"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 21 de março de 2012

E SE PROIBISSEM A CÂMERA ESCONDIDA NO BRASIL?

Há interesse das emissoras em diferenciar o que é de interesse público do que é filmado na surdina apenas para gerar audiência fácil?

Causou justa indignação nacional a reportagem exibida no programa Fantástico, da Rede Globo, no último domingo, 18, que mostrou com perturbadora clareza como empresas fornecedoras do Estado agem para fraudar licitações e dando uma ideia, como diz uma piada que circula por aí, de como os gestores públicos brasileiros são os mais católicos do mundo, porque nunca assinam coisa alguma sem ter um terço na mão.

Tudo foi registrado com o uso da câmera escondida. A matéria do Fantástico foi feita pelo repórter André Luiz Azevedo e pelo produtor Eduardo Faustini, velho useiro e vezeiro deste polêmico estratagema jornalístico.

A Eduardo Faustini, o “cara sem cara da Globo”, que evita mostrar o rosto para não ser reconhecido por sua próxima, digamos, fonte, a ele deve ter causado calafrios uma decisão do Tribunal Constitucional da Espanha tomada no último dia 6 de fevereiro proibindo o uso da câmera escondida pelos meios de comunicação do país, considerando-a uma espécie de prestidigitação.

O mais alto tribunal da Espanha considerou “ilegítimo” o uso deste artifício do jornalismo mesmo nos casos em que a informação que se possa obter por meio do uso de câmeras escondidas seja de relevância pública.

Câmera escondida: ‘ardil’?

A utilização de câmeras escondidas, justificou-se o tribunal, constituti um “ardil” ao qual o jornalista recorre simulando uma identidade que lhe seja útil de acordo com o contexto para provocar e registrar “subrrepticiamente” declarações que não teria conseguido colher caso se apresentasse ao seu interlocutor com sua verdadeira identidade — e declarasse sua real profissão.

Para os juízes do Tribunal Constitucional da Espanha, o caráter oculto dessa técnica de investigação jornalística pressupõe uma violação do direito de imagem e à intimidade pessoal.

Imediatamente a presidente da Federação de Associações de Jornalistas da Espanha, Elsa González, protestou, dizendo que a decisão afetará gravemente o jornalismo de investigação. Ela reconheceu que o método da câmera escondida tem sido usado por vezes de forma “banal e abusiva”, mas ressaltou que, sem ele, “grande parte das denúncias de reportagens com câmera oculta para denunciar cartéis de drogas, subornos ou máfias de tráfico de mulheres não teriam sido feitas”.

Do manobrista ao contratista

Mais ou menos pelo mesmo caminho foi o jornalista português António Granado, que tem um dos mais respeitados blogs sobre jornalismo do mundo, o Ponto Media:

“Acho que, na esmagadora maioria dos casos, a utilização de câmara oculta não se justifica (pois é um jornalismo “fácil” e de resultados assegurados), mas há momentos em que não há mesmo outra hipótese. É por causa desses momentos que me parece que a decisão do Tribunal Constitucional espanhol pode significar um retrocesso da democracia”.

O xis da questão parece ser os critérios utilizados por quem usa a câmera oculta para definir o que é de interesse público e o momento em que não há outra alternativa jornalística a não ser uma identidade falsa e uma filmagem na surdina. Indo além: existe vontade por parte das emissoras de fazer essa definição, tendo em vista que a câmera escondida é usada também (sobretudo?) como artifício para gerar audiência fácil, para o sensacionalismo, onde as consequências da reportagem não vão além da alta na medição do Ibope?

A mesma Rede Globo que exibiu a reportagem do último domingo flagrando empresas tentando burlar licitações também exibiu, meses atrás, imagens de manobristas catando moedinhas e comendo chocolates deixados nos carros de clientes, em um “teste de honestidade” que gerou como consequência, no máximo, alguns manobristas engrossando a lista dos que pagam a pena do desemprego, tudo porque chuparam o chiclete de um bacana que topou colocar tanto a câmera quanto a isca – uma bem escondida, outra bem à mostra – no seu carrão.

21 de março de 2012
Hugo Souza

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