O Brasil está cheio de profissões inúteis. Sem ir muito longe, os cabineiros de elevador, como são chamados, pela legislação do trabalho, os ascensoristas. Há décadas, pobres diabos assalariados são pagos para subir e descer em prédios, dentro de caixotes exíguos, exercendo esta complexa atividade, que exige uma habilitação personalíssima, a de apertar botões numerados. Em uma entrevista para o Roda Viva, o sociólogo italiano Domenico di Masi se escandalizava: se a questão é dar um salário a alguém, dêem-no e mandem o rapaz passear, divertir-se. Ou freqüentar uma universidade. Por que encerrá-lo em um caixote para exercer uma função inútil?
Fosse só esta a profissão inútil alimentada na terrinha... Não sei se o leitor sabe, mas os zeladores de carros já são reconhecidos por lei. Sob a ameaça de riscar ou depredar seu carro, uma malta organizada de vagabundos lhe extorque uma significativa propina cada vez que você estaciona em lugar público... e está criada a profissão.
Como também o de jornalista. Mais que reconhecido, regulamentado. Em todas as democracias do Ocidente, jornalista é aquele que tira do jornalismo a maior parte de seus proventos. Exceto neste país incrível, onde só pode exercer a profissão quem tem um papelucho de uma escola de jornalismo. A lei infame foi parida pela junta de generais que assumiu o poder em 1969. As esquerdas, em geral tão raivosas quando se trata de contestar os atos gestados pelo regime militar, fazem boquinha de siri ante o dispositivo corporativista.
Reservas de mercado só fortalecem a guilda. Quem sabe faz, quem não sabe ensina. A regulamentação do jornalismo gera milhares de empregos na área acadêmica. Professores que muitas vezes jamais pisaram numa redação de jornal ensinam jornalismo, ganhando para isso muito mais que o jornalista e sem o risco de enfrentar os humores do mercado.
Isto sem falar nos juízes classistas, outra excrescência muito nossa, herança da era getulista. Sem qualquer habilitação profissional, sem curso nem concurso, um analfabeto qualquer podia exercer as funções de magistrado na Justiça do Trabalho, bastando para tanto ser indicado por um sindicato amigo. Se não havia sindicato amigo ao alcance do analfabeto, este criava o sindicato e se fazia indicar. Recebia como juiz alfabetizado, formado em Direito e concursado e aposentava-se com proventos integrais, após cinco anos de exercício do cargo.
Para o juiz togado, eram exigidos 35 anos para a aposentadoria, se homem, 30 anos se mulher. Após décadas de parasitismo incontestado, os classistas tiveram seus dias contados. Mas permanecerão, como a jabuticaba, na crônica das coisas nossas. De qualquer forma, resta ainda uma excrescência do Estado corporativo dos anos 30, o chamado quinto constitucional, via de acesso aos tribunais não por concurso, mas por interferência política, na base da escolha dos poderosos do momento.
Enquanto essas profissões inúteis e mesmo corruptas em suas origens proliferam, os senhores congressistas acabam de matar um ofício dos mais necessários às famílias, o de doméstica. A PEC n° 66/2012 amplia os direitos das empregadas domésticas e lhes garante direitos semelhantes aos trabalhadores do setor privado: jornada de 44 horas semanais, direito a hora extra, adicional por trabalho noturno, FGTS, salário-família e auxílio-creche. A doméstica, que mantinha uma relação informal e muitas vezes amistosa com os patrões, agora baterá ponto e se posicionará do outro lado do ringue.
Os jornais estão saudando a nova lei como um avanço que nos equipara à Europa, onde doméstica é privilégio de abastados. Também comparam o novo estatuto à libertação da escravidão. Parecem ignorar que muitos destes escravos contemporâneos, particularmente aqui em São Paulo, recebem bem mais que uma professora do secundário.
Sim, o Brasil entrou decididamente no Primeiro Mundo. Calcula-se em sete milhões o número de empregados domésticos no Brasil, sendo 97% mulheres. A profissão vivia em meio à informalidade, mas existia. Com a nova lei, tende a extinguir-se, a médio e longo prazo. O legislador agiu como o alfaiate que quer encontrar o terno ideal que sirva a todos e acaba não servindo em ninguém.
Como dizia Alberto Moravia, em seu ensaio A Razão como Fim só há uma solução definitiva para quem tem dor de cabeça. Corta-se a cabeça e a dor passa. É solução lógica. Mas não é humana. Não deixa de existir lógica na nova lei. Mas vai levar muita doméstica ao desemprego. Ou empurrá-las à condição de diaristas. Melhor emprego sem carteira assinada ou carteira assinada sem emprego? A pessoa mais autorizada para responder esta pergunta é o desempregado.
Curiosamente, os jornalistas que incensam a nova lei parecem ignorar que, a seu lado, trabalham milhares de colegas, regidos pelo eufemismo de frilas (freelancers) fixos. Isto é, o jornalista finge que cada dia é um novo frila, e trabalha todos os dias como os demais jornalistas. Sem carteira assinada. A situação pode se prolongar por anos.
Em meus dias de Folha, vi colegas mancheteando sobre índios que viviam a condição de trabalho escravo por trabalharem sem carteira assinada. Urgia denunciar os escravizadores à ONU. Viam longe meus colegas. Só não viam os colegas que viviam a mesma condição a seu lado. Estavam muito perto.
02 de abril de 2013
janer cristaldo
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