"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 21 de março de 2013

ENEM DE DILMA/MERCADANTE: CORRETORES RECEBERAM R$ 2,35 POR REDAÇÃO

Para professores, processo desgasta e afeta qualidade da avaliação


 Corrigir cem textos em duas horas compromete os critérios de avaliação? E se, a cada prova revisada, o corretor ganhasse menos de R$ 3?
Após o “Globo” revelar correções polêmicas de redações do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ao longo da semana, abriu-se um debate em torno das condições de trabalho de quem fica por trás das provas.

Desde segunda-feira (18), o jornal mostra exemplos de redação com notas contraditórias em relação ao conteúdo. Além de textos com graves erros como “trousse”, “enchergar” e “rasoavel” que receberam pontuação máxima, outros que incluíam a receita de Miojo e o hino de Palmeiras não foram anulados.
 
Na última edição do Enem, um time de 5.683 corretores teve a missão de avaliar mais de quatro milhões de redações num espaço de menos de um mês. De acordo com o Ministério da Educação (MEC), cada redação corrigida significava R$ 2,35 no bolso do professor convocado pelo órgão.

Todo o processo é feito virtualmente: o corretor recebe lotes com 50 provas cada e as corrige. Assim que termina uma leva, outra é enviada a ele. Segundo o MEC, em média cada corretor cuidou de 60 provas por dia. Mas, de acordo com alguns avaliadores entrevistados pelos repórteres, este número pode ser muito maior. Segundo o professor Wander Lourenço, o processo de correção é desgastante, o que acaba comprometendo o nível da avaliação. Ele foi corretor em 2011, mas não aceitou o desafio no ano passado.

— Corrigi 4.200 redações em menos de 20 dias em 2011. Fiquei muito apavorado. Eu tinha aceitado as condições porque precisava de dinheiro, mas a experiência foi tão traumática que decidi não participar da correção do último Enem — conta o docente.

Para se corrigir uma prova do Enem, é preciso ter formação em Letras e ter sido convocado por um supervisor regional do MEC, que dá instruções à sua equipe de corretores. Em geral, são chamados professores conhecidos do supervisor, na mesma lógica de um cargo de confiança. Cada “time” tem, em média, de 25 a 30 professores aptos a avaliar as provas. Não há contrato de exclusividade com os convocados.

Em outros vestibulares, a situação, no papel, não é muito diferente. A Unicamp informou que conta com cerca de 90 corretores, número que pode variar a cada ano, dependendo do total de candidatos. Em 2013, eles precisaram corrigir 67 mil redações, que devem ser analisadas por pelo menos dois professores, ou até por um terceiro, quando há discrepância de dois pontos ou mais entre as notas dos outros avaliadores.

Não há um tempo estipulado para a correção de cada texto, mas, segundo a Unicamp, os corretores trabalham de oito a dez horas por dia para cumprir sua meta diária de aproximadamente 200 redações. Se um professor corrigir 200 textos em dez horas, ele dedicará, em média, três minutos a cada trabalho — isso sem qualquer interrupção.

O que consta no papel, no entanto, nem sempre descreve a realidade. O professor de Letras da Universidade Estácio de Sá Luiz Carlos de Sá Campos chegou a avaliar cerca de mil redações em seis dias na última edição do Enem, mas desistiu ainda durante o processo porque o trabalho era muito “estafante”.

Para Luiz Carlos, o MEC deveria chamar mais professores a fim de retirar a sobrecarga dos corretores e elevar a qualidade da correção.
 — Mas talvez isso não fosse interessante para o governo, já que a média geral das redações provavelmente cairia — sugere o professor.

Há quem entenda que o número atual de corretores do Enem é adequado. Para um supervisor — que preferiu não se identificar por causa de um contrato de sigilo com o MEC —, seria normal um professor corrigir cem redações por dia, o que não lhe tomaria mais de três horas, segundo ele. Além de também considerar “justa” a remuneração paga aos corretores, ele alega que prefere o modelo de convocação estabelecido por laços entre os supervisores regionais e seus colegas professores.

— Nem sempre um concurso público é a melhor maneira de chamarmos os que têm mais experiência. Não é essa a ideia — explica.

Já uma professora especialista em estudos linguísticos que foi corretora do Enem na última edição fez duras críticas. Ela contou que foi convidada por alguém que já era avaliador da prova de redação para fazer parte do grupo de corretores. Segundo ela, em nenhum momento foi pedido que apresentasse seu diploma ou a comprovação de seu trabalho e sua experiência na área.

A avaliadora revelou que uma semana antes da reunião os corretores foram chamados para uma conversa fechada com supervisores, sobre como deveria ser o processo de correção das redações. Nesse encontro, dois pontos causaram indignação da avaliadora:

— Acho preocupante a indicação. Em nenhum momento é solicitado o diploma. Fico me perguntando que segurança o MEC tem. Como eles sabem se eu tenho formação ou não? Isso é uma questão grave. Outra questão é que foi dito que bastava o candidato mencionar a palavra imigração ou imigrante em qualquer parte do texto e ele não poderia ser eliminado — contou ela.

Para anular, de acordo com ela, apenas em casos extremos, em que não se falasse em imigração ou o candidato não desse a entender que estava falando do tema.
O supervisor chegou a dizer que mesmo um poema inserido na redação seria válido.

— Se um candidato escrevesse uma poesia em vez de um texto argumentativo e desse para eu perceber que essa poesia tinha pelo menos um argumento qualquer relacionado à imigração, isso também seria considerado.

Ela disse que as redações com receitas de Miojo e o hino do Palmeiras não a surpreendem. A professora explicou que anulou pouquíssimas redações por causa disso. Uma das que foram desclassificadas era de uma aluna que escreveu um texto falando do filho, do marido, da gravidez, mas não disse que era imigrante.

— Eu anulei justificando que ela não era imigrante. Não mencionava a palavra imigrante — contou.

A avaliadora corrigiu mais de 1.500 redações entre 15 de novembro de 9 de dezembro, em seu tempo fora do trabalho. De acordo com ela, o ideal seria corrigir cada uma por 20 a 30 minutos, mas para vencer a meta de cem redações por dia não era possível ficar nem dez minutos com cada texto. A professora chegou a dizer que, quando as redações foram liberadas para consulta dos candidatos, ela já esperava que os estudantes reclamassem dos problemas:

— Seria quase inevitável pensar que não fosse vir à tona toda essa questão, e sabíamos que isso cairia sobre os avaliadores. Não me surpreendeu porque eu li coisas absurdas. Essa orientação para fazer vistas grossas deve ser para mascarar a má qualidade da educação. O aluno de ensino médio não domina a sua própria língua materna.

Apesar de o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) ter afirmado que erros de grafia não necessariamente comprometem as chances de um texto ser avaliado com nota máxima, o “Guia do Participante” do próprio instituto classifica esse tipo de desvio como o “mais grave” ou “grave”, a depender da complexidade da palavra escrita.

A falta de concordância quando o sujeito vem antes do verbo também é considerada um desvio “mais grave”. Segundo o manual, essas “inadequações do uso linguístico ao registro formal escrito (...) são penalizadas na Competência 1 (demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita)”. Apesar disso, como mostrou o “Globo” na segunda-feira, redações que continham desvios do tipo receberam nota 1000.

21 de março de 2013
Leornardo Vieira, Juliana dal Piva e Manuela Andreoni - O Globo

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