"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A CONFUSÃO DA REVOLUÇÃO


          Artigos - Cultura 
Um dos meios mais empregados pelos revolucionários para serem bem-sucedidos é justamente fazer crer que revolução remete necessariamente a uma mudança não apenas positiva, mas imprescindível – e, de certa maneira, até mesmo inescapável.

O último texto que escrevi, uma análise do excelente filme Batman, o Cavaleiro das Trevas Ressurge
, acabou suscitando alguns comentários e ideias bastante interessantes, sobretudo no tocante à definição do termo “revolução”. É certo que o tema não é nada fácil: inúmeras obras foram escritas a respeito das mais diversas revoluções, e frequentemente deparamo-nos com definições que chegam a ser mutuamente excludentes sobre o mesmo fenômeno.

A confusão não é injustificada. Quando costuma se chamar alguém de “revolucionário”, normalmente o que se busca é afirmar que essa pessoa é responsável por uma nova maneira de pensar ou agir que necessariamente gerou um benefício incalculável para a Humanidade. Nesse sentido, Albert Einstein teria “revolucionado” a Física com sua teoria da relatividade, assim como Steve Jobs “revolucionou” o mundo da informática com os produtos Apple. A rigor, entretanto, a utilização do termo nos exemplos dados é equivocada.

O termo “revolução” advém do latim “revolutio”, que significa mudança ou inversão abrupta – não foi à toa que, por exemplo, Nicolau Copérnico utilizou o termo no título de seu tratado “De revolutionibus orbium coelestium” (“Das Revoluções das Esferas Celestes”), de 1543. O uso político do termo começou no século XVII, quando começou a se referir à deposição do rei inglês James II, da casa de Stuart, como Revolução Gloriosa.

A aplicação análoga ocorreu em virtude do caráter da sublevação que depôs o monarca católico: foi uma ruptura imediata com o poder vigente. Note-se que, a priori, não havia nenhum tipo de acepção moral positiva ou negativa, mas apenas uma aplicação técnica do termo para se explicar certos fenômenos marcados por uma transformação intensa e quase instantânea – tanto que “revolução” e “revolta” possuem o mesmo radical em virtude de possuírem, no começo, a mesma significação.

Se o termo “revolução” foi compreendido desde sua origem como uma mudança repentina, normalmente uma inversão, advinda de um ato abrupto de ruptura da ordem então vigente e conhecida, referir-se a Albert Einstein ou Steve Jobs como “revolucionários” é um equívoco na medida em que suas contribuições para o progresso humano representaram uma inovação calcada num continuum formado pelos desenvolvimentos promovidos por seus antecessores.


Trocando em miúdos: uma vez que nenhum dos dois buscou repensar suas áreas de atuação desde o começo, o trabalho de Einstein e Jobs não pode ser visto fora da tradição específica às quais pertenciam. As inovações desenvolvidas por ambos são fruto do amadurecimento natural de suas ciências ao longo do tempo, não de esforços deliberados de ruptura visando ao surgimento de uma nova ordem de coisas. Assim sendo, Einstein e Jobs podem ter sido revolucionários acidentalmente, mas jamais essencialmente.
Quando indiquei que Bane, vilão do filme é essencialmente revolucionário, indiquei que se encontravam nele todas os pré-requisitos de um verdadeiro e legítimo revolucionário: uma crença cega na indefectibilidade de sua pretensa superioridade moral, uma vontade inabalável de solapar toda a ordem constituída para erigir outra sobre seus escombros, e uma firme convicção de que um fim considerado justo e necessário à causa justifica plenamente a utilização de quaisquer meios – sobretudo a manipulação, a perseguição e o terror. Todos os grandes revolucionários da história humana possuíam essas características, dos philosophes comandados por Robespierre aos guerrilheiros de Sierra Maestra.

Curiosamente, um dos meios mais empregados pelos revolucionários para serem bem-sucedidos é justamente fazer crer que revolução remete necessariamente a uma mudança não apenas positiva, mas imprescindível – e, de certa maneira, até mesmo inescapável. Essa distorção de conceito carrega em seu bojo a justificação moral que lhes faltava: “estou apenas servindo de instrumento daquele progresso do qual não podemos escapar”.


Tanto é assim que, nos dias atuais, apresenta-se uma situação bizarra: por um lado, aquelas pessoas que prestaram valiosos serviços à Humanidade são qualificadas de “revolucionárias”; por outro lado, os verdadeiros revolucionários, que objetivavam a derrocada da tradição e da ordem em prol de uma ordem artificial nascida de suas ideologias particulares, são equiparados aos revolucionários acidentais, perfazendo com eles o mesmo panteão de heróis do gênero humano.

Toda essa celeuma em torno de um termo cuja acepção pode-se facilmente depreender a partir do contexto de sua utilização é, enfim, bastante didática no sentido de mostrar claramente a que nível a distorção de conceitos e linguagens chegou nos dias em que vivemos. Isso é bastante conveniente para aqueles que, valendo-se do grotesco relativismo que se consolida dia após dia, buscam mutilar a verdade, destronando-a em prol de mentiras perigosas. Essa realidade, ainda tomada por muitos como uma mera teoria conspiratória de conservadores crípticos e escamosos, é mais evidente do que se pensa.


Felipe Melo

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