"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 4 de dezembro de 2012

LEGAL MAS IMORAL! DINHEIRO PARA QUEM JÁ TEM

 
O Itaú Cultural, instituto priva­do ligado ao Itaú Unibanco, recebeu permis­são do Ministério da Cultura para captar R$ 29.898.227,71 por meio da Lei Rouanet, que concede incentivos fiscais para empresas que investem em cultura. O valor é um dos maiores da lista de 2012 e chama a atenção pelo fato de envolver o banco mais lucrativo do Brasil.
Ou seja:
uma entidade cultural ligada a um grupo privado com formidável poder financeiro conseguiu ge­neroso aval para obter o dinheiro necessário para seus projetos em 2013, oferecendo a parceiros igualmente poderosos - alguns deles integrantes do próprio Itaú - o direito de abater do Imposto de Renda parte de seu investimento.
Não se trata de condenar o Itaú Cultural nem seus eventuais sócios, porque eles estão agindo estritamente dentro da lei. O pro­blema é, justamente, a lei, cujas óbvias distorções deman­dam urgente reforma. Prometi­da reiteradas vezes pelo governo nos últimos anos, essa reformulação ainda repousa nos es­caninhos do Congresso.
Ainda que tenha falhas, a Lei Rouanet, de 1991, trouxe benefícios evidentes e tornou-se o principal meio de incentivo cultural no Brasil, graças à quase inexistência de mecenato e à esqualidez orçamentária do Mi­nistério da Cultura.
Para medir esse sucesso, basta observar os números:
em 2003, foram movimentados R$ 430 milhões; no ano passado, os recursos atingiram R$ 1,3 bilhão.
Mas voltando às falhas, para come­çar, mais de 70% dos produto­res culturais que se candida­tam ao benefício são deixados de fora do bolo - muitos por evidente limitação artística, mas outros porque são incapa­zes de competir, em condição de igualdade, com organiza­ções culturais fortes e conheci­das do mercado.
Assim, o sistema criado pela Lei Rouanet favorece quem te­ria condições de obter recur­sos de outra maneira. Um caso notável ocorreu em 2006, quando a trupe canadense Cirque du Soleil fez uma tempora­da no Brasil parcialmente fi­nanciada com recursos públi­cos oriundos de renúncia fiscal - a promotora do espetáculo, a mexicana Companhia Interámericana de Entretenimento, foi autorizada pelo Ministério da Cultura a captar R$ 9,4 mi­lhões.
É difícil aceitar como ra­zoável que um grupo artístico mundialmente famoso, que co­bra até R$ 370 por ingresso, te­nha necessidade de se finan­ciar com o dinheiro do contri­buinte brasileiro. Exemplos co­mo esse se multiplicam.
Outra distorção importante da Lei Rouanet é que as empre­sas que aceitam investir nesses projetos culturais, muitas ve­zes financiando fundações pri­vadas, não só abatem integral­mente o valor do Imposto de Renda, como também podem associar sua marca ao evento, sem que o uso de recursos pú­blicos fique suficientemente claro para a platéia.
Trata-se de marketing gratuito, geral­mente com grande visibilida­de, uma vez que boa parte dos projetos aprovados é protago­nizada por artistas renomados e por grandes produções.
Uma proposta de reforma da lei, que tramita na Câmara, pre­vê justamente que projetos considerados ""viáveis" do pon­to de vista comercial, isto é, que possam obter recursos e atrair público sem a necessida­de de incentivos fiscais, sejam excluídos do mecanismo de fo­mento cultural.
A decisão so­bre essa viabilidade seria toma­da pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, entidade do Ministério da Cultura res­ponsável atualmente por apro­var os projetos encaminhados.
É um começo, pois o cerne do problema é a dependência que a Lei Rouanet parece ter criado no universo cultural brasileiro, isto é, só existe investimento em arte se as empresas tiverem abatimento fiscal de 100% e, de preferência, se houver garantia de sucesso de bilheteria.
Espe­cialistas preveem que, caso o be­nefício seja reduzido para 30% ou 50%, como prevê o texto da reforma, haverá queda drástica dos recursos investidos, de­monstrando que o interesse cul­tural é, em muitos casos, limita­do à perspectiva do ganho finan­ceiro.
Logo, os mecanismos de incentivo à cultura, embora vi­gentes há duas décadas, ainda não construíram laços efetivos e duradouros entre a produção artística e os "mecenas".
O Estado de S. Paulo
04 de dezembro de 2012

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