualquer hora, sem a sensação de risco iminente. Nada de milícias ou bandos de traficantes armados dominando comunidades pobres. Poucos criminosos ganhavam notoriedade. Cara de Cavalo e Mineirinho foram exceções e, quando caçados, engordaram as tiragens da imprensa marron.
 
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CARA DE CAVALO
 
Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, atuou principalmente no Território Sagrado, a minha Tijuca. Foi cafetão, pequeno bicheiro, fumava seu baseado. Permaneceria apenas uma estatística se não tivesse matado, em tiroteio, um detetive famoso: Milton de Oliveira Le Cocq. Foi jurado de morte.
 
Mais de 2 mil policiais participaram da caçada, que terminou na estrada para Búzios. Com 23 anos, Cara de Cavalo foi executado por 52 tiros, sendo 25 somente na região do estômago. Entre seus algozes estavam alguns policiais, mais tarde tidos como sócios-fundadores e ativistas do Esquadrão da Morte. Foi o caso de Guilherme Godinho Ferreira, Sivuca, que imortalizou o lema “bandido bom é bandido morto”.
 
Cara de Cavalo tinha uma aura romântica. Roubava cargas e as distribuía no morro do Esqueleto, onde morou até os 16 anos. Seja marginal seja herói, conviveu com os artistas plásticos Lygia Clark e Hélio Oiticica. Foi nele que Hélio se inspirou para criar uma de suas obras mais famosas: um desenho, onde aparece o corpo de Cara de Cavalo e se lê: “Seja marginal, seja herói”.
 
Comparando com o que se vê hoje nas grandes metrópoles brasileiras, minhas memórias parecem roteiro de filme amador. A criminalidade se estruturou em pequenos exércitos, com armamento sofisticado, domínio de técnicas de mercado e penetração no espaço político institucional.
Na outra ponta, o consumidor financia a algazarra, comprando drogas. “De noite, Ipanema brilha”, dizia o ex-delegado Hélio Luz. O Estado fica amarrado entre a corrupção do aparato policial e a brutalidade das instituições carcerárias. Um Judiciário paquidérmico e obediente a leis que punem os mais fracos completam essa festa macabra.
 
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É MELHOR MORRER
 
Em tal contexto, a declaração do ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, de que preferia morrer a passar alguns anos numa prisão brasileira, merece um olhar atento.
Não é comum uma autoridade reconhecer que sua área de atuação anda mal das pernas. A rotina é a indústria de douração de pílulas. Reconhecido esse mérito, cabe perguntar por quê a constatação não veio acompanhada de uma necessária autocrítica.
Afinal, a turma do doutor está no poder há uma década e, embora a calamidade seja muito mais antiga, ficamos sem saber o que se está fazendo para retirar o sistema prisional brasileiro do status de masmorra medieval.
 
Temos a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de meio milhão de pessoas presas em celas superlotadas.
Os detentos vivem em péssimas condições de higiene, são forçados muitas vezes a se revezar para dormir, nas delegacias a tortura é arroz de festa, praticamente não há programas de ressocialização.
Um deputado federal identificou unidades prisionais onde cada preso tinha cerca de 70 centímetros quadrados para viver. Latifúndio … para um coelho.
 
O desespero e a corrupção fizeram prosperar grupos criminosos nos cárceres, que agem com desenvoltura e impunidade, comandando ações dentro e fora das prisões. Atestado de absoluta incompetência do poder público para desatar esse nó.
O governo federal não coordena, nem articula. Os governos estaduais se omitem. Os recursos para diminuir a tragédia, já escassos, se perdem em infinitas malhas burocráticas. A questão é: por que esse descalabro continua ?
 
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NINGUÉM LIGA
 
Uma das respostas me parece óbvia. A sociedade não se incomoda em conviver com essa barbárie. Sancionando o tratamento desumano dado aos presos comuns, ela ecoa o Samuca: esses muquiranas estão tendo o que merecem.
Na linha de mestre Sivuca, parece dizer que bandido bom é bandido torturado, com selo de qualidade das autoridades.
Claro que os filhos da nossa aristocracia têm tratamento diferente. Flagrados com a boca na botija, detentores de diploma de nível superior, parlamentares, governadores, prefeitos, líderes religiosos e oficiais das Forças Armadas e do Corpo de Bombeiros têm direito a prisão especial.
 
Todos os bichos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros. Um alto magistrado acaba de dizer, a propósito de um dos condenados no processo do mensalão, que, à falta de vagas para cumprimento das penas em regime semi-aberto, o sentenciado deve cumprir seu castigo em liberdade. Sujeito humanista, esse.
No entanto, por que não lança uma ampla campanha nacional, defendendo igual direito para os milhares de presos que, sem poder pagar os honorários de bons advogados, apodrecem em delegacias ou celas indignas ?
 
Estamos tão habituados com certas cenas que o absurdo passa por natural. Quantas vezes já vimos os chamados presos de alta periculosidade serem transferidos para prisões de segurança máxima ? E de lá para outras, em regiões remotas ?
É uma prova tão robusta de incompetência, que deveria resultar em demissão de todos os responsáveis pela segurança pública no país. Todos. Se não conseguem evitar que gente encarcerada se comunique com o exterior, uma tarefinha elementar, desencadeando ações criminosas, melhor seria que pedissem o boné.
 
Se o ministro Cardozo não está à altura do desafio que ele, corajosa mas insuficientemente, reconheceu, deveria pedir as contas. Se não tem capacidade para comandar uma reação, mais digno seria passar o bastão.
Estamos em área dolorosa, furúnculo numa sociedade hipócrita, preconceituosa e cínica. Que seleciona vítimas, define o que é suportável com base numa espécie de seleção natural.
Faz lembrar um poema do Manuel Bandeira, que nem era dado a voos sociológicos: “Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos./Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade./O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato./O bicho, meu Deus, era um homem“.
 
(Artigo enviado por Mário Assis)
 
25 de novembro de 2012
Jacques Gruman

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