O
escândalo Rosegate — uma mulher que sabe demais
Por Otávio
Cabral, Laura
Diniz e Rodrigo
Rangel, reportagem de capa da edição
de VEJA que
está nas bancas
UMA
MULHER QUE SABE DEMAIS
Quem
é e como agia a ex-secretária Rosemary Noronha, cuja intimidade com Lula lhe
rendeu prestígio e um cargo central no governo, que ela usava para bisbilhotar o
poder, fazer nomeações e ajudar uma quadrilha especializada em vender pareceres
falsos e enriquecer empresários trambiqueiros.
Lula,
como sempre, não sabe de nada.
Quando
passou a faixa presidencial a Dilma Rousseff, em 2011, Luiz Inácio Lula da Silva
apresentou à sua sucessora o nome de quatro pessoas que ele não gostaria de ver
desamparadas: sua secretária pessoal, o chefe da equipe de segurança, o curador
do acervo do Palácio do Planalto (esse a pedido da ex-primeira-dama Marisa
Letícia) e Rosemary Nóvoa de Noronha.
Dos
quatro, Rosemary era, de longe, quem mais tinha intimidade com o ex-presidente.
Ex-bancária e ex-secretária por ele alçada à chefia do gabinete da Presidência
da República em São Paulo em 2003, Rose chamava seu benfeitor de “chefe”, mas
volta e meia fazia questão de deixar escapar um “Luiz Inácio” diante de colegas
e amigos.
Visitas à cabine privativa do
Aerolula
Nas
28 viagens internacionais que fez ao seu lado, como integrante da comitiva
oficial, o acesso irrestrito ao superior incluía visitas à cabine privativa do
Aerolula, de onde – conta um colaborador do governo – ela saía toda prosa. “O
chefe agora vai descansar. Não quer ser incomodado.”
Chamada
de “madame” pelos muitos desafetos que colecionou ao longo dos dois mandatos de
Lula. Rose sempre teve prazer em exibir seu status de protegida do presidente.
Em algum momento, decidiu também ganhar dinheiro com
ele.
Até
onde mostraram as investigações da Polícia Federal e do Ministério Público
Federal, não chegou a fazer fortuna. Rose, 57 anos, foi indiciada na Operação
Porto Seguro, que terminou com a prisão de seis pessoas. Entre elas, estão os
irmãos Paulo e Rubens Vieira, diretores da Agência Nacional de Águas (ANA) e da
Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) respectivamente — já
libertados.
Enriquecendo diretores de agências e empresários
trambiqueiros
A
julgar pelos e-mails e telefonemas interceptados pela polícia, ambos chegaram ao
cargo por influência de Rose, que pediu as nomeações diretamente a Lula. Ao
contrário da ex-secretária — mas com a ajuda dela –, os irmãos não só fizeram
fortuna como contribuíram para deixar mais ricos um número não conhecido de
empresários trambiqueiros.
Por
encomenda deles, concluiu a PF, a dupla subornava funcionários públicos para que
produzissem pareceres técnicos favoráveis aos seus “negócios”. O papel de Rose
era facilitar o acesso dos Vieira a políticos e funcionários de interesse da
quadrilha. Para isso, ela invocava frequentemente os nomes de Lula, o “PR”
(jargão usado no funcionalismo para se referir ao presidente da República), e de
José Dirceu, o “JD”.
Quando
conheceu os dois, nos anos 90, Rose era uma morena de cabelos longos e contornos
voluptuosos que, trabalhando como bancária, passou a frequentar o sindicato da
categoria em São Paulo. Ex-colegas daquele tempo lembram que ela chegou a
participar de plenárias e discussões partidárias, mas nunca se destacou como
dirigente. Fazia mais sucesso nas festas que aconteciam nas quadras do
sindicato, que ficava ao lado da sede nacional do PT, no centro da
cidade.
A
afinidade entre a categoria e o partido contribuiu para que ela logo chamasse a
atenção dos chefes petistas, como o então deputado José Dirceu, de quem se
aproximou. Ele a contratou como secretária logo depois.
Aprofundando a proximidade com
Lula
Meses
mais tarde, Rose começou a circular em torno de Lula, então candidato derrotado
duas vezes em disputas à Presidência. A partir daí, embora oficialmente
continuasse a trabalhar para Dirceu, passou a organizar a agenda de Lula e
cuidar de suas contas. A proximidade entre os dois se aprofundou ao longo dos
anos.
Quando
Lula chegou ao poder, criou um escritório para a Presidência da República em São
Paulo, na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta, e Rose foi
imediatamente encaixada na lista de funcionários.
Foi
ela a responsável pela reforma do escritório e sua decoração, que inclui um
grande mural do petista chutando uma bola com a camisa do Corinthians e, sobre
os sofás, almofadas revestidas com reproduções de fotos do ex-presidente. Logo
após a reforma. Rose foi promovida a chefe do escritório, com salário de 11.000
reais.
Acompanhando Lula em viagens em que Marisa não
ia
A
partir daí, a ex-secretária ascendeu a um novo patamar. Nas viagens
internacionais a que Marisa não ia (contam amigos que a ex-primeira-dama não lhe
dirige a palavra e a ignora em eventos públicos), era Rose que acompanhava
Lula.
Embora
tenha feito 28 viagens com o ex-presidente, seu nome apareceu no Diário
Oficial – como é de praxe
entre os funcionários de sua categoria DAS – apenas em uma das primeiras, para
Havana em 2003. Foi a única da comitiva a se hospedar na mesma ala de Lula. Nas
demais vezes, seu nome foi incluído em uma lista de funcionários de segundo
escalão que é enviada ao Itamaraty para homologação coletiva – e anônima –
no Diário
Oficial.
Foi
o auge do prestígio de Rose, e ela se esbaldou nele. “Imagine uma pessoa que passou a vida pendurada no cheque
especial e. de repente, recebe uma herança de um tio. Essa é a
Rose”,
descreve um antigo amigo. Frequentemente, convidava-se para almoços com
diretores do Banco do Brasil – o gabinete que ela chefiava ficava no mesmo
prédio do banco.
Almoços de 500 reais
Nessas
ocasiões, sempre sugeria restaurantes como o chique, e caro, Fasano. “Pedia
camarão ou lagosta. E um vinho “caro”, como gostava de falar. Os almoços nunca
saíam por menos de 500 reais”, diz um dirigente. Sabia usar informações que
obtinha no escritório, onde também despachavam os ministros em viagem a São
Paulo.
Era
comum vê-la servindo pessoalmente café e água nas reuniões com a presença de
pessoas importantes. Também gostava de comentar sobre quem entrava e saía do
prédio, movimentação que acompanhava de sua sala, equipada para monitorar o
circuito interno de TV da segurança.
Brigando com gente
importante
A
sensação de poder foi fazendo com que ela, tida como geniosa, comprasse brigas
com gente cada vez mais importante. No início do segundo mandato de Lula,
Walfrido Mares Guia, então ministro das Relações Institucionais, comandou uma
reunião com empresários no escritório de São Paulo.
No
final, pediu que a imprensa entrasse. Rose tentou impedir: “O chefe não gosta de
jornalistas por aqui”. Walfrido estrilou: “O chefe hoje aqui sou eu. Podem
entrar os jornalistas”. Os dois nunca mais se falaram.
Outro
com quem ela brigou foi o governador da Bahia, Jaques Wagner, que patrocinou a
indicação de um técnico sem filiação ao PT para a diretoria do Banco do Brasil,
quando Rose defendia um petista. Wagner levou a melhor.
Meses
depois, ao chegar ao escritório de São Paulo para uma reunião, ele foi
interpelado por Rose: “Como você pode jogar contra o PT? Isso é uma traição ao
partido”. Wagner colocou-a em seu lugar: “A senhora me respeite, eu sou um
governador de Estado”.
Rose continuou próxima de Lula depois que ele deixou o
poder. É o que mostram conversas que ela teve com Paulo Vieira sobre a saúde do
ex-presidente, que se recuperava do tratamento de câncer na laringe.
” É, eu já falei para ele. Ele tem de parar
de se expor em público enquanto aquela perna dele não ficar boa (…) Ele levou um
tombo domingo dentro de casa (…) Não sei o que aquela Clara Ant fica fazendo,
aquele Paulo Okamotto, que deixam o cara… Ele tá parecendo um velho
caquético.”
Clara
Ant põe ordem nas atividades profissionais de Lula e Okamotto é seu braço
financeiro. Ambos se dedicam em tempo integral a Lula.
Como se utilizava do cargo em seu benefício e de
outros
A
queda de Rose começou a se desenhar em fevereiro do ano passado, quando Cyonil
da Cunha Borges de Faria, à época analista do Tribunal de Contas da União,
procurou a PF e o Ministério Publico Federal para dizer que havia recebido de
Paulo Vieira uma oferta de 300.000 reais para alterar um parecer em benefício de
uma empresa de Santos.
A
juíza Adriana Zanetti determinou a quebra dos sigilos de telefone e de e-mails
de Paulo e seu irmão – e foi aí que Rose acabou flagrada. Embora não tenha tido
o telefone nem a correspondência interceptados, o registro das conversas que
manteve com os Vieira nos últimos anos mostrou que usava o cargo de chefe da
Presidência em São Paulo para cuidar com desvelo de assuntos de seu próprio
interesse.
Em
troca dos “favores” que prestava à quadrilha dos Vieira, a ex- secretária fazia
toda sorte de exigência: ingressos para camarotes no Carnaval, cruzeiros no
litoral paulista, pagamento de uma cirurgia no ouvido e de parcelas de um
apartamento financiado.
A
miudeza dos pedidos sugere que Rosemary Noronha era uma “petequeira”, como são
chamados os corruptos que operam na arraia-miúda. A protegida de Lula no,
entanto, mexia com interesses graúdos. Além de indicar ocupantes para cargos de
direção em agências reguladoras de cujas decisões dependem negócios bilionários,
ela intermediava financiamentos em bancos públicos e facilitava reuniões de
empresários com petistas de quatro estrelas para tratar de contratos vultosos no
governo.
Intermediação
para empresas
É
o caso de um encontro que marcou com Ricardo Flores, então diretor de crédito do
Banco do Brasil, para que representantes de uma empresa com atuação no setor
portuário pudessem pedir a ampliação do valor de um crédito junto à instituição.
A empresa já possuía uma linha de crédito de 85 milhões de reais e pretendia
obter mais 48 milhões.
Em
outra oportunidade, ainda no governo Lula, ela agendou com um alto dirigente da
Secretaria de Comunicação da Presidência da República um encontro para que
empresários pudessem propor a locação, para o governo, de placas de publicidade
nos portos de Santos e do Rio de Janeiro.
As
portas que Rose conseguia abrir graças à intimidade com Lula também serviram
para arrumar negócios para sua própria família. A empresa New Talent que a
própria Rose ajudou a criar e que foi registrada no nome do genro dela,
conseguiu sem licitação um contrato de 1,2 milhão de reais para “prestação de
serviços” a uma subsidiária do Banco do Brasil.
Os
Vieira tinham consciência da importância de Rose para os negócios, mas, como em
toda quadrilha, tentavam reduzir o naco dela na partilha. “Não fale muitas
informações sobre os processos da Bahia com a Rose, pois temos que abafar a
‘pedição’ de dinheiro, pois a amiga é uma máquina de gastar”, escreveu Paulo
para Rubens ainda em 2009.
Lula, de novo, não se
explica
Mesmo
quando recebeu a visita da PF em sua casa, na sexta-feira da semana retrasada.
Rose manteve a empáfia. Aos policiais, disse: “Vou ligar para o chefe de vocês”.
Telefonou para o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que estava com o
celular desligado. Procurou, então, José Dirceu, que disse nada poder fazer para
ajudá-la.
Lula
estava num voo, vindo da Índia. Até agora, o padrinho de duas décadas de
Rosemary Noronha, indiciada pela PF por corrupção passiva, tráfico de influência
e falsidade ideológica, não veio a público comentar o episódio. Pelo contrário,
em discurso feito na semana passada, pareceu desdenhar dele ao dizer que a
imprensa “só dá más notícias e esconde as boas”.
Embora
o desbaratamento de uma quadrilha que usava de suas prerrogativas públicas para
auferir vantagens não possa ser considerado uma má notícia, é compreensível que
a revelação do episódio desagrade a Lula. Ao contrário do que ocorre em outros
países, no Brasil, a vida privada dos políticos nunca foi considerada assunto de
interesse público.
A
forma como o ex-presidente distribui o seu afeto, portanto, é uma questão que só
diz respeito a ele e seus familiares. A partir do momento, porém, que as
consequências dessas escolhas transbordam para a esfera pública, ele não tem
outra opção a não ser se explicar, talvez a única modalidade de comunicação na
qual Lula não seja um mestre.
O último a saber da operação: o chefe da PF – o
ministro da Justiça
A
presidente Dilma Rousseff soube da Operação Porto Seguro pouco depois das 8 da
manhã de sexta-feira por um telefonema de Luís Inácio Adams, advogado-geral da
União. Adams havia sido acordado momentos antes por seu número 2, José Weber
Holanda, um dos investigados. Dilma pediu para localizar o ministro da Justiça,
José Eduardo Cardozo, mas ele não atendia aos telefonemas. Já irritada, a
presidente só conseguiu falar com o ministro duas horas depois, quando soube que
ele não tinha conhecimento de nada.
A
operação pegou Cardozo e o chefe da Polícia Federal, Leandro Daiello, de
surpresa Já que foi feita pela superintendência da Polícia Federal de São Paulo,
sem comunicação a Brasília. Três dias depois, Cardozo não conseguia dizer à
chefe com segurança se havia ou não escutas telefônicas envolvendo Rosemary e o
ex-presidente Lula, como chegou a ser noticiado.
Só
na manhã de terça-feira o ministro confirmou que não houve quebra de sigilo nas
comunicações de Rose. Dilma fez duras criticas à atuação do ministro. Chegou a
pensar em demiti-lo – desistiu por temer passara imagem de que não aceita que a
PF investigue seu governo.
As superintendências não precisam avisar Brasília em
grandes operações
Por
mais incômoda que possa ter sido para Lula e para setores do governo, a operação
foi conduzida dentro das normas da PF. Uma mudança na estrutura da autarquia
feita na gestão de Tarso Genro (2007- 2010) descentralizou as grandes operações.
As superintendências regionais ganharam competência para promover ações sem
avisar Brasília.
Sob
Márcio Thomaz Bastos (2003- 2007), os trabalhos eram centralizados. O então
diretor do órgão, Paulo Lacerda, tinha um responsável pela inteligência e um
pela atuação. As ações deviam ser autorizadas por um dos dois e sempre saíam de
Brasília – o governo era avisado na véspera. De início, a descentralização foi
considerada positiva.
Mas
ela veio acompanhada de uma restrição orçamentária que praticamente engessou a
PF
No
governo, a Operação Porto Seguro foi interpretada como um “recado” da PF
paulista, que não gosta do gaúcho Daiello (considerado um interventor e
criticado pela rigidez com que comandou a superintendência paulista entre 2008 e
2010) nem de Cardozo (que deixou a segurança da Olimpíada e da Copa para as
Forças Armadas). Questionado por emissários do governo, o superintendente da PF
em São Paulo, Roberto Troncon, negou que a operação tenha tido motivação
política.
06 de dezembro de 2012
Ricardo Setti
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