Luiz Fux é o centro do mundo de Luiz Fux. Na momentosa entrevista que concedeu a Mônica Bergamo (“Folha de S.Paulo”, 2/12), o ministro do STF revela suas peripécias rumo à meta obsessiva de ocupar uma das 11 cadeiras da mais alta Corte.
Fux procurou fidalgos da nossa pobre república, como Delfim Netto, um signatário do AI-5, Antonio Palocci, o ministro que violou o sigilo bancário de uma testemunha, e João Pedro Stédile, líder de um movimento social pendurado no cabide do poder, além de “empresários” que prezam tanto o acesso aos palácios quanto o conforto do anonimato.
O juiz não diz, apenas, que fez política, como sempre fazem os candidatos ao Supremo. Confessa — é essa a palavra! — que procurou padrinhos entre os poderosos réus do caso mais importante que julgaria, caso sua empreitada fosse exitosa.
José Dirceu e João Paulo Cunha apadrinharam a candidatura de Fux — o magistrado que, no ano seguinte, ajudaria a condená-los a penas de prisão em regime fechado.
Não é uma confissão espontânea, longe disso. “Querem me sacanear”, disse Fux a uma repórter na cerimônia de posse de Joaquim Barbosa. Dias depois, procurou o jornal para conceder a entrevista.
A iniciativa é uma reação à ofensiva da quadrilha incrustada no PT que, desde a proclamação de seus votos sobre o núcleo político do mensalão, começou a vazar uma mistura de informações e lendas sobre a heterodoxa campanha do juiz pela indicação presidencial.
“O pau vai cantar!”, avisou Fux à repórter, ajustando sua linguagem aos costumes do meio político no qual habitualmente circula.
No mundo de Fux, jornais devem ser instrumentos a serviço dos interesses de Fux. Ele sabe escolher. A imprensa independente serve-lhe, hoje, para apresentar sua versão das conversas perigosas que manteve com os réus.
A imprensa chapa-branca serviu-lhe, anteontem, para cristalizar relações com os padrinhos, que já eram réus. O jornal “Brasil Econômico” pertence à Ejesa/Ongoing, que tem Evanise Santos, namorada de José Dirceu, como diretora de marketing institucional. Em 2010, o juiz em campanha combinou com Evanise uma entrevista “de cinco páginas” à publicação.
Comenta-se no mercado de mídia que a entrada do grupo português Ongoing no Brasil teria sido intermediada por Dirceu e obedeceria à estratégia de montagem de uma rede de veículos de comunicação alinhados ao governo.
O enigma de Capitu pertence ao domínio da grande arte; o de Fux, ao da baixa política. Mas, assim como nunca saberemos se Capitu traiu Bentinho em “Dom Casmurro”, não se esclarecerá jamais se o magistrado traiu os padrinhos quando proferiu suas sentenças no caso do mensalão.
Naturalmente, Fux nega ter discutido o processo nas conversas de apadrinhamento, mas admite a hipótese do intercâmbio de frases de duplo sentido num encontro com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.
Sobre o fato incontroverso de que se reuniu com o réu José Dirceu para solicitar apoio, suas explicações oscilam, contraditoriamente, entre os excessos da implausibilidade (”naquele momento, eu não me lembrei” da situação jurídica do interlocutor) e os da candura (“a pessoa, até ser julgada, é inocente”).
Durante o julgamento do mensalão, o Planalto e a cúpula petista fizeram chegar à imprensa os sinais de sua fúria com os votos de ministros que, na tóxica visão do governo, seriam devedores do favor da indicação.
No caso de Joaquim Barbosa, insinuou-se que haveria favor associado à cor da pele, uma sugestão asquerosa que emana da natureza das políticas de preferências raciais consagradas pelo mesmo Barbosa.
No caso de Fux, que o juiz-candidato assumira um compromisso informal de “matar no peito” o espectro da condenação do núcleo político da quadrilha. Agora, pela boca de Cândido Vacarezza, ex-líder do governo na Câmara, interlocutor do juiz e de João Paulo numa “reunião que me parecia fechada”, a insinuação contra Fux roça a fronteira da acusação.
Combinam-se, na operação difamatória, o impulso cego da vingança e um cálculo político racional. A quadrilha e sua esfera de influência pretendem manchar a reputação do juiz, mas também contestar a legitimidade do Supremo na arena da opinião pública.
Os condenados e seus porta-bandeiras estão seguros de que o vício é idêntico à virtude. Por isso, não se preocupam com os estilhaços lógicos desprendidos por seu bombardeio: segundo a versão que semeiam, o governo Dilma Rousseff trocou a indicação de Fux pela promessa de um voto favorável a réus do alto círculo do lulopetismo, algo que configuraria crime de responsabilidade.
No Antropologia, Immanuel Kant define a virtude como “a força moral da determinação de um ser humano no cumprimento de seu dever”, e o vício como transgressão dos princípios da lei moral.
A trajetória de Fux, das reuniões com os padrinhos que eram réus até as sessões de julgamento do mensalão, esclarece os dois conceitos kantianos. Na campanha promíscua de candidato ao Supremo, o juiz pode até não ter violado nenhuma lei, mas transgrediu a “lei moral” que manda separar os interesses privados do poder associado a uma posição pública ocupada ou almejada.
Nos votos sobre o núcleo político da quadrilha, os melhores proferidos no STF, o magistrado não se limitou a aplicar a lei com competência e brilhantismo: ele revelou, junto com a maioria de seus pares, a “força moral” incomum de cumprir o dever fundamental dos juízes, que é o de submeter os poderosos à ordem jurídica geral.
A ofensiva difamatória da quadrilha é uma nova, repetitiva, descarga do lixo produzido por figuras deploráveis que, sem corar, exibem-se como arautos de sacrossantas causas políticas e sociais.
A reação de Fux tem suas utilidades. Serve como vacina contra a crença ingênua nos discursos líricos do próprio Fux e como exposição involuntária do arcaísmo do Brasil oficial, que ainda não sabe o significado de “coisa pública”.
06 de dezembro de 2012
Demétrio Magnoli é sociólogo
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