"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 14 de março de 2013

UMA ENTREVISTA SOBRE "DOSSIÊ GABEIRA" : FAZER JORNALISMO É JOGAR PEDRA NA VIDRAÇA.

O Jornal do Brasil de 13/09/09 publicou, em página inteira do Caderno B, uma entrevista sobre o livro "Dossiê Gabeira : o Filme que Nunca Foi Feito". Eis a íntegra da entrevista ao repórter Bolívar Torres:



Como foi o contato com Gabeira durante as entrevistas? Alguma questão específica provocou mal-estar ou má vontade da parte dele? Qual foi a duração total das entrevistas?

"O projeto era o de gravar uma longa entrevista em regime de esforço concentrado: de preferência, de uma só vez. Assim foi feito. Durante seis horas - somente interrompidas por um breve intervalo para refeição - , bombardeei Fernando Gabeira com as perguntas sobre temas que me pareceram relevantes. A editora alugou por um dia uma suíte de um hotel em Ipanema. Um fotógrafo - Gilvan Barreto - documentou a cena.Dois amigos jornalistas - Ricardo Pereira e Jorge Mansur - gravaram em vídeo. Depois, fiz outras duas entrevistas com Fernando Gabeira, para complementar a apuração. Sou suspeitíssimo para falar, mas garanto que quem mergulhar nas páginas do "Dossiê Gabeira" fará uma viagem pelas últimas décadas da aventura brasileira"

O episódio do sequestro já foi abordada pelo próprio Gabeira em O que é isso, companheiro?, além da adapação para o cinema do livro e do documentário Hércules 56. Por que revisitar esse fato? Havia questões ainda mal-resolvidas? Na sua opinião, qual o peso do sequestro na trajetória de Gabeira? O que representa?


"Respondo sem a menor dúvida: todos,todos os fatos merecem ser revisitados - especialmente pelos jornalistas. Eu diria que é uma obrigação profissional. O jornalista que dá um fato por "encerrado" ou "esgotado" pode estar fazendo qualquer coisa - menos jornalismo. Porque uma das funções básicas do jornalismo é justamente o de remover as camadas que encobrem os acontecimentos. Nem sempre a missão é bem sucedida. Mas o simples fato de tentar já é essência do jornalismo. Há dezenas, centenas de questões a serem discutidas sobre um acontecimento tão importante quanto foi o inédito sequestro de um embaixador estrangeiro no Brasil. Jamais se tinha feito algo parecido. O sequestro foi o mais "espetacular" golpe contra o regime militar, naquele momento. Ou seja: é um fato interessantíssimo. Qualquer jornalista que julga que um fato interessantíssimo pode ficar "velho" ou "superado" ou "esgotado" deveria mudar de profissão, para felicidade geral de leitores, ouvintes e telespectadores".

Por que a opção de dar um recorte cinematográfico à série de entrevistas, com introduções que evocam o roteiro de um filme ainda não realizado? Seria uma espécie de resposta ao fato de Hércules 56 ter ignorado Gabeira?

"Não. Não tive qualquer intenção de responder ao documentário Hércules 56, um filme, aliás, bem realizado. Não sou nem nunca fui assessor de imprensa de ninguém - menos ainda de políticos, por mais respeitáveis que eles sejam. O meu partido é outro. Pertenço ao PPB, o Partido dos Perguntadores do Brasil. As referências "cinematográficas" apenas realçam o tom aventuresco de certas passagens, como, por exemplo, o tiro que Gabeira levou ao tentar, em vão, fugir dos chamados "agentes da repressão" em São Paulo. O livro começa com um tiro. É como se dissesse: o pau vai comer. A história que se vai retratar aqui não é brincadeira"

Você acredita que ainda hoje há uma mitificação em torno de algumas figuras dos anos de chumbo, algum tipo de aura que prejudique sua real compreensão? Ao fazer o livro, ficou com medo de alimentar o "mito Gabeira"?

"Não. Mas é possível distinguir dois momentos diferentes em relação aos guerrilheiros que combateram a ditadura. Num primeiro momento, especialmente depois da volta dos exilados, houve uma (compreensível) glorificação da resistência. Com o passar do tempo, figuras como o próprio Gabeira passaram a desenvolver uma visão crítica sobre a prática da luta armada. Um exemplo bem específico: hoje, Gabeira diz que vê o sequestro com os olhos do refém - não dos sequestradores"

Ainda nessa questão, fica claro no livro que o episódio do sequestro persegue Gabeira, e até hoje - mesmo depois de demonstrar arrependimento - está associado à sua figura. A incursão na ilegalidade, que se estende às aventuras guerrilheiras no exílio, alimentam essa romantização da sua figura?

"Há uma certa aura romântica em torno de guerrilheiros. Aventuras vividas nos anos de chumbo de combate ao regime militar terminam envolvidas por uma névoa de romantismo. Mas, com o tempo, é possível ver que o filme não é nem poderia ter sido tão romântico assim. Houve violência, derramamento de sangue, vidas perdidas, guerras sujas. O Brasil de hoje deve respirar aliviado, porque dificilmente um quadro daquele se repetirá"

Paulo Cesar Pereio disse: "Uma das virtudes medulares do Gabeira é a inteligência. Mas ele é paradoxal". Mas talvez seja justamente este o ponto mais interessante de Gabeira. Pelas entrevistas, fica claro que, desde os tempos da polarização cultural que se estabeleceu no Brasil nos anos 60 e 70, já era um personagem complexo, capaz de questionar as ideias feitas dos dois lados - mesmo estando comprometido com um lado específico. A principal característica de Gabeira, dentro da história da política do Brasil nos últimos 40 anos, seria a de apresentar um alternativa pluralista às radicalizações e certezas que o cercavam?
 
"Minha tendência é a de concordar com esta avaliação. Bem ou mal, com erros e acertos, avanços e recuos, a trajetória de Fernando Gabeira parecve apontar para a defesa de uma pluralidade que é sempre saudável e necessária"

Quando perguntado se se considera um "rebelde fracassado", Gabeira diz que não é mais rebelde, apenas fracassado. Para muitos, Gabeira é a esperança de uma renovação e modernização de uma esquerda mais pragmática no país. Será que esta modernização passa justamente por um reconhecimento do "fracasso", ou seja, de que não há caminhos épicos ou românticos na política moderna? Como este "arrependimento" movimenta, de modo geral, a geração de Gabeira nos dias atuais?
 
"Não saberia falar em nome da geração de Gabeira. Mas eu diria que,independentemente de qualquer coisa, a atualização das visões do mundo é uma tarefa indispensável. Não é fácil. Pode ser um processo doloroso. Por exemplo: não é fácil admitir que as utopias - que provocaram paixões políticas em tantos jovens militantes por tanto tempo - foram, nas palavras de Gabeira, "sanguinárias", porque terminaram justificando um enorme rol de violências. É esta a leitura que ele faz do Século XX, na entrevista que me concedeu: as utopias foram sanguinárias. Isso é dito por um ex-guerrilheiro que se empenhou em implantar uma "utopia" socialista. Posições assim despertam rancores, polêmicas, discussões. Tomara que o "Dossiê Gabeira" possa cumprir este papel: o de provocar um debate sobre a trajetória de uma geração que tentou mudar o Brasil"
 
Por outro lado, para além do pragmatismo, Gabeira também defende a ideia de que política sem esperança é "insuportável". Até que ponto Gabeira se equilibra entre o realismo e o sonho, entre o político e o artista?

"Não é só a política sem esperança que é insuportável. A vida sem esperança pode ser uma sucessão cinzenta de dias. É preciso sonhar com o possível - e o impossível. O fogo que alimenta esses sonhos é que move o mundo para frente. É preciso, apenas, estar atento para não repetir erros do passado. Neste sentido, o depoimento de Gabeira no livro pode ser super-didático. Em resumo, ele diz que, hoje, já não há grandes roteiros de transformação a serem seguidos. Ninguém precisa pedir a bênção a Karl Marx todo dia de manhã. Mas há espaço para sonhos que podem ajudar a melhorar a vida de cada um e de todos. A diferença é que ninguém precisa acreditar, por exemplo, que o Estado deve mandar na vida de todos, como uma parte da esquerda achava nos anos sessenta, setenta e oitenta. Igualmente, não se deve acreditar que o "mercado" é que deve reger nossas vidas. O segredo da sabedoria, hoje, segundo Gabeira diz na entrevista, é saber qual a melhor combinação que pode ser feita entre estado e mercado, em momentos históricos específicos"

Quando você chega à questão recente do uso indevido de passagens aéreas na Câmara, Gabeira diz que se sente mais leve, que perdeu o "figurino de reserva moral". Até que ponto o episódio pode mudar a imagem - e a carreira política - do político e intelectual?

"Fiz perguntas duras sobre o assunto. Perguntei o que qualquer cidadão comum perguntaria, se tivesse a chance de confrontar Gabeira sobre a questão do uso indevido de passagens áeras cedidas aos parlamentares pela Câmara dos Deputados. Gabeira reconheceu o erro, plenamente"

O que Gabeira tem ainda a acrescentar ao desacreditado cenário político brasileiro, com sua ainda - jovem - democracia?


"Só ele poderá responder. Prefiro pensar na contribuição, mínima que seja, que os jornalistas podem dar ao cenário brasileiro. Que contribuição pode ser esta ? Criar memória, por exemplo. Creio que toda profissão, todo profissional precisa de um lema para ir em frente. Escolhi um: "Fazer jornalismo é produzir memória". Há outros. Fazer jornalismo é desconfiar. Fazer jornalismo é ser impertinente. Fazer jornalismo é incomodar. Fazer jornalismo é não dar tapinha nas costas dos outros. Fazer jornalismo é não tratar o entrevistado como amiguinho (é o que a gente vê, lastimavelmente, na esmagadora maioria das entrevistas com celebridades de todos os tipos, em jornais, rádios, TVs, blogs, seja onde for). I´am sorry, mas meu time é outro. Fazer jornalismo é jogar pedra na vidraça. Fazer jornalismo é ter a ilusão de que vale a pena"

14 de março de 2013
in  geneton moraes neto
(13 de setembro de 2009)

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