Era sagrado. Bastava sentar na mesa do almoço e uma musiquinha tensa
anunciava no rádio a Patrulha da Cidade. O locutor, Samuel Samuca Corrêa, tinha
o estilo sensacionalista de certa imprensa nos idos dos anos 60.
O script era de
um noticiário policial comentado. Sobraram na memória o tratamento agressivo
contra os “bandidos” (muquiranas era o adjetivo mais suave) e uma delegacia que
simbolizou, no meu imaginário adolescente, um terrível castelo de sombras.
Era a
Invernada de Olaria, apresentada com requinte de sadismo por Samuca como o local
de defesa da sociedade, dos justiçamentos. Podíamos dormir tranquilos, os
policiais sabiam o que tinham que fazer … Ninguém ouvia ileso aquele programa.
Ainda mais entre uma colher de arroz e outra de abóbora.
Violência naquela época tinha outra cara. O Rio convivia com punguistas,
batedores de carteira, “olha o rapa !”, ladrões de galinhas, malandragem-navalha
na Lapa, um ou outro crime passional, aqui e ali escândalos na classe média
(como o assassinato de Cara de Cavalo e a morte de Dana de Teffé, jamais
esclarecida; “Onde estão os ossos de Dana de Teffé ?” virou bordão do Carlos
Heitor Cony).
Garrafas de leite e bisnagas eram colocados de manhã nas portas das casas,
que não tinham grades, e não eram roubados. Andava-se pelas ruas a qualquer
hora, sem a sensação de risco iminente. Nada de milícias ou bandos de
traficantes armados dominando comunidades pobres. Poucos criminosos ganhavam
notoriedade. Cara de Cavalo e Mineirinho foram exceções e, quando caçados,
engordaram as tiragens da imprensa marron.
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CARA DE CAVALO
Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, atuou principalmente no Território Sagrado,
a minha Tijuca. Foi cafetão, pequeno bicheiro, fumava seu baseado. Permaneceria
apenas uma estatística se não tivesse matado, em tiroteio, um detetive famoso:
Milton de Oliveira Le Cocq. Foi jurado de morte.
Mais de 2 mil policiais
participaram da caçada, que terminou na estrada para Búzios. Com 23 anos, Cara
de Cavalo foi executado por 52 tiros, sendo 25 somente na região do estômago.
Entre seus algozes estavam alguns policiais, mais tarde tidos como
sócios-fundadores e ativistas do Esquadrão da Morte. Foi o caso de Guilherme
Godinho Ferreira, Sivuca, que imortalizou o lema “bandido bom é bandido
morto”.
Cara de Cavalo tinha uma aura romântica. Roubava cargas e as distribuía no
morro do Esqueleto, onde morou até os 16 anos. Seja marginal seja herói,
conviveu com os artistas plásticos Lygia Clark e Hélio Oiticica. Foi nele que
Hélio se inspirou para criar uma de suas obras mais famosas: um desenho, onde
aparece o corpo de Cara de Cavalo e se lê: “Seja marginal, seja herói”.
Comparando com o que se vê hoje nas grandes metrópoles brasileiras, minhas
memórias parecem roteiro de filme amador. A criminalidade se estruturou em
pequenos exércitos, com armamento sofisticado, domínio de técnicas de mercado e
penetração no espaço político institucional.
Na outra ponta, o consumidor
financia a algazarra, comprando drogas. “De noite, Ipanema brilha”, dizia o
ex-delegado Hélio Luz. O Estado fica amarrado entre a corrupção do aparato
policial e a brutalidade das instituições carcerárias. Um Judiciário
paquidérmico e obediente a leis que punem os mais fracos completam essa festa
macabra.
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É MELHOR MORRER
Em tal contexto, a declaração do ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, de que
preferia morrer a passar alguns anos numa prisão brasileira, merece um olhar
atento.
Não é comum uma autoridade reconhecer que sua área de atuação anda mal
das pernas. A rotina é a indústria de douração de pílulas. Reconhecido esse
mérito, cabe perguntar por quê a constatação não veio acompanhada de uma
necessária autocrítica.
Afinal, a turma do doutor está no poder há uma década e,
embora a calamidade seja muito mais antiga, ficamos sem saber o que se está
fazendo para retirar o sistema prisional brasileiro do status de masmorra
medieval.
Temos a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de meio milhão
de pessoas presas em celas superlotadas.
Os detentos vivem em péssimas condições
de higiene, são forçados muitas vezes a se revezar para dormir, nas delegacias a
tortura é arroz de festa, praticamente não há programas de ressocialização.
Um
deputado federal identificou unidades prisionais onde cada preso tinha cerca de
70 centímetros quadrados para viver. Latifúndio … para um coelho.
O desespero e a corrupção fizeram prosperar grupos criminosos nos cárceres,
que agem com desenvoltura e impunidade, comandando ações dentro e fora das
prisões. Atestado de absoluta incompetência do poder público para desatar esse
nó.
O governo federal não coordena, nem articula. Os governos estaduais se
omitem. Os recursos para diminuir a tragédia, já escassos, se perdem em
infinitas malhas burocráticas. A questão é: por que esse descalabro continua
?
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NINGUÉM LIGA
Uma das respostas me parece óbvia. A sociedade não se incomoda em conviver
com essa barbárie. Sancionando o tratamento desumano dado aos presos comuns, ela
ecoa o Samuca: esses muquiranas estão tendo o que merecem.
Na linha de mestre
Sivuca, parece dizer que bandido bom é bandido torturado, com selo de qualidade
das autoridades.
Claro que os filhos da nossa aristocracia têm tratamento
diferente. Flagrados com a boca na botija, detentores de diploma de nível
superior, parlamentares, governadores, prefeitos, líderes religiosos e oficiais
das Forças Armadas e do Corpo de Bombeiros têm direito a prisão especial.
Todos os bichos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros. Um alto
magistrado acaba de dizer, a propósito de um dos condenados no processo do
mensalão, que, à falta de vagas para cumprimento das penas em regime
semi-aberto, o sentenciado deve cumprir seu castigo em liberdade. Sujeito
humanista, esse.
No entanto, por que não lança uma ampla campanha nacional,
defendendo igual direito para os milhares de presos que, sem poder pagar os
honorários de bons advogados, apodrecem em delegacias ou celas indignas ?
Estamos tão habituados com certas cenas que o absurdo passa por natural.
Quantas vezes já vimos os chamados presos de alta periculosidade serem
transferidos para prisões de segurança máxima ? E de lá para outras, em regiões
remotas ?
É uma prova tão robusta de incompetência, que deveria resultar em
demissão de todos os responsáveis pela segurança pública no país. Todos. Se não
conseguem evitar que gente encarcerada se comunique com o exterior, uma
tarefinha elementar, desencadeando ações criminosas, melhor seria que pedissem o
boné.
Se o ministro Cardozo não está à altura do desafio que ele, corajosa mas
insuficientemente, reconheceu, deveria pedir as contas. Se não tem capacidade
para comandar uma reação, mais digno seria passar o bastão.
Estamos em área
dolorosa, furúnculo numa sociedade hipócrita, preconceituosa e cínica. Que
seleciona vítimas, define o que é suportável com base numa espécie de seleção
natural.
Faz lembrar um poema do Manuel Bandeira, que nem era dado a voos
sociológicos: “Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/Catando comida entre
os detritos./Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com
voracidade./O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato./O bicho,
meu Deus, era um homem“.
(Artigo enviado por Mário Assis)
25 de novembro de 2012
Jacques Gruman
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