Manifestei semana passada meu
protesto contra a mutilação de filmes com a dublagem que está assolando não só a
televisão a cabo mas também as salas de cinema. Recebi não poucas mensagens me
remetendo a links de articulistas que não se conformam com a nova moda. Eu
suspeitava que esta excrescência decorria de lobbies de dubladores. Parece que
não é bem assim. Em artigo sem assinatura, publicado na Folha do Oeste,
leio:
“A atual fase de crescimento econômico e o surgimento de uma nova classe consumidora têm impulsionado as vendas da TV por assinatura no Brasil. Dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) revelam que o setor cresceu 153,75% entre 2006 e agosto de 2011 – ou seja, triplicou o número de contratos em apenas cinco anos. A parcela da população frequentemente denominada de “Nova Classe Média”, formada em sua grande maioria por famílias recém-ingressadas na Classe C, é a maior responsável por esse fenômeno, segundo pesquisa realizada pelo instituto Ipsos-Marplan. Os números referentes ao ano passado mostram que, dentre um total de 12 milhões de assinantes, aproximadamente 30% pertencem a esse novo público.
“Atentas a esse mercado potencial, as operadoras de TV paga passaram a lançar pacotes com preços mais atraentes. Os canais fechados também lançaram suas estratégias buscando agradar o novo perfil de consumidores, e realizaram algumas alterações na programação nos últimos anos. A principal delas foi a maior oferta de conteúdos dublados, algo que desagradou outros clientes que tinham preferência pelo áudio original com legendas”.
Não duvido que haja no país uma larga faixa de analfabetos funcionais que têm uma dificuldade cada vez maior em ler. Mês passado, eu comentava a proposta de Gabe Zichermann, apresentada na feira do livro de Frankfurt. Autor de livros sobre o tema, Zichermann acha que fazer games a partir de clássicos ajuda a formar leitores. E argumenta: hoje, quando querem se divertir, crianças e adolescentes nos EUA escolhem os games, e não filmes, música e livros. Não só livros de ficção podem virar games, explica Zichermann, que defende a "gameficação" de obras de várias áreas.
Ou seja: se as crianças nos Estados Unidos preferem os games a livros, modifique-se o ensino. Transportemos as grandes obras da literatura para joguinhos de computador. Todo o soberbo estilo de Cervantes poderá ser lido em figurinhas que repasso ao sabor de um clique. Diga-se o mesmo das reflexões filosóficas de um Dostoievski. Isso de texto é besteira. Quadrinhos e games estão tomando o lugar do livro.
E os filmes dublados estão vencendo os legendados. Só porque uma maioria analfabeta perdeu o gosto pela leitura, que todos os filmes estrangeiros sejam transpostos para a inculta e bela. O que resta saber é se as operadoras de TV paga consultaram esse novo público alvo. Que me conste, nenhuma pesquisa nesse sentido foi feita. Vai ver que as operadoras consideram que se nos Estados Unidos as pessoas já não conseguem ler, o mesmo deve ocorrer abaixo do Rio Grande.
Outro leitor me envia matéria da revista Época, intitulada “A dublagem venceu as legendas”. O artigo fala de um filme, Os vingadores, que contém 50 mil caracteres de legenda, equivalentes a 30 páginas de livro. “Em duas horas, é muita leitura para quem não está acostumado”, comentam os articulistas.
Não duvido. Conheço pessoas que teriam uma grande dificuldade em ler uma destas minhas crônicas, que em geral ficam em torno de cinco mil caracteres. A era audiovisual parece estar enterrando a leitura. O pior é que a escola tem sido cúmplice desta tendência. Em fevereiro de 2009, o Estadão publicava:
QUADRINHOS CONQUISTAM ESPAÇO NA LITERATURA ESCOLAR
Em 2007, 14 HQs entraram na lista e, desde então, número de leitores vem aumentando
A adaptação de O Alienista, de Machado de Assis, vencedor do último Prêmio Jabuti de melhor livro didático e paradidático do ensino fundamental ou médio, é uma das 23 histórias em quadrinhos (HQs) que o Ministério da Educação (MEC) distribuirá neste ano para escolas públicas do País. Criado em 1997, o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) ignorou HQs por dez anos. Em 2007, 14 obras entraram na lista. Desde então, o número de HQs vem aumentando. Foram 16 em 2008 e, em 2009, a participação chega a 4,2% dos 540 títulos que deverão chegar às escolas até março.
Bom, aí a história muda de cariz. Quadrinhos para crianças e adolescentes, como lazer para horas vagas, entendo. Quadrinhos como adaptação de literatura para ensino fundamental ou médio, o Ministério da Educação que me desculpe. Isto não é alfabetização, mas analfabetização. Ler é interpretar sinais e palavras. Ver quadrinhos é ver desenhos. Há uma profunda distância intelectual entre ver quadrinhos e ler um livro. Ver qualquer um vê. Ler nem todos lêem.
Em meus dias de magistério, minhas aluninhas de Letras adoravam ler Graciliano Ramos e Clarice Lispector. Não que tivessem especial preferência por estes autores. O que neles gostavam era que seus livros eram fininhos. É óbvio que minhas pupilas prefeririam ler versões em quadrinhos. Mais fácil de assimilar, para quem não adquiriu o gosto pela leitura. Ocorre que eu ensinava em um curso de Letras, não em um curso de Quadrinhos. E reprovei minhas pupilas em massa. Este terá sido um – entre outros motivos – para minha ejeção do Curso de Letras. Onde se viu um professor de Letras exigir leituras de estudantes de Letras?
Depois do MEC, a televisão a cabo parece ter tomado partido nesta conspiração contra a leitura. Que ofereçam videogames ou desenho animado à sua clientela, nada contra. Mas deveria ser proibido mutilar uma obra de arte. Sem falar que, com a dublagem, o espectador não tem defesa contra o analfabetismo dos dubladores.
Outro dia eu assistia Towelhead, filme de 2007 de Alan Ball, baseado no romance homônimo de Alicia Erian, que trata da descoberta da sexualidade de uma adolescente, filha de pai iraquiano que reside nos Estados Unidos. Em determinado momento, a menina, que cuida de um adolescente americano, é chamada por este de towelhead, cabeça-de-toalha. Na legenda, lemos cabeça-de-turbante, o que é bastante diferente. E na dublagem ouvimos: terrorista. Isto é, foi perdido o enfoque. Se cabeça-de-toalha aponta para muçulmanos – isto é, para o lado religioso – terrorista aponta para fanatismo armado. Verdade que, no caso dos muçulmanos, as duas coisas muitas vezes coincidem. Mas se a escritora e o diretor optaram por towelhead, evidentemente não queriam dizer terrorista.
Os leitores que me escrevem manifestando sua repulsa à dublagem compulsória certamente terão muitos outros exemplos destas barbaridades. O pior de tudo é que, quando os canais oferecem legendas opcionais, a trilha sonora continua dublada. E o telespectador, além de ser submetido a legendas e diálogos em português, não tem mais acesso à língua original do filme.
Estamos descendo a passos rápidos rumo a um mundo onde gostar de ler será considerado esnobismo, talvez preconceito contra os iletrados. Nada de espantar em um país que elege e reelege um analfabeto.
Quanto a mim, voltei aos dias do cinema mudo. Se não tenho a opção de legendas, não vejo o filme. Quanto a tenho, desligo o som.
10 de novembro de 2012
janer cristaldo
“A atual fase de crescimento econômico e o surgimento de uma nova classe consumidora têm impulsionado as vendas da TV por assinatura no Brasil. Dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) revelam que o setor cresceu 153,75% entre 2006 e agosto de 2011 – ou seja, triplicou o número de contratos em apenas cinco anos. A parcela da população frequentemente denominada de “Nova Classe Média”, formada em sua grande maioria por famílias recém-ingressadas na Classe C, é a maior responsável por esse fenômeno, segundo pesquisa realizada pelo instituto Ipsos-Marplan. Os números referentes ao ano passado mostram que, dentre um total de 12 milhões de assinantes, aproximadamente 30% pertencem a esse novo público.
“Atentas a esse mercado potencial, as operadoras de TV paga passaram a lançar pacotes com preços mais atraentes. Os canais fechados também lançaram suas estratégias buscando agradar o novo perfil de consumidores, e realizaram algumas alterações na programação nos últimos anos. A principal delas foi a maior oferta de conteúdos dublados, algo que desagradou outros clientes que tinham preferência pelo áudio original com legendas”.
Não duvido que haja no país uma larga faixa de analfabetos funcionais que têm uma dificuldade cada vez maior em ler. Mês passado, eu comentava a proposta de Gabe Zichermann, apresentada na feira do livro de Frankfurt. Autor de livros sobre o tema, Zichermann acha que fazer games a partir de clássicos ajuda a formar leitores. E argumenta: hoje, quando querem se divertir, crianças e adolescentes nos EUA escolhem os games, e não filmes, música e livros. Não só livros de ficção podem virar games, explica Zichermann, que defende a "gameficação" de obras de várias áreas.
Ou seja: se as crianças nos Estados Unidos preferem os games a livros, modifique-se o ensino. Transportemos as grandes obras da literatura para joguinhos de computador. Todo o soberbo estilo de Cervantes poderá ser lido em figurinhas que repasso ao sabor de um clique. Diga-se o mesmo das reflexões filosóficas de um Dostoievski. Isso de texto é besteira. Quadrinhos e games estão tomando o lugar do livro.
E os filmes dublados estão vencendo os legendados. Só porque uma maioria analfabeta perdeu o gosto pela leitura, que todos os filmes estrangeiros sejam transpostos para a inculta e bela. O que resta saber é se as operadoras de TV paga consultaram esse novo público alvo. Que me conste, nenhuma pesquisa nesse sentido foi feita. Vai ver que as operadoras consideram que se nos Estados Unidos as pessoas já não conseguem ler, o mesmo deve ocorrer abaixo do Rio Grande.
Outro leitor me envia matéria da revista Época, intitulada “A dublagem venceu as legendas”. O artigo fala de um filme, Os vingadores, que contém 50 mil caracteres de legenda, equivalentes a 30 páginas de livro. “Em duas horas, é muita leitura para quem não está acostumado”, comentam os articulistas.
Não duvido. Conheço pessoas que teriam uma grande dificuldade em ler uma destas minhas crônicas, que em geral ficam em torno de cinco mil caracteres. A era audiovisual parece estar enterrando a leitura. O pior é que a escola tem sido cúmplice desta tendência. Em fevereiro de 2009, o Estadão publicava:
QUADRINHOS CONQUISTAM ESPAÇO NA LITERATURA ESCOLAR
Em 2007, 14 HQs entraram na lista e, desde então, número de leitores vem aumentando
A adaptação de O Alienista, de Machado de Assis, vencedor do último Prêmio Jabuti de melhor livro didático e paradidático do ensino fundamental ou médio, é uma das 23 histórias em quadrinhos (HQs) que o Ministério da Educação (MEC) distribuirá neste ano para escolas públicas do País. Criado em 1997, o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) ignorou HQs por dez anos. Em 2007, 14 obras entraram na lista. Desde então, o número de HQs vem aumentando. Foram 16 em 2008 e, em 2009, a participação chega a 4,2% dos 540 títulos que deverão chegar às escolas até março.
Bom, aí a história muda de cariz. Quadrinhos para crianças e adolescentes, como lazer para horas vagas, entendo. Quadrinhos como adaptação de literatura para ensino fundamental ou médio, o Ministério da Educação que me desculpe. Isto não é alfabetização, mas analfabetização. Ler é interpretar sinais e palavras. Ver quadrinhos é ver desenhos. Há uma profunda distância intelectual entre ver quadrinhos e ler um livro. Ver qualquer um vê. Ler nem todos lêem.
Em meus dias de magistério, minhas aluninhas de Letras adoravam ler Graciliano Ramos e Clarice Lispector. Não que tivessem especial preferência por estes autores. O que neles gostavam era que seus livros eram fininhos. É óbvio que minhas pupilas prefeririam ler versões em quadrinhos. Mais fácil de assimilar, para quem não adquiriu o gosto pela leitura. Ocorre que eu ensinava em um curso de Letras, não em um curso de Quadrinhos. E reprovei minhas pupilas em massa. Este terá sido um – entre outros motivos – para minha ejeção do Curso de Letras. Onde se viu um professor de Letras exigir leituras de estudantes de Letras?
Depois do MEC, a televisão a cabo parece ter tomado partido nesta conspiração contra a leitura. Que ofereçam videogames ou desenho animado à sua clientela, nada contra. Mas deveria ser proibido mutilar uma obra de arte. Sem falar que, com a dublagem, o espectador não tem defesa contra o analfabetismo dos dubladores.
Outro dia eu assistia Towelhead, filme de 2007 de Alan Ball, baseado no romance homônimo de Alicia Erian, que trata da descoberta da sexualidade de uma adolescente, filha de pai iraquiano que reside nos Estados Unidos. Em determinado momento, a menina, que cuida de um adolescente americano, é chamada por este de towelhead, cabeça-de-toalha. Na legenda, lemos cabeça-de-turbante, o que é bastante diferente. E na dublagem ouvimos: terrorista. Isto é, foi perdido o enfoque. Se cabeça-de-toalha aponta para muçulmanos – isto é, para o lado religioso – terrorista aponta para fanatismo armado. Verdade que, no caso dos muçulmanos, as duas coisas muitas vezes coincidem. Mas se a escritora e o diretor optaram por towelhead, evidentemente não queriam dizer terrorista.
Os leitores que me escrevem manifestando sua repulsa à dublagem compulsória certamente terão muitos outros exemplos destas barbaridades. O pior de tudo é que, quando os canais oferecem legendas opcionais, a trilha sonora continua dublada. E o telespectador, além de ser submetido a legendas e diálogos em português, não tem mais acesso à língua original do filme.
Estamos descendo a passos rápidos rumo a um mundo onde gostar de ler será considerado esnobismo, talvez preconceito contra os iletrados. Nada de espantar em um país que elege e reelege um analfabeto.
Quanto a mim, voltei aos dias do cinema mudo. Se não tenho a opção de legendas, não vejo o filme. Quanto a tenho, desligo o som.
10 de novembro de 2012
janer cristaldo
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