O artigo no Estado deste domingo de Mario Vargas Llosa sobre a renuncia do papa Bento XVI (aqui), destaca-se da enxurrada de besteiras e grosserias que invadiu a imprensa desde que ele anunciou sua decisão pelo equilíbrio, pela acuidade e pelo senso de proporção histórica.
Nada como um grande homem para avaliar outro grande homem e para identificar e tratar dos grandes turning points da História…
Um aspecto fortuito mas significativo escapou à análise de Vargas Llosa mas certamente passou pela sua cabeça, discípulo que foi do autor que me referiu para esse pormenor nem tão pequeno assim.
Octavio Paz, que foi um dos homens que melhor definiu as contradições da alma latina, dizia que “nós, católicos, sentimo-nos confortáveis demais dentro da mentira”, e que esta é a brecha através da qual nos mantém agarrados pelo pescoço os caudilhos populistas que nos irmanam na desgraça institucional e política.
De fato nas culturas predominantemente católicas, o padre molestador de menininhos é figura central do anedotário popular desde séculos antes de Bocage torná-lo proverbial.
Foi a igreja católica americana, um enclave dentro de um ambiente de predominância da ética protestante onde se espera que as palavras correspondam aos fatos e que as leis sejam obedecidas, que rompeu o silêncio milenar em torno dessa chaga em cuja raiz está o desvio do celibato, e exigiu punições para a prática nefanda.
O papa alemão reagiu, tentou impo-las e foi derrotado, nas palavras de Llosa, no atoleiro “das lutas ferozes, das intrigas e dos obscuros enredos de facções e dignitários da Cúria Romana que o poder (e não só ele) tornou inimigos”, o que comprovou que “os esforços das autoridades da Igreja ainda são orientados para proteger ou dissimular os crimes de pedofilia que são cometidos (e não só a estes), mais que a denunciá-los ou puni-los”.
Não é preciso ir muito longe nem muito baixo, portanto, para entender como a longa convivência pacífica com a impunidade, que nós brasileiros conhecemos tão bem, corrompe qualquer sistema ao criar laços de solidariedade que preparam o caminho para outros crimes (como os do Banco do Vaticano), até que se transforma num imperativo de sobrevivência para grupos grandes o suficiente para engendrar partidos inteiros (ou redes de partidos) dedicados a estendê-la para todo o sempre…
Como pano de fundo para que Bento XVI resgatasse da Idade Média a figura da renuncia papal, está esta nossa época “em que as ideias e as razões importam muito menos que as imagens e os gestos”, fato que tornou Joseph Ratzinger “um anacronismo dentro de um anacronismo, pois pertencia ao grupo mais seleto de uma espécie em extinção: o dos intelectuais”, entre cujas características definidoras está a de “em vez de cobiçar, depreciar o poder absoluto” de que voluntariamente ele abriu mão.
Sobre a substância histórica envolvida no episódio, as conclusões de Vargas Llosa que, no mesmo artigo, declara-se um “não crente”, aproximam-se, curiosamente, das de Thomas Jefferson, outro não crente cuja biografia escrita por Jon Meachan acabo de ler (aqui). No fim da vida, depois de escrever alguns dos documentos fundadores da democracia moderna, o terceiro presidente dos Estados Unidos dedicou-se a escrever sobre a vida de Jesus porque reconhecia nela, postos de lado os desvios da Igreja, o mais belo e consistente sistema ético e moral jamais inventado pelo homem, base fundamental da civilização.
Vargas Llosa sintetizou bem esse aspecto ao perscrutar e entender o dilema de Joseph Ratzinger de aferrar-se ao dogma “não por razões tolas ou superficiais”, mas sim correndo um risco calculado por medo de permitir que a igreja se pulverizasse e dissolvesse “num arquipélago de seitas em luta entre si, como as igrejas evangélicas”, pondo a perder o que ela tem de mais importante.
“Ele não só representou a tradição conservadora da Igreja como também sua melhor herança: a da ilustre e revolucionária cultura clássica e renascentista que, não podemos esquecer, a Igreja preservou e difundiu, por meio de seus conventos, bibliotecas e seminários. A cultura que impregnou o mundo com ideias, formas e costumes que acabaram com a escravidão e, distanciando-se de Roma, tornaram possíveis as noções de igualdade, solidariedade, direitos humanos, liberdade e democracia, impulsionando decisivamente o desenvolvimento do pensamento, da arte, das letras e contribuindo para acabar com a barbárie e para promover a civilização”.
26 de fevereiro de 2013
vespeiro
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