"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 6 de março de 2013

DUGIN, NÃO FALA ABOBRINHA


          Artigos - Cultura 
dugin1Dugin provou que gosta mesmo é de falar. Até do que não sabe.
As provas são fartas.

Aleksandr Dugin, o ideólogo russo do eurasianismo e mentor intelectual de Vladimir Putin, pode achar que a música pop do Brasil é melhor do que a obra clássica completa de Prokofiev e Tchaicovsky juntos. Problema dele.

Agora, não vem falar abobrinha sobre o processo de integração do negro na sociedade colonial brasileira nem sobre a presença de elementos da cultura africana na formação cultural do Brasil. Ouvindo o galo cantar sem saber onde, Dugin tirou da cartola uma lorota para explicar a 'identidade dos afro-descendentes brasileiros': a de que os negros escravos vinham da África para o Brasil agrupados por tribos. É mentira.

O dublê de cientista e guru apresentou sua tese fantasiosa numa entrevista em que discorre sobre a tal identidade, que o encantou quando ele veio ao Brasil, ano passado, depois de debater, pela internet, com o filósofo Olavo de Carvalho sobre "Os Estados Unidos e a Nova Ordem Mundial". Do debate, que virou livro, Dugin falou pouco, limitando-se a classificá-lo como 'duríssimo' (na verdade, apanhou feio).
     
Se no debate com Olavo de Carvalho ficou claro sua preferência por esgrimir chavões e clichês, inerentes à natureza do discurso ideológico que pratica, ao pontificar sobre a composição étnica brasileira, Dugin provou que gosta mesmo é de falar. Até do que não sabe. As provas são fartas.

Segundo a teoria historico-socio-antropológica do ex-arquivista da KGB, os escravos eram desembarcados e vendidos em grupos tribais; podiam, assim, expressar-se na própria língua, manter os costumes, transmitir seus valores, reproduzir as formas de organização social e praticar sua religião, possibilitando a preservação da cultura africana e suas formas de identificação coletivas na nova sociedade para onde foram transplantados.

A unidade linguístico-cultural dos contingentes africanos e a transmissão do seu patrimônio cultural às gerações posteriores seriam, na opinião de Dugin, responsáveis pela forte identidade social do negro brasileiro,

A partir daí, também se compreenderia a influência determinante de elementos da cultura africana na formação do Brasil. Palavras do 'pajé de Putin": "Os afro-brasileiros preservaram, em alto grau, seus cultos, seu 'eu', sua identidade étnica".


Nada mais falso. Isto é bullshit. Quem garante é o insuspeito (do ponto de vista revolucionário) antropólogo marxista, Darcy Ribeiro, pertencente ao mesmo grupo ideológico de Alexandr Dugin e autor de um dos mais completos e confiáveis estudos sobre a fusão de culturas que formou o Brasil. Está lá, em seu livro "O Povo brasileiro - A formação e o sentido do Brasil":

"Os negros que vieram para o Brasil foram capturados meio ao acaso nas centenas de povos tribais, alguns hostis entre si, que falavam dialetos e línguas não-inteligíveis uns aos outros. A África era, então, como ainda hoje o é, uma imensa Babel de línguas.

(...) A diversidade lingüística e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recíprocas que eles traziam da África e à política de evitar concentrações de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até mesmo nos navios negreiros, impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano.


(...)"O papel decisivo do negro na formação da sociedade local foi por excelência o de agente de europeização que difundiria a língua do colonizador e que ensinaria aos escravos recém-chegados as técnicas de trabalho, as normas e valores próprios da subcultura a que se via incorporado."


Como se vê, o negro foi o elemento unificador e civilizador do Brasil, já que foi obrigado a aprender a língua do colonizador e do senhor da casa grande para poder se comunicar com os capatazes e com os outros escravos da senzala. A unidade linguística brasileira é resultado desta forma de escravização.

Fundamentado em mais de trinta anos de pesquisas, o antropólogo brasileiro não deixa dúvidas de que a contribuição cultural do negro foi pouco relevante na formação da protocélula original da cultura brasileira.
"O papel do negro como agente cultural foi mais passivo que ativo, ainda que o negro tenha tido importância crucial como massa trabalhadora que produziu quase tudo que aqui se fez".
Pois é, alguém precisa avisar Dugin que Darcy Ribeiro contraria frontalmente a sua tese. Mas, pelo jeito, o pai do eurasianismo não está nem aí para o que escreveu Darcy Ribeiro. O cientista político Dugin diz textualmente, sem corar, pérolas como esta:

"Na América Latina, os escravos eram tomados dos navios e estabelecidos da mesma forma como foram capturados - por tribos, enquanto na América do Norte eles eram distribuídos para donos diferentes, de modo a evitar a preservação da sua identidade.

Na prática anglo-saxônica, é o indivíduo sozinho. Você o compra e retira dele todas as formas de identidade coletiva. Ele não sabe a língua, é afastado de seus companheiros de tribo. Por isto, os afro-americanos do norte não tem sua própria cultura. Eles são diferentes dos brancos, mas não possuem sua própria identidade social.


Quanto aos escravos brasileiros, eles se estabeleceram não isolados, como na América do Norte, mas integrados. Então, eles mantiveram seus cultos (candomblé, macumba), suas próprias tradições religiosas, a cultura e mesmo a língua, pelo menos, em parte.


Esta peculiaridade, 'muito interessante', na opinião de Dugin, provocou um efeito completamente distinto daquele da sociedade norte-americana, fazendo do Brasil "um mundo único".
Cometer um erro deste gravidade, alardeando que a integração do negro brasileiro foi harmoniosa e sem ruptura com a herança cultural africana, ou seja, o contrário do que ocorreu na América do Norte, equivale a dizer que o gênero de colonização no Brasil foi o mesmo dos Estados Unidos.
Nada a ver um com o outro. Lá, o processo foi de cultura transplantada. "Os ingleses estavam empenhados em transplantar sua paisagem mundo afora, recriando pequenas Inglaterras, dispostos a simplesmente conquistar seu naco do bolo americano"(Darcy Ribeiro), além de também resolver o problema de excedentes de massas famélicas de seus próprios reinos

O povoamento de colônias inglesas por famílias e comunidades inteiras implicava transplantar da Inglaterra para a colônia toda a organização social, as técnicas de produção, o ordenamento jurídico e as crenças e práticas religiosas. Os colonos como que recebiam praticamente uma nova pátria por fazer.

A colonização do Brasil deu-se por processo inteiramente diverso. Uma das peculiaridades foi a vinda tanto de Portugal quanto da África para cá, nos primeiros tempos, de contingentes integrados quase que exclusivamente por homens, sem a companhia de mulheres ou família. Daí, Darcy Ribeiro referir-se sempre ao ventre indígena, a grande matriz tupi, de que todos nós brasileiros somos filhos.

Voltando e (contrariando) à tese maluca de Dugin, o tipo de colonização do Brasil fez com que os negros escravos - sem sua identidade tribal e, no início, sem sequer sua família nuclear - ficassem completamente desenraizados culturalmente e impossibilitados de aqui reproduzir a sua cultura original, obrigando-os a se integrar e aderir ao modo de vida indígena para garantir a sobrevivência.

Radicalmente desaculturados pela erradicação de sua cultura africana, os negros foram simultaneamente se aculturando nos modos brasileiros de ser e de fazer.
E já que a sua cultura não podia expressar-se nas formas de adaptação (os modos de prover a subsistência), nem tampouco nos modos de associação (a organização da vida social), restou-lhe o plano ideológico - as crenças religiosas e as práticas mágicas - em que o negro escravo buscava explicar e encontrar consolação para suas próprias experiências. Darcy Ribeiro observa:

"A estas crenças e práticas religiosas, o negro se apegava no esforço ingente por consolar-se do seu destino e para controlar as ameaças do mundo azaroso em que submergira. Junto com estes valores espirituais, os negros retêm, no mais recôndito de si, tanto reminiscências rítmicas e musicais quanto sabores e gostos culinários.

Esta parca herança africana - meio cultural e meio racial -, associada às crenças indígenas, emprestaria à cultura brasileira, no plano ideológico, uma singular fisionomia cultural. Nesta esfera é que se destaca, por exemplo um catolicismo popular muito mais discrepante que qualquer das heresias cristãs tão perseguidas em Portugal."



Darcy Ribeiro remete sempre ao início da escravização, e à forma como ela se deu, para justificar a presença pouco marcante de elementos africanos na cultura brasileira, (quase) restrita à música e danças, temperos culinários e, mais tardiamente, nas religiões de matrizes africanas, em simbiose com crenças indígenas e o catolicismo. Sobre os primeiros contingentes de escravos, Darcy afirma:


Embora mais homogêneos no plano da cultura, os africanos variavam também largamente nessa esfera. Tudo isso fazia com que a uniformidade racial não correspondesse a uma unidade lingüístico-cultural, que ensejasse uma unificação, quando os negros se encontraram submetidos à escravidão.

A própria religião, que hoje, após ser trabalhada por gerações e gerações, constituiu-se uma expressão da consciência negra, em lugar de unificá-los, então, os desunia. Foi até utilizada como fator de discórdia, segundo confessa o conde dos Arcos.


Encontrando-se dispersos na terra nova, ao lado de outros escravos, seus iguais na cor e na condição servil, mas diferentes em língua, na identificação tribal e frequentemente hostis pelos referidos conflitos de origem, os negros foram, assim compelidos a incorporar-se passivamente no universo cultural da nova sociedade.


Dão, nestas circunstâncias adversas, um passo adiante dos outros povoadores ao aprender o português com que os capatazes lhes gritavam e que, mais tarde, utilizariam para comunicar-se entre si. Acabaram conseguindo aportuguesar o Brasil."


06 de março de 2013

Mírian Macedo é jornalista

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