"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 28 de abril de 2012

FLORES E LIBERDADE: REVOLUÇÃO DOS CRAVOS COMPLETA 38 ANOS

Portugal deve sua democracia a militares golpistas que há 38 anos destituíram um governo civil tirânico sem dispararem uma bala sequer


“Tu vieste em flor, eu te desfolhei. Tu te deste em amor, eu nada te dei. Em teu corpo, amor, eu adormeci. Morri nele. E ao morrer, renasci.” Assim diz a canção “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho. A música ressoou por toda Lisboa precisamente às 22h45m do dia 24 de abril de 1974, transmitida pelos Emissores Associados da capital lusitana. Era o primeiro chamado para a revolução, como havia sido previamente combinado por oficiais da hierarquia intermediária do exército português.

Poucas horas depois, às 0h20m do dia 25, foram os versos de “Grândola Vila Morena” que ecoaram pela madrugada lisboeta. Era o sinal que faltava. “Em cada esquina, um amigo. Em cada rosto, igualdade.” Quando a voz de Zeca Afonso foi ouvida do Terreiro do Paço à Mouraria cantando a letra banida pelo regime salazarista, soube-se com alegria que em Portugal a censura e a repressão não tinham mais vez.

Assim, com trilha sonora e tudo, o Movimento das Forças Armadas (MFA) desencadeou o levante que pôs fim a uma ditadura que vigorava desde 1926, num só dia e sem disparar um tiro sequer.
Era o fim do fascismo português, que já estava carcomido pela tresloucada perpetuação da aventura colonial na África. Portugal se viu livre do salazarismo quatro anos após a morte do próprio Salazar, e seis depois do seu afastamento da presidência do Conselho de Ministros por motivos de saúde.

Na manhã seguinte àquela madrugada de música e de democracia — democracia que vinha à luz pelo inusitado caminho de um golpe militar –, a população saiu às ruas e distribuiu cravos vermelhos aos soldados, em forma de agradecimento e solidariedade. Reza a lenda que os cravos apareceram pelas mãos de uma florista que levava ramalhetes para a inauguração de um hotel, mas são muitas as histórias que se contam em Lisboa a respeito daquele 25 de abril.

Fato mesmo é que os soldados, um após o outro, começaram a colocar as flores nos canos dos seus fuzis, batizando sem saber, com letras maiúsculas, uma revolução que ainda hoje é celebrada em Portugal como se tivesse sido feita ontem.
Quando visitou Lisboa durante o período revolucionário, Gabriel García Márquez reportou a alegria do povo para a revista colombiana Alternativa: “É um país que nunca dorme.
Às quatro da madrugada, numa quinta-feira qualquer, não havia um só táxi desocupado”. No 1° de maio daquele ano, um milhão de pessoas marcharam pelas ruas da capital para celebrar o Dia do Trabalho.

O processo revolucionário colocou em prática um programa para reerguer a economia, a política e a sociedade portuguesas do limbo no qual se encontravam em razão das dispendiosas e traumáticas guerras coloniais. Todas as ações eram baseadas no três
Ds revolucionários: democratizar, descolonizar e desenvolver. Sindicatos e partidos foram legalizados, portugueses voltaram do exílio e se abriu as portas da prisão de Peniche, onde o regime fascista trancafiava seus presos políticos.
No dia 25 de abril de 1975 foram realizadas as primeiras eleições livres, para a Assembleia Constituinte.
Venceu o Partido Socialista, para alívio dos que morriam de medo de que a Revolução dos Cravos terminasse em uma Cuba incrustada na Península Ibérica, e não no modelo europeu de democracia parlamentar, como afinal aconteceu.
No início, o Partido Comunista Português havia sido o único e incondicional aliado do MFA. Com os ânimos acirrados desde o 25 de abril, até hoje o PS e o PCP se digladiam na tribuna do palácio de São Bento, sede do Parlamento português.

E o Brasil com tudo isso? O sucessor de Salazar, Marcello Caetano, exilou-se por aqui depois de ser deposto pela revolução. Foi morar em Copacabana e acabou como diretor do Instituto de Direito Comparado da Universidade Gama Filho. Morreu em 1980 vitimado por um prosaico ataque cardíaco. Mas isto é para os registros biográficos dos ditadores do século XX.

Paulo Francis disse certa vez que a maior contribuição da Revolução dos Cravos para o nosso país havia sido a chegada ao Rio de Janeiro do restaurante Antiquarius, em 1977. Após o fim do salazarismo, o ex-governador do Rio Carlos Lacerda teria convidado os sócios de uma pousada da região do Alentejo a se mudarem para o Brasil, onde não teriam problemas com revolucionários quaisquer e poderiam abrir um restaurante português de alto nível.

Francis certamente exagerou, com muita ironia e bom humor, como era seu hábito. A Revolução dos Cravos ajudou a deitar por terra um muro erguido pelo autoritarismo que separou dois povos irmãos. Foram décadas de ignorância recíproca. O caminho aberto pelo 25 de Abril para o intercâmbio cultural, político e econômico entre brasileiros e portugueses só foi pavimentado mesmo mais recentemente, quando da redemocratização do Brasil, mas foram os Cravos que aplainaram o terreno para a compreensão mútua.

Os estragos causados pela censura e demais cerceamentos autoritários nas relações bilaterais ainda não foram totalmente sanados, o que se reflete no absoluto descaso com que nossa mídia e elites políticas em geral tratam aquela pátria tão distante, mas tão próxima de nós por razões mais do que óbvias.

Você sabe o nome do presidente de Portugal? Já viu a foto do primeiro-ministro português?
Um passo importante no sentido de estreitar os laços foi o acordo assinado há poucos anos entre o ministério brasileiro da Justiça e a Universidade de Coimbra para a troca de informações sobre as ditaduras de lá e de cá. Mas ainda é pouco.

Quando a Revolução dos Cravos estourou, com suas músicas-código rasgando a noite de Lisboa e seus fuzis feitos de vasos de jardim, Chico Buarque escreveu uma canção chamada “Tanto Mar”, que na letra original dizia o seguinte:

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também que é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim


Chico encarnava em seus versos a melancolia de um Brasil que acabava de ver o general Ernesto Geisel ser empossado como o quarto presidente do regime militar, mas também saudava e parabenizava os felizardos do outro lado do Atlântico, que num certo 25 de abril amanheceram entre flores e liberdade.

28 de abril de 2012

Hugo Souza



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