Não sei se o leitor notou, mas o lobo não dispensa um bom discurso antes de comer o cordeiro. Poderia apanhá-lo e devorá-lo sem dizer água vai. Mas há um resquício qualquer de consciência que leva o lobo a justificar-se. Estás sujando a água que bebo. Se não estava sujando a água, você falou mal de mim no ano passado. Não foi você? Então foi seu irmão. Não tem irmão? Então foi algum conhecido. E por aí vai.
Foi o caso do Supremo Tribunal Federal em sua sessão de ontem, quando oficializou o racismo no Brasil. Não bastava declarar legais as cotas raciais na universidade. Era preciso um discurso. Ora, lobos e juristas são hábeis na manipulação de palavras. Depois de dois dias de julgamento, prevaleceu a tese de que a reserva de vagas em instituições de ensino público busca a chamada "igualdade material": a criação de oportunidades para quem não as tem em situações normais.
Ou seja, agora quem passa a não ter oportunidades são os que as tinham em situações normais. A igualdade material, expressão surgida do nada, está além do bem e do mal. Paira sobre a Constituição e a revoga num piscar de olhos. Agora foi o caso do todos são iguais perante a lei. É garantido o direito de propriedade? Depende do espírito do momento. Amanhã, a igualdade material pode muito bem exigir que esse direito vá pras cucuias. Cláusulas pétreas? Depende. O constituinte esqueceu de um artigo: esta carta só pode ser revogada pela igualdade material. Revogam-se as disposições em contrário.
O Judiciário desde há muito vem usurpando as funções do Legislativo. Em vez de julgar, passou a criar leis. Alega-se que o Legislativo demora demais ao legislar, deixando vácuos legais. Pode ser. O fato é que elaborar leis nunca foi função do Judiciário. A Constituição de 88, que desde o berço foi concebida como uma colcha de retalhos, está virando um variegado patchwork. Casamento é entre homem e mulher? Pode ser. Mas pode também não ser. Todos são iguais perante a lei? Talvez sim. Mas talvez não. Tudo depende de interpretação. A igualdade material, sabe?
Com o tempo, nossa Carta Magna vai assumir as mesmas feições da Bíblia: uma maçaroca de textos contraditórios, editados num só volume, sem a revisão de um controlador de texto. Mas se alguém pensa que termina aqui o caos judiciário que ora vige no país, é porque não leu as últimas.
Quarta-feira passada, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou, por unanimidade, uma proposta de emenda constitucional (PEC) que permite ao Congresso sustar decisões do Poder Judiciário. Atualmente, o Legislativo pode mudar somente decisões do Executivo. A proposta seguirá agora para uma comissão especial. O objetivo da proposta, de autoria do deputado católico Nazareno Fonteles (PT-PI), é permitir que o Congresso tenha a possibilidade de alterar decisões do Judiciário se considerar que elas exorbitaram o "poder regulamentar ou os limites de delegação legislativa".
Isto é, não bastassem as três instâncias do Judiciário, que constituem uma benção para os corruptos e suas manobras procrastinadoras, teremos agora uma quarta instância. O Judiciário julga em última instância. Ou melhor, julgava. Se aprovada a PEC, julgará em penúltima instância. A última mesma será do Legislativo.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, intuindo incêndio no próprio quintal, disse que é preciso verificar se a PEC não fere a separação dos poderes, cláusula pétrea da Constituição. “É preciso verificar isso à luz da separação dos poderes”, disse. Só não é preciso quando o Judiciário legisla. A igualdade material, sabe?
A exótica PEC – dizem os jornais - tornou-se prioridade da frente parlamentar evangélica desde que o STF decidiu permitir o aborto de fetos anencéfalos. O coordenador da bancada, deputado João Campos (PSDB-GO), afirma que o objetivo é enfrentar o "ativismo judiciário".
- Precisamos colocar um fim nesse ativismo, nesse governo de juízes. Isso já aconteceu na questão das algemas, da união estável de homossexuais, da fidelidade partidária, da definição dos números de vereadores e agora no aborto de anencéfalos", afirma Campos.
Ou seja, última instância já era. Quando decisão de última instância contrariar grupos religiosos, alguma PEC há de se achar para mandar a última instância para o lugar de penúltima. O proponente, o deputado petista Nazareno Fonteles, é aquele mesmo que há alguns anos emitiu cinco bilhetes em nome de terceiros para Miami. Emitiu e ficou por isso mesmo. Afinal, nem o Congresso Nacional nem a Igreja Católica proíbem emitir passagens para amigos para Miami. Pelo jeito, a imprensa esqueceu deste senhor.
Mas eu lembro. Em 2004, o deputado apresentou no Congresso o nobilíssimo projeto de Lei Complementar, que estabelecia um limite máximo de consumo aos brasileiros e a tal de Poupança Fraterna. Para que se tenha uma idéia do espírito generoso do deputado, transcrevo os itens iniciais de seu generoso projeto:
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Fica criado o Limite Máximo de Consumo, valor máximo que cada pessoa física residente no País poderá utilizar, mensalmente, para custear sua vida e as de seus dependentes.
§ 1º O Limite Máximo de Consumo fica definido como dez vezes o valor da renda per capita nacional, mensal, calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em relação ao ano anterior.
Art. 2º Por um período de sete anos, a partir do dia primeiro de janeiro do ano seguinte ao da publicação desta Lei, toda pessoa física brasileira, residente ou não no País, e todo estrangeiro residente no Brasil, só poderá dispor, mensalmente, para custear sua vida e a de seus dependentes, de um valor menor ou igual ao Limite Máximo de Consumo.
Art. 3º A parcela dos rendimentos recebidos por pessoas físicas, inclusive os que estejam sujeitos à tributação exclusiva na fonte ou definitiva, excedente ao Limite Máximo de Consumo será depositada, mensalmente, a título de empréstimo compulsório, em uma conta especial de caderneta de poupança, em nome do depositante, denominada Poupança Fraterna.
Da proposta do sublime Nazareno resultava que seriam poupadores na Poupança Fraterna – isto é, seriam confiscadas – todas as pessoas que tivessem, em 1999 e a preços daquele mesmo ano, rendimentos mensais superiores a R$ 5.527,00. É o tipo da proposta que jamais encontraria acolhida entre seus pares, para os quais 5 mil reais é argent de poche. Quanto a passagens a Miami, bom, passagem não é rendimento. É apenas um instrumento para o adequado exercício da deputação. Por exemplo, enviar amigos a Miami.
A mais nova trouvaille do deputado Nazareno substitui a expressão “Poder Executivo”, por “outros poderes”, já que o Legislativo só é autorizado pela Constituição a julgar atos do poder Executivo. Com a mudança também poderá fazer o mesmo no poder que deve de fato julgar, o Judiciário. A PEC já foi aprovada no CCJ e agora vai para o plenário da Câmara para votação. Vai ser divertido. Imagine as sentenças de pavões como Marco Aurélio de Mello ou Joaquim Barbosa sendo revisadas por Tiririca.
Não duvido que passe. Depois da tal de igualdade material revogando constituição, nada surpreende neste país incrível.
28 de abril de 2012
janer cristaldo
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