"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 10 de junho de 2012

CHEGOU A HORA DE LER "ULISSES"? TALVEZ, MAS SEM ESTRESSE

“Na literatura, como no amor, nós nos espantamos com as escolhas que os outros fazem.” ANDRÉ MAUROIS
Se você for um daqueles que contemplam a obra-prima de James Joyce a certa distância, com um misto de fascínio e pavor, sem jamais se animar a encarar suas muitas centenas de páginas, saiba que seu nome é legião.

Talvez você tenha passado batido pela tradução pioneira de Antonio Houaiss (Civilização Brasileira, 1966) porque ela tem fama de erudita demais – “será que ele usa todas as palavras do dicionário dele?” – e um estranho “Sims” como palavra final, quando o original é um simples Yes. (Millôr Fernandes, irreverente como o próprio Joyce, sugeriu a tradução “É”, como num grito de orgasmo.)

Pode ser ainda que a versão mais coloquial da professora Bernardina Pinheiro (Objetiva, 2005), que procurou tornar o “Ulisses” menos intimidador, mais joycianamente brincalhão, e ainda restituiu o “Sim” de Molly Bloom à sua singularidade, também não tenha sido suficiente para levá-lo a encarar o tijolo.

Nesse caso, quem sabe você está se sentindo finalmente tentado a dar uma chance a Leopold Bloom na recém-lançada tradução de Caetano Galindo (Penguin/Companhia), que consumiu dez anos de trabalho, contou com a “coordenação editorial” de um tradutor experiente como Paulo Henriques Britto e vem embalada numa capa elegante e cabeçuda como o próprio romance – embora também, como a versão Houaiss, tenha encontrado sua letrinha da discórdia na decisão de manter um ípsilon anglófilo no coração do título: “Ulysses”.

Será que chegou a hora de ler “Ulisses”, afinal?

Por que não? Se as inevitáveis comparações entre as três traduções, esse surpreendente luxo brasileiro, já ocupam hoje um time de eruditos – e continuarão a ocupar por muito tempo – o certo é que a ideia de “tradução definitiva” para uma obra tão apinhada de jogos de linguagem e referências subterrâneas como “Ulisses” é ridícula. Em vez de ficar esperando pela corporificação dessa miragem, começar imediatamente é uma decisão tão boa hoje quanto teria sido em 1966.

O único conselho que me parece importante é o seguinte: não leve “Ulisses” tão a sério, é só um livro. Grande, influente, inovador, ambicioso – certo. Elogiado por ninguém menos que Jorge Luis Borges com palavras fortes: “Mais que a obra de um único homem, o ‘Ulisses’ parece o trabalho de muitas gerações” – OK.
Mais até do que isso, é provavelmente o único livro na história da literatura que conseguiu conciliar o máximo de vanguardismo com o máximo de “popularidade” – entre aspas porque se trata de uma popularidade erudita, com perdão do paradoxo, mas de todo modo resistente à passagem do tempo e com traços inequívocos de beatlemania, cosplay e outros componentes de histeria.

Tudo isso é verdade, mas é sempre bom ter em mente um alerta sábio de Raduan Nassar: “Reverenciam-se mitos de modo obsceno. Tem gente que fala em Joyce ou em Pound e parece que está dando cria”. Para contrabalançar os possíveis efeitos emburrecedores dessa mitologia, ajuda saber que um compatriota de Joyce, o escritor Roddy Doyle, declarou há poucos anos que o “Ulisses” era superestimado e “teria melhorado com uma boa edição”. Não se trata de dar razão ao autor de “The Commitments”, apenas de aproveitar o efeito benéfico de sua coragem herética.

Esse efeito benéfico é o de ler “Ulisses” em busca de prazer, não de charadas, enigmas, paralelos com Homero, piscadelas variadas. É claro que, com muita frequência, o prazer que houver virá de charadas e piscadelas, o que é ótimo. Acontece que inverter as prioridades, deixando de ser um leitor de carne e osso para ser um exegeta de pincenê, é para a maioria das pessoas a forma mais garantida de estragar a leitura e abandoná-la antes da página 20.

Não por acaso, é também uma traição ao espírito de Joyce, um sujeito dotado de altíssimos teores de molecagem que, diante do reverente culto acadêmico que inaugurou, talvez reagisse com um ataque de flatulência e meia dúzia de palavrões.

O homem não era flor que se cheirasse. “Enfiei (no ‘Ulisses’) tantos enigmas e charadas”, disse, “que ele vai manter os professores ocupados por séculos, discutindo o que foi que eu quis dizer, e esta é a única forma de garantir a imortalidade.”

É um dos traços de sua genialidade que essa declaração seja ao mesmo tempo uma verdade e uma gozação, duas faces de uma moeda que nunca para de girar. Vladimir Nabokov, que percebia o risco de enxergar apenas o lado sério da questão, atacou violentamente o autor do mais famoso “guia de leitura” do romance, Stuart Gilbert, “um chato”, afirmando que “seria uma completa perda de tempo procurar paralelos próximos (com a ‘Odisséia’) em cada personagem e cada cena do livro”.

Pode ser que o conselho não sirva para todos. Foi o que me serviu. Quando, após anos de relutância, finalmente li “Ulisses” (no original), fiquei surpreso de descobrir que o livro é – nem sempre e não só, mas certamente também – apaixonante, sensual, engraçado, cheio de efeitos sonoros, cromáticos e olfativos de um certo dia em Dublin, tudo plasmado em frases de musicalidade irresistível.
Quanto a “entender” tudo, esmiuçar tudo, dissecar a borboleta, deixo para aqueles “professores ocupados por séculos”. Com todo o respeito, tenho mais o que fazer.

10 de junho de 2012
Sérgio Rodrigues

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