"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 10 de novembro de 2012

CARLOS MARIGHELLA, UM GUERRILHEIRO DE MUITA LUTA E POUCAS IDÉIAS

A biografia ex-deputado mostra que sua vida foi bem mais interessante que suas crenças

 


HOMEM DE AÇÃOMarighella, na redação do Jornal do Brasil, em 1964, depois de deixar a prisão. Sua vida traz lições para estes tempos de Comissão da Verdade e mensalão (Foto: O Cruzeiro/EM/D.A Press)

 
No dia 1º de julho de 1968, quatro anos depois do golpe militar no Brasil, um homem trajando terno azul-marinho invadiu uma agência bancária do bairro de Higienópolis, em São Paulo, e gritou:
“Isto é um assalto. Todos de mãos para cima!”. Ele empunhava um revólver calibre 38, que não precisou disparar. Raspou os caixas para arrecadar 23 mil cruzeiros novos (R$ 124 mil em valores atuais).

Mais tarde, uma testemunha disse à polícia que o assaltante era a cara do cantor Cyro Monteiro, famoso por interpretar clássicos do samba. Apesar da efervescência política daquele momento, não havia dúvidas, tratava-se de um crime comum, afirmou a polícia.
Se tivessem percebido as semelhanças físicas entre o sambista e o então ex-deputado do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Carlos Marighella, os policiais teriam, de imediato, concluído que o roubo fora mais uma “ação expropriatória”, eufemismo que os guerrilheiros criaram para denominar os assaltos realizados com o intuito de arrecadar dinheiro para a luta armada contra a ditadura militar.

A cena relatada em Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras, 732 páginas, R$ 56,50), do jornalista Mário Magalhães – ex-repórter especial e ex-ombudsman da Folha de S.Paulo –, tem o poder de sintetizar o percurso político do biografado e de muitos outros brasileiros que, sob um regime de exceção, trocaram os discursos pelas armas, pela ação.

Os relatos de ação são o ponto alto da obra. Como quase todas as ideias de Marighella e de outros guerrilheiros famosos estão datadas, o livro acerta ao se concentrar no personagem e em sua história turbulenta.

A saga de Marighella não chegou à redemocratização, em 1985. Foi encerrada antes, com desfecho trágico. Um ano depois do assalto ao banco, ele foi morto pelos militares na Alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins, em São Paulo.

Caiu numa emboscada montada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Apesar de desarmado – Magalhães, depois de extensa pesquisa, conclui que ele não tinha “nem um canivete” –, Marighella resistiu à prisão e tentou levar à boca cápsulas de veneno para evitar ser preso e torturado.
Não conseguiu e foi alvejado várias vezes.

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Filho do imigrante italiano Augusto Marighella e da negra Maria Rita do Nascimento, o mulato Carlos nasceu em Salvador no dia 5 de dezembro de 1911. Na década de 1930, abandonou o curso de engenharia civil para se filiar ao Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Combateu a ditadura de Getúlio Vargas de 1937 a 1945, foi eleito deputado federal constituinte em 1946 e cassado em 1948.

 Após o golpe militar de 1964, escreveu textos de apologia da guerrilha e foi expulso do PCB. Em meados dos anos 1960, viajou para estudar guerrilha em Cuba e ver de perto a Revolução Cultural na China. Ao voltar, fundou o grupo Aliança Libertadora Nacional (ALN), responsável, entre outras ações, pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969.

O livro reconstitui os 57 anos de vida do guerrilheiro da ALN e traz revelações políticas e pessoais que, em tempos de Comissão da Verdade e julgamento do mensalão, ajudam a compreender não apenas o percurso de um homem, mas da esquerda brasileira.

No campo da luta armada e da política, a atuação de Marighella foi pautada pela ideia do pensador italiano Maquiavel, para quem “os fins justificam os meios”. A pesquisa de Magalhães traz um exemplo revelador: ao longo de anos, o PCB de Marighella recebeu uma espécie de “mensalinho” do então governador de São Paulo, Adhemar de Barros (1901-1969), símbolo do conservadorismo político de direita, sobre quem foi cunhada a frase “rouba, mas faz”.

O dinheiro era pago aos comunistas em troca de apoio eleitoral. Todas as ações de Marighella e da guerrilha, incluindo assaltos, atentados e sequestros, ressurgem em detalhes e sem subterfúgios, que poderiam transformar seu personagem principal em herói.

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O livro esmiúça facetas desconhecidas do homem Marighella. Ele foi um poeta produtivo. Sua obra se ocupou do que considerava os flagelos de uma sociedade injusta. Entre um verso engajado e outro, encaixou poemas eróticos, como “Seios”: E eles ali estavam na minha frente/com os bicos apontados para mim/como duas lanças a furar-me os olhos...

Quando iniciou a biografia, Magalhães imaginou que o trabalho consumiria três anos. Acabou consumindo nove anos. “Por um lado, certa historiografia oficial tentou apagar os rastros de Marighella. Por outro, ele passou a maior parte da vida adulta tentando ocultar suas pegadas, por uma questão de sobrevivência”, afirma Magalhães.

A produção teórica de Marighella, entre elas o Minimanual do guerrilheiro urbano, que correu mundo, soa hoje como uma relíquia truculenta da era das utopias derrotadas. Mais de 40 anos depois, as ideias de Marighella foram ofuscadas pela intensidade de sua vida. Ela é tão repleta de aventuras que sua biografia funciona como um bom romance de ação para ser adaptado ao cinema. A diferença é que nele tudo é real.

10 de novembro de 2012
ALBERTO BOMBIG

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