“Na literatura, como no amor, nós nos espantamos com as escolhas que os outros fazem.” ANDRÉ MAUROIS
Se você for um daqueles que contemplam a obra-prima de James Joyce a certa distância, com um misto de fascínio e pavor, sem jamais se animar a encarar suas muitas centenas de páginas, saiba que seu nome é legião.
Talvez você tenha passado batido pela tradução pioneira de Antonio Houaiss (Civilização Brasileira, 1966) porque ela tem fama de erudita demais – “será que ele usa todas as palavras do dicionário dele?” – e um estranho “Sims” como palavra final, quando o original é um simples Yes. (Millôr Fernandes, irreverente como o próprio Joyce, sugeriu a tradução “É”, como num grito de orgasmo.)
Pode ser ainda que a versão mais coloquial da professora Bernardina Pinheiro (Objetiva, 2005), que procurou tornar o “Ulisses” menos intimidador, mais joycianamente brincalhão, e ainda restituiu o “Sim” de Molly Bloom à sua singularidade, também não tenha sido suficiente para levá-lo a encarar o tijolo.
Nesse caso, quem sabe você está se sentindo finalmente tentado a dar uma chance a Leopold Bloom na recém-lançada tradução de Caetano Galindo (Penguin/Companhia), que consumiu dez anos de trabalho, contou com a “coordenação editorial” de um tradutor experiente como Paulo Henriques Britto e vem embalada numa capa elegante e cabeçuda como o próprio romance – embora também, como a versão Houaiss, tenha encontrado sua letrinha da discórdia na decisão de manter um ípsilon anglófilo no coração do título: “Ulysses”.
Será que chegou a hora de ler “Ulisses”, afinal?
Por que não? Se as inevitáveis comparações entre as três traduções, esse surpreendente luxo brasileiro, já ocupam hoje um time de eruditos – e continuarão a ocupar por muito tempo – o certo é que a ideia de “tradução definitiva” para uma obra tão apinhada de jogos de linguagem e referências subterrâneas como “Ulisses” é ridícula. Em vez de ficar esperando pela corporificação dessa miragem, começar imediatamente é uma decisão tão boa hoje quanto teria sido em 1966.
O único conselho que me parece importante é o seguinte: não leve “Ulisses” tão a sério, é só um livro. Grande, influente, inovador, ambicioso – certo. Elogiado por ninguém menos que Jorge Luis Borges com palavras fortes: “Mais que a obra de um único homem, o ‘Ulisses’ parece o trabalho de muitas gerações” – OK.
Mais até do que isso, é provavelmente o único livro na história da literatura que conseguiu conciliar o máximo de vanguardismo com o máximo de “popularidade” – entre aspas porque se trata de uma popularidade erudita, com perdão do paradoxo, mas de todo modo resistente à passagem do tempo e com traços inequívocos de beatlemania, cosplay e outros componentes de histeria.
Tudo isso é verdade, mas é sempre bom ter em mente um alerta sábio de Raduan Nassar: “Reverenciam-se mitos de modo obsceno. Tem gente que fala em Joyce ou em Pound e parece que está dando cria”. Para contrabalançar os possíveis efeitos emburrecedores dessa mitologia, ajuda saber que um compatriota de Joyce, o escritor Roddy Doyle, declarou há poucos anos que o “Ulisses” era superestimado e “teria melhorado com uma boa edição”. Não se trata de dar razão ao autor de “The Commitments”, apenas de aproveitar o efeito benéfico de sua coragem herética.
Esse efeito benéfico é o de ler “Ulisses” em busca de prazer, não de charadas, enigmas, paralelos com Homero, piscadelas variadas. É claro que, com muita frequência, o prazer que houver virá de charadas e piscadelas, o que é ótimo. Acontece que inverter as prioridades, deixando de ser um leitor de carne e osso para ser um exegeta de pincenê, é para a maioria das pessoas a forma mais garantida de estragar a leitura e abandoná-la antes da página 20.
Não por acaso, é também uma traição ao espírito de Joyce, um sujeito dotado de altíssimos teores de molecagem que, diante do reverente culto acadêmico que inaugurou, talvez reagisse com um ataque de flatulência e meia dúzia de palavrões.
O homem não era flor que se cheirasse. “Enfiei (no ‘Ulisses’) tantos enigmas e charadas”, disse, “que ele vai manter os professores ocupados por séculos, discutindo o que foi que eu quis dizer, e esta é a única forma de garantir a imortalidade.”
É um dos traços de sua genialidade que essa declaração seja ao mesmo tempo uma verdade e uma gozação, duas faces de uma moeda que nunca para de girar. Vladimir Nabokov, que percebia o risco de enxergar apenas o lado sério da questão, atacou violentamente o autor do mais famoso “guia de leitura” do romance, Stuart Gilbert, “um chato”, afirmando que “seria uma completa perda de tempo procurar paralelos próximos (com a ‘Odisséia’) em cada personagem e cada cena do livro”.
Pode ser que o conselho não sirva para todos. Foi o que me serviu. Quando, após anos de relutância, finalmente li “Ulisses” (no original), fiquei surpreso de descobrir que o livro é – nem sempre e não só, mas certamente também – apaixonante, sensual, engraçado, cheio de efeitos sonoros, cromáticos e olfativos de um certo dia em Dublin, tudo plasmado em frases de musicalidade irresistível.
Quanto a “entender” tudo, esmiuçar tudo, dissecar a borboleta, deixo para aqueles “professores ocupados por séculos”. Com todo o respeito, tenho mais o que fazer.
10 de junho de 2012
Sérgio Rodrigues
Talvez você tenha passado batido pela tradução pioneira de Antonio Houaiss (Civilização Brasileira, 1966) porque ela tem fama de erudita demais – “será que ele usa todas as palavras do dicionário dele?” – e um estranho “Sims” como palavra final, quando o original é um simples Yes. (Millôr Fernandes, irreverente como o próprio Joyce, sugeriu a tradução “É”, como num grito de orgasmo.)
Pode ser ainda que a versão mais coloquial da professora Bernardina Pinheiro (Objetiva, 2005), que procurou tornar o “Ulisses” menos intimidador, mais joycianamente brincalhão, e ainda restituiu o “Sim” de Molly Bloom à sua singularidade, também não tenha sido suficiente para levá-lo a encarar o tijolo.
Nesse caso, quem sabe você está se sentindo finalmente tentado a dar uma chance a Leopold Bloom na recém-lançada tradução de Caetano Galindo (Penguin/Companhia), que consumiu dez anos de trabalho, contou com a “coordenação editorial” de um tradutor experiente como Paulo Henriques Britto e vem embalada numa capa elegante e cabeçuda como o próprio romance – embora também, como a versão Houaiss, tenha encontrado sua letrinha da discórdia na decisão de manter um ípsilon anglófilo no coração do título: “Ulysses”.
Será que chegou a hora de ler “Ulisses”, afinal?
Por que não? Se as inevitáveis comparações entre as três traduções, esse surpreendente luxo brasileiro, já ocupam hoje um time de eruditos – e continuarão a ocupar por muito tempo – o certo é que a ideia de “tradução definitiva” para uma obra tão apinhada de jogos de linguagem e referências subterrâneas como “Ulisses” é ridícula. Em vez de ficar esperando pela corporificação dessa miragem, começar imediatamente é uma decisão tão boa hoje quanto teria sido em 1966.
O único conselho que me parece importante é o seguinte: não leve “Ulisses” tão a sério, é só um livro. Grande, influente, inovador, ambicioso – certo. Elogiado por ninguém menos que Jorge Luis Borges com palavras fortes: “Mais que a obra de um único homem, o ‘Ulisses’ parece o trabalho de muitas gerações” – OK.
Mais até do que isso, é provavelmente o único livro na história da literatura que conseguiu conciliar o máximo de vanguardismo com o máximo de “popularidade” – entre aspas porque se trata de uma popularidade erudita, com perdão do paradoxo, mas de todo modo resistente à passagem do tempo e com traços inequívocos de beatlemania, cosplay e outros componentes de histeria.
Tudo isso é verdade, mas é sempre bom ter em mente um alerta sábio de Raduan Nassar: “Reverenciam-se mitos de modo obsceno. Tem gente que fala em Joyce ou em Pound e parece que está dando cria”. Para contrabalançar os possíveis efeitos emburrecedores dessa mitologia, ajuda saber que um compatriota de Joyce, o escritor Roddy Doyle, declarou há poucos anos que o “Ulisses” era superestimado e “teria melhorado com uma boa edição”. Não se trata de dar razão ao autor de “The Commitments”, apenas de aproveitar o efeito benéfico de sua coragem herética.
Esse efeito benéfico é o de ler “Ulisses” em busca de prazer, não de charadas, enigmas, paralelos com Homero, piscadelas variadas. É claro que, com muita frequência, o prazer que houver virá de charadas e piscadelas, o que é ótimo. Acontece que inverter as prioridades, deixando de ser um leitor de carne e osso para ser um exegeta de pincenê, é para a maioria das pessoas a forma mais garantida de estragar a leitura e abandoná-la antes da página 20.
Não por acaso, é também uma traição ao espírito de Joyce, um sujeito dotado de altíssimos teores de molecagem que, diante do reverente culto acadêmico que inaugurou, talvez reagisse com um ataque de flatulência e meia dúzia de palavrões.
O homem não era flor que se cheirasse. “Enfiei (no ‘Ulisses’) tantos enigmas e charadas”, disse, “que ele vai manter os professores ocupados por séculos, discutindo o que foi que eu quis dizer, e esta é a única forma de garantir a imortalidade.”
É um dos traços de sua genialidade que essa declaração seja ao mesmo tempo uma verdade e uma gozação, duas faces de uma moeda que nunca para de girar. Vladimir Nabokov, que percebia o risco de enxergar apenas o lado sério da questão, atacou violentamente o autor do mais famoso “guia de leitura” do romance, Stuart Gilbert, “um chato”, afirmando que “seria uma completa perda de tempo procurar paralelos próximos (com a ‘Odisséia’) em cada personagem e cada cena do livro”.
Pode ser que o conselho não sirva para todos. Foi o que me serviu. Quando, após anos de relutância, finalmente li “Ulisses” (no original), fiquei surpreso de descobrir que o livro é – nem sempre e não só, mas certamente também – apaixonante, sensual, engraçado, cheio de efeitos sonoros, cromáticos e olfativos de um certo dia em Dublin, tudo plasmado em frases de musicalidade irresistível.
Quanto a “entender” tudo, esmiuçar tudo, dissecar a borboleta, deixo para aqueles “professores ocupados por séculos”. Com todo o respeito, tenho mais o que fazer.
10 de junho de 2012
Sérgio Rodrigues
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