"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

AS FACES OCULTAS DA CRISE

A grande crise contemporânea presta-se a muitas interpretações. A especulação imobiliária e os excessos dos financistas americanos são apenas suas faces mais visíveis. A demagogia e a irresponsabilidade financeira de uma obsoleta social-democracia europeia estão ainda camufladas pela crise do euro. Mas a onda de empréstimos inadequados que foi disparada pela adoção da moeda continental, derrubando riscos de crédito soberanos sem distinção de fundamentos fiscais, foi apenas a etapa final de uma longa história de abusos orçamentários e finanças públicas insustentáveis.

Outra face oculta da crise é uma atuação disfuncional de importantes bancos centrais por mais de uma década, indiferentes quanto aos possíveis efeitos sobre os demais países. O Federal Reserve dos americanos e o Banco Central da China manipulam artificialmente preços críticos para a economia mundial, como suas taxas de juros e de câmbio, de olho exclusivamente na criação de empregos domésticos. Os americanos criam bolhas financeiras em série, e os chineses roubam empregos em todo o mundo. Quando estouram as bolhas e surge o desemprego em massa, desaparecem as autoridades responsáveis — e a culpa é dos mercados.

Outra dimensão pouco explorada da crise são seus impactos assimétricos e perversos sobre as diferentes camadas da população. Grupos de interesses financeiros capturam e dirigem as autoridades nas operações sistêmicas de salvamento. No caso americano, as transferências de recursos públicos para o sistema financeiro em tempos de crise, a pretexto de salvar as economias de mercado de seus próprios excessos, contrastam com a desatenção às execuções de hipotecas de imóveis para classes de baixa renda e à incapacidade de pagamentos de empréstimos tomados por estudantes. Já no caso europeu, a explosão da taxa de desemprego entre os jovens revela a crueldade e a inadequação de regimes trabalhistas e previdenciários que refletem ultrapassados interesses corporativistas.

Outra formidável deformação, pela enxurrada de liquidez promovida por bancos centrais de países desenvolvidos, é a percepção súbita de enriquecimento nos países emergentes. A explosão nos preços de produtos primários e uma avalanche de recursos financeiros em resposta aos diferenciais de juros e de crescimento valorizam suas moedas, embalando ilusões de riqueza enquanto destroem a competitividade de suas indústrias.

28 de fevereiro de 2012
Paulo Guedes
Fonte: O Globo, 27/02/2012

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